Negligência estadual faz a reserva ficar entre as 10 Unidades de Conservação mais desmatadas do Brasil e ser ocupada por mais de 200 mil cabeças de gado.

Enquanto a Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná sofre tentativas constantes do poder Legislativo de Rondônia para redução de sua área, favorecendo o desmatamento e criação de gado, também sente as consequências da ausência de fiscalização e proteção de seu território por parte do poder Executivo, sob competência da Secretaria Estadual do Desenvolvimento Ambiental de Rondônia (Sedam-RO).  

Com base nos dados da Plataforma MapBiomas, a InfoAmazonia identificou que o espaço da reserva ocupado pela atividade agropecuária saltou de 43.104 hectares (21% da área total) para 145.973 hectares (74%) entre 2012 e 2022. O dado representa um aumento de 239%, ou seja, a atividade dentro da área protegida mais do que duplicou em 10 anos. Consequentemente, houve uma redução de 68% na área de floresta, passando de 77% para 25% da área da reserva no mesmo período.

Em paralelo, a Sedam-RO desconhece o número de fiscalizações e operações realizadas na Resex de modo a coibir esse tipo de atividade ilegal. Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a reportagem solicitou ao órgão o número de fiscalizações e operações realizadas pela pasta na região. Em resposta, a Sedam-RO disse não possuir esta informação sob a justificativa de ser “impossível delinear ação em determinada área”.

A negligência do órgão de fiscalização estadual sobre o território que lhe é de competência tem impactos ambientais diretos e palpáveis, como, por exemplo, os altos índices de desmatamento, a perda de cobertura florestal e aumento de área de pasto para atividade agropecuária ilegal, crescimento da população bovina, conflitos de terra, dentre outras problemáticas. 

A Resex Jaci-Paraná é uma Unidade de Conservação (UC), de gestão estadual, criada em 1996 pelo estado de Rondônia destinada à exploração autossustentável e à conservação dos recursos renováveis, por populações extrativistas e ribeirinhas. Ela tem 197.364 hectares — o equivalente a 183 mil campos de futebol – e abrange os municípios de Porto Velho, Buritis e Nova Mamoré. A atividade pecuária de grande porte é considerada ilegal dentro da área protegida. Somente é permitido, conforme a legislação, a agricultura de subsistência e criação de animais de pequeno porte.  

Ocupações irregulares e aumento do rebanho bovino  

Embora a Sedam-RO desconheça os próprios números de ações de proteção e autuações na região, a Resex Jaci-Paraná tem 335 áreas embargadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), do governo federal, por conta de atividades ilegais.

Os dados fornecidos via LAI pelo Ibama mostram que, independentemente do perfil de quem invade a área — como fazendeiros, agricultores, empresários ou outros —, é possível afirmar que “se trata de invasores e grileiros de terras, ou seja, em outras palavras, criminosos perante à Lei”, segundo informou a pasta.

Invasões e ocupações irregulares contribuem para o desmatamento na região e desvio de função da reserva, que é de proteção e conservação ambiental. Para se ter uma ideia, o número de estabelecimentos rurais cadastrados dentro da UC já soma 364 no Cadastro Ambiental Rural: Registro eletrônico obrigatório, feito por autodeclaração e voltado à regularização ambiental de imóveis rurais de todo o país. (CAR), reforçando a conivência do estado de Rondônia com essas práticas ilegais, neste caso, a ocupação indevida dentro da Resex. Como é uma área protegida, o CAR indica uma tentativa de apropriação ilegal e grilagem de terras visando a expansão da pecuária, por exemplo, com a criação de bovinos.

Ao analisar os registros estaduais de propriedades rurais, constata-se que a situação de ocupação da reserva é ainda pior. Os números do Cadastro Agropecuário da Agência de Defesa Sanitária Agrosilvopastoril do Estado de Rondônia (Idaron), obtidos via LAI, indicam a existência de 898 estabelecimentos rurais dentro da resex e a presença de 216 mil cabeças de gado. Esses dados indicam a ocupação ilegal de uma área protegida, mostram a exploração do território por uma atividade econômica indevida e com degradação do ecossistema.

A série histórica disponível pela Idaron, que compreende o período de 2015 a 2023, aponta que a população de bovinos na UC triplicou, passando de 62 mil , em 2015, para  216 mil, em 2022. Embora a agência atribua o aumento do rebanho ao nascimento e à aquisição de animais de propriedades externas à Reserva Extrativista Jaci-Paraná, esse crescimento na reserva demonstra a falta de atuação dos órgãos fiscalizadores estaduais. 

‘O estado entregou a Resex na mão dos fazendeiros’

Segundo o Relatório Anual do Desmatamento do Brasil elaborado em 2022 pelo MapBiomas, a Jaci-Paraná ocupa a oitava posição entre as UCs que foram mais desmatadas em 2022. Rondônia é o sétimo estado do Brasil com a maior área desmatada entre 2019 e 2022. 

Os efeitos do desmatamento impactam a comunidade ribeirinha que ocupa a UC regularmente. Lincoln Fernandes de Lima, presidente da Associação Bem-Te-Vi, que reúne seringueiros e agroextrativistas, relata que os ribeirinhos vivem em vulnerabilidade. Segundo ele, faltam recursos naturais, como seringueiras e castanheiras, que foram desmatadas e eram a principal fonte de renda da comunidade.

“Hoje, os nativos precisam sair para buscar trabalho fora da reserva para sobreviverem, mas são pessoas que sempre viveram apenas do extrativismo. Então, elas chegam nas cidades e não têm oportunidade de trabalho lá”, ressalta. 

Hoje, os nativos precisam sair para buscar trabalho fora da reserva para sobreviverem, mas são pessoas que sempre viveram apenas do extrativismo. Então, elas chegam nas cidades e não têm oportunidade de trabalho lá.

Lincoln Fernandes de Lima, presidente da Associação Bem-Te-Vi

Na avaliação do agroextrativista, as autoridades são omissas na defesa da Resex: “nós temos consciência de que, para alguém fazer um desmatamento dessa proporção, é porque alguém consentiu. Se o governo tivesse agido desde o início, com certeza não teria esse desmatamento gigantesco e a mata estaria de pé.”

O vice-presidente da Organização dos Seringueiros de Rondônia (OSR), Sebastião Neves, explica que já foram feitas diversas denúncias aos órgãos públicos responsáveis pela área, mas que nenhuma medida foi tomada. Ele relata, ainda, que os fazendeiros estão destruindo e derrubando as seringueiras e as castanheiras para forçar a saída e a perda da fonte de renda dos extrativistas da Resex. 

“O que nós ouvimos como respostas da Sedam-RO e do Ministério Público é que eles estão tomando providências, mas sabemos que nenhuma ação aconteceu até agora. Hoje, a nossa preocupação é com a vida dos seringueiros que permanecem na Resex”, diz Neves.

Sabemos que nenhuma ação aconteceu até agora. Hoje, a nossa preocupação é com a vida dos seringueiros que permanecem na Resex.

Sebastião Neves, vice-presidente da Organização dos Seringueiros de Rondônia

Em 23 de setembro de 2023, a casa de um extrativista foi queimada e o morador perdeu todos os seus bens. A comunidade acredita que o incêndio foi causado por invasores e afirmam que sofrem pressões de grileiros. O fato ocorreu um dia após a presença do Batalhão da Polícia Ambiental, da Polícia Militar, devido a denúncias de extração ilegal de madeira e envenenamento de um bananal.

Destroços da casa incendiada. Foto: Eric Karipuna/Acervo Pessoal

Segundo o gestor executivo da OSR, Joadir Luiz de Lima, a passagem por terra e por água é controlada por milícias armadas: “Os grileiros limitam o acesso de terra para coleta e do rio para pesca, todas as fontes de renda deles [extrativistas] estão sendo tiradas e eles estão sendo isolados dentro de seu próprio território”. 

O extrativista Lincoln Fernandes de Lima ressalta o sentimento de impotência por não haver possibilidade de defesa: “não vou dizer que tem conflito, porque ninguém enfrenta os fazendeiros, nem tem como. Eles chegam em muitos com suas máquinas e armas à mostra pra todo mundo ver”.

Adaptações legislativas e desobediência de ordens judiciais

Por parte do governo estadual e da Assembleia Legislativa de Rondônia (ALE-RO), a reserva sofre com tentativas de redução da área por meio de mudanças na lei.

Em 2014, os deputados estaduais  tentaram extinguir a UC via decreto legislativo, o que só não foi para frente porque a proposta foi alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn), movida pelo Ministério Público do Estado de Rondônia (MPE-RO), sendo considerada inconstitucional em 2016, em acórdão unânime dos desembargadores Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia (TJ-RO). Após a decisão, o processo foi arquivado em outubro do mesmo ano. 

A movimentação dos deputados ocorreu depois que a Sedam-RO mandou retirar todo o gado da região, em fevereiro de 2014, depois de seguir uma recomendação do Ministério Público de Rondônia (MP-RO) devido aos danos ambientais causados pela atividade agropecuária na área.

Sete anos depois, em 2021, a ALE-RO aprovou um projeto de lei proposto pelo governador do estado, Marcos Rocha (União Brasil), que diminuiria drasticamente a área da Resex. Sob a justificativa de diminuir os conflitos fundiários e de que a “carga excessiva” de bois no território tornaria “extremamente improvável a regeneração natural da sua vegetação nativa”, o projeto reduziria 78% da UC, que passaria a ter 45 mil hectares, ante os 197 mil hectares existentes anteriormente. 

A proposta também prometia a criação de dois novos parques estaduais para compensar a redução da área. Mas, logo que a lei foi aprovada, a ALE-RO promulgou Leis Complementares que vetaram a criação dos parques.

Sem os novos parques, o projeto de lei aprovado pela ALE-RO chegou a ser sancionado pelo governador, mas a iniciativa foi barrada pelo Ministério Público (MP-RO) e julgada como inconstitucional pelo Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ-RO). Em fevereiro deste ano, a ALE-RO entrou com ação no Superior Tribunal Federal para tentar derrubar a decisão, mas o recurso foi negado pela corte.

Os 197 mil hectares de área da Resex que o legislativo e o executivo rondoniense tentaram reduzir em 2021 já eram menos do que a área original da UC, de 205 mil hectares, que perdeu 7,6 mil hectares em 2011 para a formação do lago artificial da barragem da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, construída pelo governo federal.

‘O problema é que o Judiciário não faz o Executivo cumprir’

Segundo a promotora de Justiça aposentada Aidee Maria Moser Torquato Luiz, que atuou por 17 anos no MP-RO em pelo menos 47 Ações Civis Públicas (ACP) relacionadas à reserva, as primeiras invasões começaram em 2002.

Ela considera o perfil dos invasores contraditório porque inclui desde pessoas sem capacidade financeira, que assumem a propriedade dos rebanhos, a empresários e/ou pecuaristas, tanto de Rondônia quanto de outros estados do Brasil. Ela informa ainda que há políticos envolvidos, mas as áreas estão em nome de laranjas.

“As fiscalizações feitas pela Sedam ocorrem de forma precária e esporádica. Também no âmbito da Polícia Judiciária não há vontade política para investigar e identificar os reais invasores. A dificuldade maior reside no fato de que, em razão da existência de ‘laranjas’ que constantemente são substituídos, existe uma enorme dificuldade em localizá-los, assim como os verdadeiros pecuaristas e proprietários do gado”, explicou a promotora.

Aidee afirma ainda que os pecuaristas contam com o apoio da Idaron, já que a agência vacina o boi dentro da Resex e ainda emite Guias de Transporte Animal (GTA), permitindo a comercialização para frigoríficos da região. Conforme denunciado pela InfoAmazonia em 2022, a agência, sob argumento de prevenção de doenças, monitora rebanhos na Resex Jaci-Paraná, mesmo após Justiça restabelecer limites da unidade de conservação onde a atividade é proibida.

Conforme o promotor de justiça e coordenador do Grupo de Atuação Espacial em Meio Ambiente (Gaema), Pablo Hernandez Viscardi, estima-se que existam cerca de 90 Ações Civis Públicas (ACP) que tratam da Reserva Jaci-Paraná, em diferentes estágios. No entanto, o MP-RO informou à reportagem que não tem um levantamento atualizado que especifique exatamente quantos delas já foram julgadas e sentenciadas.

Em levantamento realizado entre 2016 e 2019 pela promotora enquanto atuava no MP-RO, 48 ACPs foram julgadas em primeira instância. As decisões determinavam a retirada do gado, demolição de todas as instalações, obras e benfeitorias, penalidades alternativas à prisão, e compensação pelos danos ambientais causados. Todos os invasores identificados respondem a ações penais e muitos já foram condenados. 

Mesmo nos casos em que o Tribunal de Justiça de Rondônia confirmou as decisões de primeira instância, condenando diversos invasores a desocuparem a área e a pagarem pelos danos ambientais causados, o estado nem sempre cumpre as decisões. É o que afirma Aidee: “O problema é que o judiciário não faz o executivo cumprir. Os juízes não encaram essa situação, não adianta dar uma decisão que depois ninguém vai cumprir”.

Tentativas de contato e diálogo inexistente 

A reportagem tentou contato com a Sedam-RO, órgão responsável pela gestão da Resex Jaci-Paraná, mas não houve resposta até o fechamento desta reportagem. O titular da pasta, Marco Antonio Ribeiro de Menezes Lagos, disse por telefone preferir não se pronunciar sobre a situação da Unidade de Conservação.

Procurada, a assessoria de comunicação do Governo do Estado de Rondônia informou que encaminhou as questões da reportagem e não deu mais explicações. 

A reportagem também tentou ouvir a Idaron sobre a vacinação do gado na Reserva, mas não obteve resposta.

Sobre o autor

Giullia Venus Oliveira Santos

Repórter sediada em Brasília, colaborou com a Agência Pública, Ponte Jornalismo e InfoAmazonia. Possui graduação em jornalismo pela Universidade de Brasília.

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