Januário e Santiago, que deram início juntos a uma saga de 30 anos para garantir a demarcação do território Acapuri de Cima. Foto: Christian Braga/InfoAmazonia
Na virada do século 19 para o 20, provavelmente fugindo da colonização espanhola na Amazônia peruana que obrigava os indígenas a trabalhos forçados, quatro famílias da etnia Kokama se encontraram no Alto Solimões, no Brasil, longe dos seus algozes. Em uma área de várzea, às margens do grande rio, o grupo encontrou as condições naturais que permitiram manter viva suas tradições e cultura. Por quase 100 anos, os Kokama ocuparam pacificamente as terras ao redor da aldeia Acapuri de Cima, no Amazonas, sem se preocupar onde era a fronteira do território. Até a chegada do homem branco.
“Certa vez chegou um tal de Zé Ferreira prometendo nos ajudar em troca de votos na eleição. Mas os indígenas não votaram e ele então ameaçou nos expulsar”, lembra o ex-cacique Aty Manã, o Eduardo Januário, 80 anos. Ameaçados de perder suas terras, os Kokama não sabiam muito bem o que fazer. Foi então que eles deram início a uma verdadeira saga, por mais de três décadas, em busca da demarcação e do direito sobre o seu território ancestral.
“Nossos pais não chegaram aqui em um barco da Europa, eles vieram por esse rio, procurando lugares melhores para viver. Somos filhos dessa floresta. Foi aí que eu decidi ir atrás de saber dos nossos direitos, aquela terra era nossa casa, tudo que tínhamos”, contou Januário ao lado do seu fiel parceiro nessa jornada, Umari, o Benjamin Santiago, hoje com 70 anos, e que na época era vice-cacique.
A reportagem da InfoAmazonia chegou à Terra Indígena Acapuri de Cima, próxima da tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia, em 6 de setembro deste ano. Um dia antes, o presidente Lula (PT) havia homologado a demarcação definitiva do território e reconhecido a ocupação tradicional dos indígenas da etnia Kokama. Para chegar até lá, é necessário uma longa viagem de 24 horas em uma lancha rápida. De barco convencional, saindo de Manaus, são mais de cinco dias navegando pelo rio Solimões. Mas no final dos anos 80, quando Januário e Santiago descobriram que esse também era o caminho para buscar o reconhecimento dos direitos indígenas, uma viagem até a capital poderia demorar meses.
“A gente não tinha dinheiro nem para ir, nem para voltar. Íamos pegando carona com os barcos que desciam o rio e dormíamos nas aldeias que tinham pelo caminho. Na cidade, a gente dormia na rua mesmo”, lembra Santiago, que nos últimos anos se mudou para Manaus para acompanhar o tratamento de saúde da sua esposa.
Por muito tempo, a demarcação do território não era uma necessidade urgente para os Kokama de Acapuri de Cima. Mas o fato de não terem votado em Zé Ferreira para prefeito colocou o território em risco. Na época, explica Januário, a maioria dos indígenas não tinha título de eleitor e os que tinham votavam em Jutaí, município que fica na outra margem do Solimões, a poucos minutos de canoa da aldeia. Já a sede de Fonte Boa, onde Zé Ferreira queria que os indígenas votassem, fica a mais de 120 quilômetros, um trajeto de no mínimo um dia inteiro de barco.
“Quando ele viu que os indígenas não votaram, disse que era dono das terras e iria expulsar a gente. Que ia nos jogar em algum lugar de Jutaí. Eu fui até Manaus e desenhei lá para o pessoal da Funai qual era a nossa área”, conta Januário, que, apesar de não saber ler nem escrever, conseguiu identificar no mapa os lugares de uso comum dos indígenas, os pontos de roças, de coleta e de caça.
A memória que tinham da história contada pelos pais, que só falavam em kokama, língua nativa de origem Tupi, ajudou os antropólogos a reconstituir a migração dos Kokama, que saíram da região de Caballococha, no Peru, para viver no Alto Solimões. No entanto, esse processo se arrastou mais que o esperado.
Identificação e delimitação do território
Januário e Santiago estiveram na Funai em Manaus em 1991 e em 1995. Na segunda visita ao órgão, parte da terra indígena já estava sendo invadida, principalmente para retirada de madeira, contam os indígenas.
A portaria para identificação e delimitação do território só foi publicada em 1997. Já a confirmação da delimitação da área, feita com base nas informações de Januário e das pesquisas técnicas, só ocorreu em 1999.
“Cada vez que a gente ia para Manaus, as nossas expectativas aumentavam, mas sempre tinha um novo caminho a se fazer. Mas seguimos firmes e unidos na luta”, diz Santiago.
As idas e vindas viraram história para contar e exemplo para toda comunidade. Januário lembra que se não fosse a pressão e o risco real de serem expulsos, talvez os Kokama estariam até hoje vivendo como sempre fizeram naquela região.
“A gente não sabia nada, só sabia que éramos índios e que estávamos há muito tempo naquela terra. Fomos descobrindo que tinham leis para proteger nossos direitos, fomos descobrindo os caminhos sozinhos. Foi praticamente uma vida toda nessa luta”, lembra Januário.
A dupla se alternou nos cargos de cacique e vice-cacique de 1980 a 2017, quando ambos se afastaram para cuidar da própria saúde ou da saúde de familiares. A homologação da terra indígena em setembro deste ano pegou os dois de surpresa. Januário foi avisado por um telefonema do genro, que estava em Manaus, viu a notícia pela televisão e tratou de avisar prontamente Santiago.
Agenda ambiental no centro da cultura Kokama
No início dos anos 90, quando o mundo despertou para a pauta climática, Benjamin Santiago já sabia há muito que os indígenas só sobrevivem nesse mundo se preservarem também suas florestas. No Alto Solimões, por essa mesma época, o dito desenvolvimento fazia a população das cidades crescerem —mas não necessariamente em indicadores sociais. Jutaí, por exemplo, cidade mais próxima da TI Acapuri de Cima, tem uma das maiores desigualdades sociais do Brasil e um Índice de Desenvolvimento Humano Médio (IDHM) entre os mais baixos do país. O único acesso à cidade é de barco e a maioria dos suprimentos chega de Manaus.
A essa altura, não era somente Zé Ferreira que estava de olho nas terras dos indígenas: “até 1990, praticamente não existia contato com os não indígenas, mas, depois, a pressão vinha de todos os lados”, conta Santiago.
Na época, ele buscou capacitação para fazer a preservação ambiental da terra indígena e foi um dos primeiros na região a implantar um sistema de manejo de peixes nos lagos da comunidade, ajudando a transformar a pesca, que já era uma habilidade nata dos Kokama, em meio de geração de renda.
“Nós sabíamos que os de fora estavam vindo para tirar as riquezas da nossa terra e, para nós, só tem sentido viver na terra se pudermos preservar”, contou, lembrando do sucesso que foi a primeira safra da empreitada.
No primeiro manejo dos indígenas de Acapuri de Cima no lago Mata-Mata, segundo Santiago, foram capturados 5.800 tambaquis. Na época, eles conseguiram melhorar a safra para vender o excedente na cidade. Até hoje, o manejo do tambaqui e do pirarucu é uma das principais atividades da comunidade junto da agricultura. Nas boas épocas para a pesca, como a da visita da InfoAmazonia à aldeia em setembro, os homens vão para o lago e ficam lá por dias, enquanto as mulheres cuidam das roças.
Indígenas chegaram na Amazônia brasileira fugindo da colonização espanhola
A homologação da terra indígena deixou os Kokama da Acapuri de Cima mais tranquilos. “Agora ele [Lula] cadastrou, homologou e tá reconhecida”, diz Januário. Mesmo assim, as pressões continuam de outras formas.
Recentemente, as atuais lideranças que estão no cacicado do território firmaram acordos para desenvolverem um projeto para venda de créditos de carbono que é gerado com a preservação da floresta, que cobre praticamente toda terra indígena. O projeto é recheado de contradições.
Januário e Benjamin, assim como outros moradores da aldeia, dizem que não conhecem os detalhes do projeto, que nunca recebeu aval da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Ao falar sobre o assunto, Januário diz não ter muito a opinar, “mas algo me diz que isso não está nada certo”, disse à reportagem.
Esse parece ser só mais um capítulo da história dos Kokama de Acapuri de Cima, que remonta à trajetória de um povo que foi perseguido por séculos, com registros de contatos desde os primeiros anos da colonização espanhola no Peru. Os diferentes projetos colonizadores incluíam trabalho forçado dos indígenas nas chamadas haciendas: Forma de organização econômica típica do sistema de colonização espanhol, mantida na América Latina até as reformas agrárias da segunda metade do século 20. O termo é usado para descrever um latifúndio de produção agrícola e pecuária mista., que também foi um dos motivos que forçou o deslocamento deste povo em busca de áreas mais retiradas na floresta amazônica.
O resumo do Relatório de Identificação da Acapuri de Cima narra que os Kokama que vivem no território descendem do grupo que vivia no rio Ucayali, que forma a bacia do rio Solimões do lado peruano, entre as cidades de Iquitos e Contamana. Pesquisadores estimam que os Kokama chegaram às terras altas da Amazônia peruana em torno de 200 ou 300 anos antes dos exploradores europeus. Os motivos variaram entre procura por alimento, fugir de guerras contra outros indígenas, motivos religiosos e, mais tardiamente, para escapar da escravidão europeia.
O movimento continuado de migração dos Kokama foi estabelecendo aldeamentos cada vez mais próximos do Brasil. No início do século 20, parte de um grupo que vivia nas proximidades da cidade peruana Caballocha, na fronteira, imigrou para o alto Solimões, estabelecendo aldeias que até hoje se estendem por 17 terras indígenas na calha do rio nos municípios de Tabatinga, São Paulo de Olivença, Benjamin Constant, Amaturá, Santo Antônio do Içá, Tonantins, Fonte Boa, Tefé e Jutaí, todos no estado do Amazonas.
O longo processo de migração do povo Kokama para a Amazônia brasileira foi marcado por diferentes formas de interação a depender da região em que escolhiam se assentar. Ao longo dos anos, relacionaram-se com outras etnias, como os Tikuna, Kambeba, Katukina, entre outros, e até hoje é comum encontrar Kokamas nos territórios tradicionais desses povos.
Em muitas aldeias, a cultura sofreu forte pressão para apagamento da identidade indígena. Até a década de 1980, a língua Kokama chegou a ser dada como praticamente extinta. Fora das aldeias, eles evitavam o próprio idioma com medo de perseguição. Mas graças a figuras como Januário, Santiago, e tantos outros que injetaram o orgulho de ser indígena na própria comunidade, a língua, a cultura e os costumes Kokama seguem resistindo. E agora com o território oficialmente reconhecido e homologado.
Esta reportagem foi produzida em parceria com a Mongabay
Très bel article !
Il démontre, s’il fallait encore en établir la preuve, que le système économique qui nous fait exister, depuis un peu plus de cinq-cents ans, est toujours aussi funeste pour celles et ceux qui en sont exclus ; ainsi que pour nous-mêmes : Il condamne ceux-là à l’esclavage et à l’extermination et nous pousse, nous, un peu plus chaque jour, au-devant du jour ultime.
Il est temps de changer de paradigme, d’écouter et d’entendre aussi les peuples dits premiers pour cesser de durer et pour, enfin, vivre.