Qual é a ligação entre uma floresta tropical e um dos polos do planeta? Ambos são ecossistemas importantes para o clima global, e, por isso, investigá-los torna-se de extrema importância em tempos de emergência climática.
Nunca sonhei em ir à Antártida. Era algo tão distante da minha realidade que a maior proximidade possível parecia ser assistir a documentários sobre a gélida região. Como boa paraense, tenho pavor de frio. Quando a chance de conhecer o continente surgiu, por meio do convite para integrar uma expedição científica formada apenas por mulheres líderes nas áreas de ciências e tecnologia, encarei como um desafio e um chamado e fui de coração e mente abertos.
Tenho trabalhado com a Amazônia há mais de 15 anos. Além de aprender mais sobre como a Antártida está sendo afetada pelas mudanças climáticas, minha expectativa ao ingressar nessa expedição era de compartilhar sobre os desafios que enfrentamos aqui. Não somente com a conservação das florestas, mas também sobre como ainda temos a avançar em mais pesquisa e representatividade em espaços de tomada de decisão para proteger esse ecossistema, sem esquecer das pessoas, principalmente daquelas que estão mais vulneráveis por questões sociais, raciais, ou de gênero, que são exacerbadas pelas mudanças climáticas.
Como única amazônida integrante da expedição, pude falar sobre como sabemos reduzir o desmatamento, mas que ainda temos muito trabalho pela frente para impulsionar uma economia que valorize a floresta e as pessoas. Meu principal objetivo ali era o de entender mais sobre como a Amazônia e a Antártida estão ligadas, tanto pela contribuição de cada um desses ecossistemas emblemáticos ao clima global, quanto pela ameaça de alcançar pontos de não-retorno, diante do cenário crescente de emissões de gases de efeito estufa, que coloca não somente sua existência em risco, mas a de toda a humanidade.
Iniciativa global Homeward Bound
A oportunidade de ir à Antártida surgiu por meio de uma seleção da iniciativa global Homeward Bound, que foca na capacitação de mulheres que trabalham nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia, matemática e medicina (STEMM, na sigla em inglês) para exercerem posições de liderança em prol da sustentabilidade.
A iniciativa organiza expedições ao continente, combinadas com um programa de capacitação de pessoas de vários países do mundo, com o objetivo de treinar, promover e conectar mulheres em posições de liderança para atuar de maneira individual e colaborativa, integrando uma rede global para fazer frente aos desafios complexos que enfrentamos, tais como a emergência climática e a perda de biodiversidade.
A Homeward Bound foi criada há 10 anos e foi responsável pelo envio da maior expedição exclusivamente feminina à Antártida em 2016. Em 2023, o grupo que eu integrei quebrou esse recorde, e contemplou 109 mulheres e pessoas não-binárias, selecionadas para integrar o programa de capacitação para lideranças e para a expedição à Antártida.
Não sabia ao certo o que me esperava. Sabia apenas que faria parte de uma expedição com outras mulheres para juntas aprendermos e trocarmos sobre liderança. Mas por que fazer isso na Antártida? A simbologia de falar sobre mulheres, ciência e mudanças climáticas é poderosa. Primeiro porque apesar de atualmente a Antártida contar com vários centros de pesquisa, mais mulheres passaram a trabalhar in loco somente desde o final da década de 1970. Antes disso, elas foram oficialmente proibidas pelos países que organizavam programas de investigação no continente. Podiam até acompanhar os maridos em uma expedição, desde que nunca saíssem do navio e não pisassem em solo.
A Antártida, assim como a Amazônia, é imponente e está ameaçada
Depois de uma longa jornada que começou em São Paulo, com escala em Buenos Aires, embarcamos em um navio de cruzeiro em Puerto Madryn, na Argentina, finalmente partimos para a aventura rumo ao continente mais ao Sul do mundo, que alguns até chamam de “fim do mundo”. Trabalhando com florestas e mudanças climáticas na Amazônia, já viajei bastante de barco pelos nossos rios. Todos eles bem diferentes do que nos levaria à Antártida.
Como amazônida, estou acostumada com superlativos. Ali, fui apresentada a outras grandezas. A Antártida é um continente gigante, cerca de 40% maior que a Europa, com a maior parte do seu território coberta pelo manto de gelo. Para chegarmos lá, enfrentamos ondas de até 8 metros de altura, longas tempestades e fortes ventos, o que deixou o experiente capitão do navio alarmado e me deixou boa parte da viagem passando mal. Parece que para chegar ali, precisamos passar por alguns testes.
Enquanto dentro do navio tínhamos uma programação de treinamento de liderança, seminários, grupos de trabalho, sessões de desenvolvimento de estratégia e colaboração, a Antártida se impunha. A todo o momento, os planos precisavam ser reprogramados pelas condições do clima e do mar.
Além da teoria, tínhamos vivências práticas para ver tudo com nossos próprios olhos, através de desembarques em botes – que me lembraram as “voadeiras” que usamos nos furos dos rios. Tivemos a chance de observar a biodiversidade e os icebergs, caminhar e escalar montanhas de neve, explorar ilhas e até visitar uma que misturava fogo e gelo, a Ilha Decepção. A ilha fica localizada na caldeira de um vulcão ativo, que antes abrigou uma estação baleeira e hoje abriga estações de pesquisa durante o verão, e é administrada sob o Sistema do Tratado da Antártica. De decepção não tinha nada.
Além disso, um dos locais que decidimos não visitar para evitar qualquer risco de contaminação durante a viagem foi a Geórgia do Sul, onde a gripe aviária passou a assolar a fauna local pela primeira vez este ano. No final das contas, a Antártida parecia o lugar ideal para falarmos sobre a necessidade de construir modelos de liderança adaptativa, responsiva às incertezas cada vez mais presentes nas nossas vidas por conta da emergência climática que vivemos. Se há alguma incerteza sobre quantos anos ainda temos pela frente para ajustar o rumo e garantir que tenhamos um futuro com um aumento da temperatura média global em até 1,5º C até 2100, considerado mais seguro à humanidade, algumas certezas são incontestáveis. O derretimento do manto de gelo de parte da Antártica, principalmente a ocidental, é inevitável.
Se parte dos impactos é impossível de evitar, precisamos de ações concretas e efetivas para conter o que acontecerá no futuro. Cada fração de grau de aumento das temperaturas intensifica ameaças aos ecossistemas e às pessoas e pode fazer com que ela nos atinja cada vez mais, seja através do aumento do nível do mar, que afeta principalmente cidades e pessoas às margens de áreas costeiras, ou do impacto na temperatura global e nas mudanças nos sistemas meteorológicos, que afetam a todos nós. Definitivamente, o que acontece na Amazônia e na Antártida não fica por lá, mas afeta a todos nós.
A sustentabilidade do nosso planeta está em crise, assim como o estado de liderança no nosso mundo
Os líderes atuais não têm sido capazes de agir com a urgência que precisamos para proteger o planeta. Um exemplo disso é a Conferências das Partes da Convenção de Clima da ONU que está em curso nos Emirados Árabes Unidos, que ocorre agregando negociações climáticas ao mesmo tempo em que novos contratos de exploração de petróleo são negociados. Até agora, não temos uma sinalização concreta de que os líderes estão verdadeiramente dispostos a se comprometer com uma transição justa para uma economia que não dependa de combustíveis fósseis. E se olhamos para quem são essas pessoas, elas são majoritariamente homens brancos, velhos e ricos. Precisamos mudar radicalmente o estilo de liderança se quisermos viver bem e termos uma trajetória menos predatória neste planeta – e isso envolve incluir mulheres, negros, pessoas LGBTQIAP+, indígenas, comunidades tradicionais e grupos vulnerabilizados.
Trocar conhecimento com mulheres de várias áreas do conhecimento – desde cientistas e negociadoras climáticas, meteorologistas, especialistas em inteligência artificial, biólogas, engenheiras de infraestrutura e energia renovável, físicas, astrônomas, matemáticas, economistas, líderes da filantropia, do setor financeiro e comunitárias, até pessoas que aconselham governos, que gerem empresas e dirigem fluxos monetários – é de um privilégio sem igual. Isso porque mulheres ainda são minoria nessas áreas do conhecimento. Globalmente, 71% dos pesquisadores universitários nesse campo são homens. No Brasil, a representação de mulheres em cargos de liderança nessas áreas é ínfima e está entre 0% e 2%. Quando falamos em mulheres da Amazônia, o quadro é ainda mais alarmante.
A oportunidade de compor uma rede formada por mulheres líderes, atuando em várias áreas do conhecimento ao redor do mundo é única, porque essa é uma maneira de enfrentar um sistema que estruturalmente não dá a devida visibilidade ao trabalho das mulheres. A diversidade e a inclusão ainda têm um longo caminho a percorrer. Assim como em qualquer outra parte do mundo, além de aumentar o número de mulheres, é importante garantir uma maior representatividade de diferentes origens geográficas, linguísticas, disciplinares e de gênero. Para questões complexas, quanto mais diversidade tivermos, melhor equipados estaremos para fazer frente aos desafios, diminuir as incertezas e avançar em soluções efetivas e de longo prazo.
O que a Antártida e a Amazônia têm em comum?
É normal comparar algo novo ao que lhe é familiar. Apesar de parecer bem improvável, vi algumas semelhanças entre a Amazônia e a Antártida e destaco algumas. Primeiramente, as duas regiões possuem um ar de romantização e mistério. Ambas são vistas como regiões selvagens e de ecossistemas intocados, o que está longe de ser verdade. Apesar de ninguém morar permanentemente na Antártida, ela é cada vez mais é um destino turístico, e antes de se firmar com um relevante número de bases de pesquisa de vários países – incluindo a Estação Comandante Ferraz, do Brasil – dependia da indústria baleeira, altamente predatória, não-lucrativa e subsidiada. Será que podemos sonhar que a Amazônia deixará para trás a indústria ilegal que destrói a floresta e terá mais centros de pesquisa e turismo? Afinal, aqui temos 29 milhões de habitantes, o que torna tudo ainda mais complexo e urgente.
Além disso, nos dois lugares, as mudanças climáticas já chegaram e estão afetando os ecossistemas e quem ali vive de maneira significativa. Apesar da Amazônia hoje estar sofrendo com a pior seca de todos os tempos, temos o maior reservatório de água doce do mundo, na forma de rios. Já na Antártida, esse reservatório está na forma de gelo e neve. Outra similaridade é que da mesma forma que não podemos generalizar algo sobre a Amazônia, o mesmo acontece com a Antártida. Nos dois lugares, não há um ambiente uniforme, e algumas partes estão bem mais vulneráveis do que outras. Cada microrregião tem suas particularidades, tendências e um microclima.
Nos dois lugares, as mudanças climáticas já chegaram e estão afetando os ecossistemas e quem ali vive de maneira significativa. Apesar da Amazônia hoje estar sofrendo com a pior seca de todos os tempos, temos o maior reservatório de água doce do mundo, na forma de rios. Já na Antártida, esse reservatório está na forma de gelo e neve.
Após 20 dias pisando no solo, na neve e no mar de uma das regiões mais isoladas do mundo, eu pude ver, ouvir e sentir o que pulsa ali. Com a Antártida, aprendi que só nos importamos com aquilo que nos envolvemos e conhecemos. E trago para a Amazônia este aprendizado. É preciso convencer – primeiramente os amazônidas, e depois o resto dos brasileiros e do mundo – de que precisamos nos envolver e conhecer o verdadeiro valor dessa região e dos seus povos, conhecimentos e cultura. Com uma COP a ser hospedada em Belém em 2025, nosso tempo já está contando e não podemos decepcionar. Pela Amazônia, pela Antártida e por nós mesmos.
A Amazônia e a Antártida – ambas substantivos femininos – estão nos comunicando o senso de urgência. Será que estamos dispostos a ouvir?
Que privilégio é termos uma mulher da nossa região amazônica, destacada para uma missão como essa! Parabéns e muito sucesso nas demais jornadas que virão! Oramos e torcemos por você 🙏