Desde 1853, há registros do povo Arara na região dos rios Xingu e Iriri, no Pará. Ainda vivendo na mesma região, atualmente, eles ocupam três terras indígenas: Terra Indígena Arara, Terra Indígena Arara da Volta Grande do Xingu e Terra Indígena Cachoeira Seca. Os Arara da TI Arara tiveram seus primeiros contatos entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, e baseavam sua alimentação: No início dos anos 1980, a Funai estabeleceu um Posto de Vigilância e Proteção cujos servidores inseriram instrumentos para pesca, implementaram roçados e orientaram os Arara na produção de farinha. Estes postos funcionaram até 2010 estritamente na caça e no consumo de vegetais. No entanto, estes hábitos mudaram radicalmente com a chegada de um inimigo que os povos do Xingu não conseguiram derrotar: a Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
Em 2010, quando a instalação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte era discutida, os indígenas se posicionaram terminantemente contra sua construção, mas acabaram cedendo às negociações, que incluiam medidas compensatórias. Em setembro daquele ano, a empresa responsável pela construção de Belo Monte, Norte Energia, iniciou o Plano Emergencial (PE), pagando por dois anos, com acompanhamento da Funai, R$ 30 mil por mês a todas as aldeias indígenas do Médio Xingu.
A hidrelétrica só viria a funcionar de fato seis anos depois, mas a partir do início das medidas compensatórias, os danos e seus impactos se intensificaram. Os Arara nunca tinham recebido um montante de recursos tão grande e começaram a pedir utensílios como bombas de água, voadeira e gerador de luz. Eles receberam também comida. Muita comida diferente da que estavam acostumados a comer. Alimentos ultraprocessados que até então não faziam parte das refeições nas aldeias. Bolacha recheada, salsicha, refrigerante, macarrão, arroz, sal e açúcar começaram a ser usados com muita frequência e hoje fazem parte da rotina deles. As listas com os pedidos dos indígenas eram supervisionadas pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
O Akitu Arara, ancião de seu povo, conta que, naqueles dois anos, os indígenas passaram a pedir “comida boa”, mas receberam comida processada. “Não foi bom, muita coisa mudou. Nós pedimos o que era bom para comer, mas eu acho que eles pensaram que eram as coisas de branco e davam óleo, davam muita coisa”, conta.
Em agosto, a reportagem da InfoAmazonia visitou a aldeia Laranjal, na Terra Indígena Arara. Embalagens de bombom eram encontradas misturadas com a areia do chão da terra batida. Na cozinha, à frente da casa da indígena Talem Arara, os fardos de arroz, café e açúcar se amontoavam. Todos os dias, Talem e outras mulheres indígenas acordam cedo para começar os preparos da primeira refeição. Naquela manhã, elas fizeram café com açúcar e tapioca com manteiga. Questionada sobre a chegada de Belo Monte, Talem diz que sentiu as mudanças na alimentação. “Começamos a comer (alimentos processados) e foi isso. As coisas mudaram. A gente não usava sal, nem colorau na comida, era só água”, conta.
Com o objetivo de investigar o impacto da mudança alimentar dessa população após a interferência do Plano Emergencial, a InfoAmazonia solicitou ao Ministério da Saúde, via Lei de Acesso à Informação (LAI), os números de casos de doenças crônicas não transmissíveis em indígenas do povo Arara entre 2010 e 2023. As doenças crônicas são aquelas que apresentam início gradual, com duração longa, cujos sintomas possuem tratamento, mas não cura.
O Ministério da Saúde enviou os dados dos indígenas da TI Arara e da TI Arara da Volta Grande do Xingu, cuja população somada é de 632. De 2014 até junho de 2023 foram registrados 45 casos, sendo 87% deles de hipertensão e 13,3% de diabetes. As mulheres e os homens são atingidos na mesma proporção, sendo 53% dos casos em mulheres e 47% nos homens.
Os dados anteriores mostram que entre 2010 e 2013, nenhuma doença crônica foi registrada. Em 2014, quando foram anotados os primeiros registros, foram 12 casos. Mais 33 casos foram registrados até 2023. Os dados são cumulativos, justamente porque as doenças não têm cura.
A nutricionista Larissa Ferreira, especializada em Saúde Pública e mestre em Biodiversidade e Conservação pela Universidade Federal do Pará, explica que as doenças crônicas evoluem devagar e são assintomáticas nos primeiros anos. “É realmente com o tempo de exposição prolongada a esses fatores ambientais, no caso são os hábitos alimentares inadequados, que vão aparecendo os sintomas. Os sintomas podem levar à perda da capacidade funcional do indivíduo, impedindo a realização das atividades cotidianas e o tornando dependente”, explica.
Observando o levantamento por faixa etária, os adultos de meia idade, entre 40 e 59 anos, são os mais atingidos, compondo 49% dos casos. Os idosos com mais de 60 anos compõem 26,6%, adultos com idade entre 20 e 39 anos são 20% e a população de 0 a 19 anos é 4,4%.
A nutricionista Larissa faz um retrospecto de treze anos, quando o povo Arara começou a receber a alimentação do Plano Emergencial. Nessa época, esse grupo deveria ter entre 27 e 49 anos. “O tempo de exposição é um grande fator e isso tudo é resultado do consumo dessas formulações industriais dos produtos empacotados com muito sódio, carboidrato refinado, aditivos”, explica.
O indigenista Leonardo Halszuk trabalha apoiando cadeias produtivas de povos indígenas do Médio Xingu há mais de dez anos. Em 2019, Halzuk começou a atuar diretamente com o povo Arara. Ele conta que os indígenas mais jovens são os mais interessados nos alimentos não tradicionais. “Os mais velhos não se interessam tanto por bolacha, pelos produtos industrializados. Eu observo que as gerações mais novas estão a fim de provar o novo. Se você for nas aldeias, os mais velhos são pessoas magras, diferente dessa geração de 40”, diz.
Belo Monte hoje
A Usina Hidrelétrica de Belo Monte está com a licença de operação vencida desde novembro de 2021, mas continua funcionando. Em junho de 2022, o Ibama emitiu parecer mostrando que a empresa Norte Energia cumpriu apenas 13 das 47 condicionantes socioambientais estabelecidas pela licença de operação concedida em 2015.
Em junho deste ano, em nota à reportagem da Folha de S. Paulo, o Ibama afirmou que existem sérios riscos caso a hidrelétrica pare de funcionar. “Este risco deriva do fato da imprevisibilidade técnica do deplecionamento: Rebaixamento do nível de água de um reservatório ou diminuição do volume de água armazenado em um reservatório completo dos reservatórios, por não haver prognósticos ambientais desse cenário, levando a situações para as quais não há medidas de controle, monitoramento, mitigação e/ou compensação nem sequer planejadas”, disse, em resposta à Folha.
A reportagem da InfoAmazonia também questionou o Ibama a respeito da licença e a avaliação mais recente do órgão sobre o impacto do empreendimento, mas não obteve resposta. A reportagem também questionou a Funai sobre a avaliação do Plano Emergencial executado naqueles anos e sobre os casos de doenças crônicas nas aldeias. A fundação se limitou a responder que a responsabilidade deste tema é da Secretaria de Saúde Indígenas (Sesai), órgão dentro do Ministério da Saúde, responsável pela saúde da população indígena.
“No que se refere à saúde indígena, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) esclarece que o responsável pelo assunto no país é o Ministério da Saúde. A Funai não cuida diretamente da matéria, mas sim a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai/Ministério da Saúde), que possui a competência institucional de coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) no Sistema Único de Saúde (SUS)”, disse, em nota.
A Norte Energia também foi procurada. A empresa disse que não monitora os casos de doenças, porque estas são “informações de responsabilidade do órgão público de saúde indígena”. Também afirmou que a Terra Indígena do povo Arara está em área de influência indireta do empreendimento e que a empresa desenvolve na região o Programa de Atividades Produtivas, de incentivo à agricultura familiar.
“Para ambos os povos, a companhia desenvolve ações que contribuem com osaspectos alimentares”, argumenta a Norte Energia. Leia a nota completa da empresa aqui.
O Ministério da Saúde foi procurado. Em nota, o órgão afirmou que a secretaria realiza oficinas educativas em saúde e nutrição, consultas de acompanhamento e qualificação profissional dos agentes de saúde que atuam nos 34 Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). O Ministério da Saúde não respondeu especificamente sobre os Arara que estão adoecidos e também não fez as avaliações sobre a gravidade e as causas das doenças, conforme solicitado pela reportagem.
“[…] o caráter crônico dessas doenças exige um acompanhamento e tratamento de maior complexidade no manejo das ações, por se tratar de uma linha de cuidado permanente. Esse acompanhamento de saúde necessita de uma articulação de cuidados associados, tanto por parte dos indivíduos/comunidades indígenas, como por parte dos profissionais inseridos na organização do processo de cobertura assistencial”, disse. Leia a nota completa aqui.
Etnocídio
A alimentação do povo Arara também sofreu interferência de outra grande construção: a Rodovia TransAmazônica. Inaugurada em 1972, durante o governo do ditador general Emílio Garrastazu Médici, a rodovia representou a mudança de vida das populações indígenas da região. No caso dos Arara, o indigenista Leonardo Halszuk explica que esse povo foi obrigado pelos militares a se deslocar mais constantemente, fugindo de não indígenas, sem conseguir realizar suas plantações. Além disso, durante essa época a Funai também estabeleceu uma Frente de Atração, o que pressionou ainda mais os indígenas. Aos poucos, isso foi alterando a forma deles se alimentarem.
O aumento significativo da mudança teria sido com o Plano Emergencial. Em 2020, a Justiça Federal acatou parcialmente uma Ação Civil Pública, proposta pelo Ministério Público Federal (MPF), em face da Norte Energia, da Funai, do Ibama e da União. O MPF alegava que as terras indígenas impactadas pela Hidrelétrica de Belo Monte viviam um etnocídio. “A situação antevista se materializa e os povos indígenas são hoje lançados à zona limítrofe de um irreversível etnocídio”, afirmou a procuradora Thais Santi.
O MPF afirmou que o Plano Emergencial gerou desunião entre as aldeias indígenas,; aumento no consumo de drogas lícitas e ilícitas,; abandono da agricultura de subsistência, aumento do lixo nas aldeias, inadequação das casas construídas, aumento de doenças sexualmente transmissíveis e aumento de doenças crônicas.
Em 2020, a Justiça Federal concordou com a procuradora: “Há probabilidade suficiente de que essa cadeia de eventos interferiu significativamente nos traços culturais, modo de vida e uso das terras pelos povos indígenas, causando relevante instabilidade nas relações intra e interétnicas”, disse a juíza Maria Carolina Valente do Carmo.
A nutricionista Larissa Ferreira explica que, antes do Plano Emergencial, a alimentação do povo Arara era considerada das mais saudáveis. “Milenarmente, o povo Arara seguia todas as recomendações alimentares que hoje insistimos que sejam adotadas no Brasil, que é o uso mínimo de processados e o consumo abundante da alimentação in natura. Na TI Cachoeira Seca, você chega numa aldeia e vê plástico para todo lado, então você já consegue ver ali o biotipo deles, o quão impactante é esse modo de alimentar que o branco influi ali nas questões de saúde. A gente vê indígenas diabéticos, hipertensos, com sobrepeso”, afirma.
Um outro impacto da chegada dos alimentos fornecidos todos os meses, é que os indígenas começaram a pescar e fazer menos coleta de frutas, o que os levou a perder práticas alimentares e culturais importantes.
Reintrodução alimentar tradicional
O indígena Akitu faz parte de um grupo de indígenas do povo Arara que passou o último ano reconstruindo a própria história alimentar tradicional. Ele e outros araras de sua aldeia, Tybtjigyriwy, Tymbyapé, Pyiak, Mauri’g, Pagiriwa, Euru, Ierumdam e Muriké, foram copesquisadores de um projeto de reintrodução alimentar feito pelo indigenista Leonardo Halszuk.
Durante um ano, os indígenas pesquisaram sobre os alimentos que tinham em seu próprio território. Nos registros, os copesquisadores anotaram informações como: nome dos frutos; descrição do alimento, coleta e preparo; sazonalidade; conhecimento dos indígenas sobre os alimentos.
A pesquisa mostrou que muitos dos frutos recolhidos ainda não eram conhecidos pelas gerações mais jovens dos indígenas. Já outros frutos todos conheciam bem e utilizavam de formas diversas. Halszuk conta que percebeu o potencial dessa pesquisa anos antes, quando os Arara mostraram para ele o Ewé, um fruto que produz manteiga e que o indigenista já conhecia por outro nome: murumuru.
“Ao perguntar aos Arara como eles conheciam o murumuru, me surpreendi com o conhecimento profundo que possuem sobre a espécie. Eles comiam seu fruto de diversas maneiras: comiam a amêndoa macia do fruto verde (ewé magron), comiam a polpa do fruto quando maduro (ewé imunpi) e comiam o embrião germinado dentro do coco das pequenas plântulas que nascem ao redor das plantas maduras (ewé ingru)”, conta Halszuk na sua dissertação de mestrado em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural, pela Universidade de Brasília, que foi o resultado da pesquisa feita em parceria com os indígenas e que relata todo o processo histórico da implantação do Plano Emergencial.
Além de fazer a pesquisa e os registros, o indigenista convenceu a direção da escola que existiam vegetais dentro da TI Arara que poderiam ajudar a compor o cardápio da merenda escolar, levando os alimentos que estavam coletando para ensinar às crianças o que eram e educá-las tradicionalmente. Uma vez por semana, as crianças recebiam açaí, cará, inhame, milho, tapioca, e diversas frutas e vegetais. O projeto ocorreu por um ano.
Como o projeto se dava uma vez por semana, nos outros dias as crianças continuavam a receber a merenda da escola. O adolescente Muebty Arara conta que já sentiu dor de barriga após se alimentar com a comida do cardápio não tradicional, “era muito açúcar no nescau”. A indígena Pou Arara, mãe de três crianças, diz que o mesmo acontece com os filhos dela. “Minha filha falava que doía (a barriga), meu menino maior não come, ele fala que é muito doce”.
Pou conta que os filhos não conheciam alguns dos alimentos tradicionais que passaram a receber na escola com o projeto. “Eles não conheciam porque a gente não fazia, mas eles gostaram. Quando eles não sabiam o que era, perguntavam e a gente dizia que era merenda. Eles começaram a pedir pra gente fazer em casa também”, conta.
Bom e saudável
O povo Arara ainda tem um grande desafio para conseguir retornar a alimentação tradicional que seus ancestrais tinham. O contato com não indígenas levou a população a adquirir um outro conhecimento sobre o que é saudável. Durante a pesquisa, os indígenas foram provocados a diferenciar o alimento saudável do alimento ultraprocessado. Em suas respostas, a palavra usada por eles para traduzir “saudável” – que não existe entre os Arara – foi “kureb”, que significa “bom”, na língua Karib.
Enquanto a reportagem esteve na aldeia, participou de uma primeira reunião em que eles tentaram definir esse conceito. Como solução, os indígenas começaram a propor falar das doenças. Chamaram diabetes de “doença do açúcar”, para alertar que esse consumo pode fazer mal. Esses conceitos e traduções ainda estão sendo trabalhadas de forma gradual.
“Ninguém tinha um entendimento de que a comida que vem da cidade deve ser comida com moderação, que tem regras. Comiam à vontade e agora estão tendo as consequências disso, então parte do trabalho é informar aos Arara que essa comida é diferente e que os danos da utilização inapropriada da comida vêm com um tempo longo”, explica o indigenista Halszuk.
Essa preocupação está relacionada à uma discussão nacional, sobre a inclusão de alimentos da agricultura tradicional dos povos indígenas no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
No Amazonas, uma nota técnica instrutiva da Superintendência Federal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Amazonas (SFA/AM), da Agência de Defesa Agropecuária e Florestal do Estado do Amazonas (ADAF) e do Ministério Público Federal do Amazonas (MPF/AM), de 2017, garantiu que os indígenas tenham seus alimentos comercializados dentro das escolas indígenas de seus próprios territórios e estejam, portanto, efetivamente incluídos na política pública de merenda escolar.
A nota técnica retira a obrigatoriedade de inspeção e regularização dos alimentos feitos pelos indígenas, ou seja, desburocratiza a questão, entendendo a necessidade de apoiar as atividades econômicas e de fortalecer essas culturas. Em 2020, uma outra nota técnica foi emitida, dessa vez de caráter nacional, para garantir a todos os estados a experiência do que ocorreu no Amazonas. O objetivo agora é fazer cumprir a política pública, que estabelece o uso de 30% do recurso da alimentação escolar para a compra de alimentos da agricultura tradicional.
A expectativa do povo Arara é de que a partir disso eles possam continuar fornecendo alimentação tradicional para a escola em que as crianças estudam, ensinando a manter a cultura e recebendo incentivo financeiro para isso.
A reportagem da InfoAmazonia viajou até a aldeia Laranjal, na Terra Indígena Arara, na região do Médio Xingu, a convite do Instituto Socioambiental (ISA).