Os povos indígenas, ao reconhecerem e respeitarem o sistema legal e judiciário no caso do marco temporal, demonstram maior civilidade e respeito às leis e instituições do Estado de direito do que aqueles que deveriam proteger e promover seus valores
No último dia 30 de agosto, o mundo assistiu, incrédulo, ao petulante voto do ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal – STF, a Suprema Corte brasileira, no caso de repercussão geral que tem como pivô a hedionda “tese” do marco temporal.
O ministro que proferia o voto vestia a Toga, ícone máximo do pilar civilizatório ocidental. Tal ícone foi estabelecido Contrato Social que, teoricamente, nos separaria da barbárie ao inaugurar o Estado Democrático de Direito. Se recorrermos a todos os teóricos do Estado, à toda a discussão que historicamente nos trouxe até aqui enquanto sociedade, desde Platão até os Federalistas, passando por Rousseau e Hobbes, temos que a instituição do Contrato Social é o marco civilizatório inaugural de nossa humanidade e que tudo o que social e politicamente construímos desde então assenta-se sobre esses parâmetros de civilidade e humanidade: reformulados e aperfeiçoados, esses valores continuam, todavia, a fundar e fundamentar nossa humanidade, sempre nos dissociando, epistemológica e politicamente, do “estado de natureza” no qual estaríamos distantes do humano e próximos aos animais, à negação da humanidade.
Mas voltando ao ministro: lendo seu voto, ele recorreu à vasta literatura para fazer um sobrevôo pela verdadeira barbaridade genocida e etnocida que constitui a gênese do Estado brasileiro: inúmeros exemplos históricos de correrias e bandeiras, expedições de caça e violência aos povos indígenas, foram apresentados pelo ministro que, sob a Toga, contraditoriamente terminou por votar a favor da “tese” de que aqueles povos indígenas perseguidos, dizimados, escravizados, açoitados, violados e violentados na longa noite de genocídio etnocida que constitui a história do Brasil; depois de terem sido violentados e expulsos das terras que tradicionalmente sempre ocuparam, não têm direito ao usufruto constitucionalmente assegurado à demarcação desses territórios tradicionais nos casos em que não estivessem nessas terras em 05 de outubro de 1988.
Reconhecendo o morticínio perpetrado por nossa sociedade, com chancela legal, o ministro ainda assim votou pela continuidade de tal projeto. Sequer se preocupou em distorcer os fatos históricos, em negar que a história da sociedade e do Estado brasileiro é a história de iniqüidades e morticínios, antes de afirmar, em Plenário da Suprema Corte, que tal projeto deve prosseguir. Enumerou episódios dolorosos, recorrendo a documentos históricos para afirmar que sim, houve pilhagem e assassínio e que, mesmo assim, defendia a referida “tese”.
O teor da “tese” consiste em que, por terem sido açoitados, violentados, perseguidos, escravizados, ameaçados física e culturalmente e, portanto, terem sido forçados por meios violentos a abandonar tais territórios de modo a não estarem neles em 05 de outubro de 1988, tais povos não têm direito à demarcação desses territórios.
Cumpre lembrar que tal “tese” foi estabelecida pelo próprio STF em 2009 quando, debruçando-se sobre a demanda Macuxi por Raposa Serra do Sol, estabeleceu 19 condicionantes das quais emana tal proposição: qual seja, a de que, depois de terem sido forçados por meios violentos – inclusive pelo Estado, ativa e dolosamente – a se retirar de seus territórios, não teriam, por isso mesmo, o direito de reivindicar a tradicionalidade de sua ocupação por não estarem nesses territórios em 05 de outubro de 1988.
O cinismo dessa “tese” só pode ser traduzido pela seguinte asserção: “eu, representante do Estado que vos violou, inclusive por meio do aparato estatal, inclusive por meio de leis, como os Autos da Devassa – na era cabanagem – ou o assimilacionista e etnocida Estatuto do Índio – declaro que vós, por terem sido por nós perseguidos e violentados, por nós expulsos de seus territórios historicamente, agora não têm direito a reivindicar seu usufruto com a devida chancela do Estado por não estarem nesses territórios em 05 de outubro de 1988: te corri à bala, e se não estavas em seu posto em outubro de 88, sinto muito, problema seu”.
Colocar nesses termos é essencial para que não percamos de vista o sarcasmo desse verdadeiro acinte não somente aos povos indígenas como também a todos os cidadãos e cidadãs brasileiros, à Humanidade e aos valores mais caros ao Ocidente e ao Estado democrático de direito em si, nos desguiando das prestidigitações malabaristas que a chicana dos rábulas convertem em “argumentação técnico-jurídica”.
Paralelamente a esse absurdo julgamento com repercussão geral na Suprema Corte, vale enaltecer, tramita em caráter de urgência no Senado o Projeto de Lei 2903/2023, decorrente do PL 490/2023: alicerçado sobre a mesma violenta proposição, o Projeto de Lei ainda por cima pugna que povos indígenas que, tendo sofrido por séculos a atuação etnocida da sociedade brasileira – e, reitere-se, do Estado – teriam “perdido seus traços culturais, deixando de ser indígenas e, portanto, sendo possível ao Estado revisar, com base em tal ‘perda de cultura’ seu direito às terras indígenas demarcadas”.
Novamente, não vejo como formular de outra maneira se não em primeira pessoa: “eu, legislador eleito pelo povo, no usufruto dos poderes a mim conferidos nesse sentido, discuto no Congresso Nacional o destino dos povos indígenas, sua sobrevivência; se serão finalmente extintos e dizimados, com base nos efeitos devastadores da própria prática etnocida que tal sociedade, por meio do Estado e com aval das leis, perpetrou, como foi o caso do famigerado Estatuto do Índio, Lei 6.001/1973, que tutelava os povos indígenas ao tomá-los por crianças incapazes e inimputáveis a quem o Estado deveria domesticar e esbranquiçar por múltiplos meios e recursos a fim de que, perdendo sua cultura, fossem finalmente ‘integrados à comunhão nacional’, uma vez que, diante de séculos submetidos a tais práticas etnocidas, finalmente ‘perderam sua cultura’”.
Ver um ministro da Suprema Corte, abrigado sob a Toga, no conforto de sua cadeira e posição na sociedade, votar como votou, defendendo a perpetuação do etnocídio e do genocídio como política de Estado, enquanto os povos indígenas, educada e civilizadamente, assistiam aflitos a tal julgamento do lado de fora, me fez recordar um episódio por mim vivenciado na Escola de Direito da Universidade Federal do Amazonas, UFAM, onde fiz meu mestrado em antropologia social.
Na ocasião eu assistia a uma excelente palestra de professora doutora da Universidade sobre direito e povos indígenas em um simpósio científico quando um aluno do 5º ano de direito, aberto o espaço para perguntas, fez uma série de rodeios – visivelmente preocupado em esconder seu desprezo e rancor – para finalmente declarar achar “absurdos os tantos privilégios de que os povos indígenas, que mal sabem falar português e escrever, verdadeiros estrangeiros dentro do Brasil”, usufruem: discrepantes, seus privilégios ferem a soberania nacional e instauram desigualdades no seio do Estado democrático, argumentava.
“Veja-se por exemplo”, prosseguiu, ganhando coragem, o estudante de direito, “o caso simples do ingresso desses indígenas em órgãos do Judiciário brasileiro: diferentemente de todos os ‘cidadãos comuns’ esses indígenas entram seminus, sem camisa, de bermuda e, pior!, entram armados – usando arcos e flechas, lanças e bordunas, forçam o Judiciário a lhes dar um tratamento privilegiado e desigual”.
Não me contive e solicitei à egrégia professora o direito à réplica, fazendo este quinto-anista entender o que significa, no direito – sua área de estudo – o princípio da isonomia, resgatando Hans Kelsen e explicando qual a importância de se oferecer condições diferenciadas para que os diferentes, no exercício de sua diferença, poderem usufruir de direitos em condições de igualdade. Busquei demonstrar-lhe como, historicamente, tais povos foram, mais do que alijados de direitos, subjugados violentamente pelo Estado com o uso da Lei, ao que o estudante retrucou que “no fundo, tudo isso são privilégios: o Poder Judiciário se curva perante eles, cedendo em demasia enquanto eles em nada cedem”.
A isso contra-argumentei com uma pergunta: em termos de cessão, vamos analisar quem cede e quem em nada cedeu ou cede jamais? Argumentei que que tais povos, mesmo depois de terem sido caçados e mutilados, escravizados e dizimados, pelo aparato estatal, com chancela do Estado e do Poder Judiciário, fundamentando tais práticas em leis, ainda tinham a generosidade, a benevolência (ou, melhor ainda, a civilidade) de, depois de tudo isso, ainda reconhecer nossa língua, nossos costumes, nossas leis, nossa Constituição, nossas instituições, nossos Procuradores da República, nossos Juízes, nossas cortes e leis como legítimos, e ainda acessavam tal sistema, a despeito de toda a dificuldade, reconhecendo-o, endossando-o, litigando civilizadamente em nossas cortes para que faça valerem as nossas leis: litigando respeitosamente para que os deixemos continuar existindo enquanto tais. Resta inequivocamente claro quem cede, nessa história, e quem não.
Ver o Congresso Nacional e o togado André Mendonça confortavelmente decidindo acerca da continuidade do etnocídio e do genocídio como política de Estado, sob a chancela legal, me fez recordar desse episódio porque, no fundo é disso que se trata: novamente, os povos indígenas demonstram publicamente sua civilidade ao reconhecer nosso idioma, nossas leis, nosso Poder Judiciário, nosso Estado, nossas instituições como legítimos para determinar, por nossas leis – sem nos forçar a nos adequar a seus sistemas sociopolítico e epistemológico – a continuidade ou não de sua existência como povos, como humanidade. O que está em xeque é a nossa humanidade, e não a deles; a nossa civilidade, e não a deles – é isso que a sociedade precisa finalmente entender.
O Estado democrático de direito, inaugurado pela Constituição – que vem sendo acintosamente desrespeitada pelo Legislativo e pelo Judiciário – preconiza um pacto civilizatório centrado no respeito e que este pacto, afinal, seria o que nos civilizaria, segundo os próprios valores fundantes do Ocidente moderno: quem o diz são os teóricos de todo esse sistema, os pilares sobre os quais se assentam a nossa civilização, não eu, ou os povos indígenas. O conceito de civilização emerge e permeia cada desvão de debate que trouxe a o ocidente moderno burguês até a construção daquele recinto onde votava-se o destino dos que, nesse processo, sempre foram relegados ao “plano da natureza” e, portanto, epistemologicamente, associados ao “estado de natureza” cuja negação é, filosoficamente, o pilar de todo nosso sistema de justiça e organização social.
Mas diante de tudo o que temos assistido, só nos resta uma conclusão: se empregarmos o conceito fundante desse arcabouço normativo, centrado na emergência da civilização – o modo de vida ocidental moderno – como negação do estado de natureza a que sempre foram relegados os outros oprimidos por esse sistema, a questão adequada a se enunciar é: se há algum civilizado nessa história, uma vez mais, são os povos indígenas.
É possível dizê-lo, no manejo dos regimes de valores que fundamentam a legitimidade da própria Toga, uma vez que os povos indígenas são aqueles que, nessa história, mais endossam, reconhecem e respeitam nossos Poderes Legislativo e Judiciário, nossa Constituição Federal, reiteram o pacto que eles fazem, com isso, em prol do Estado democrático de direito. Talvez seja até possível dizer que, por sua natureza sociopolítica e condição histórica, os povos indígenas sejam os únicos a terem realmente firmado um Contrato Social conosco e nosso sistema de valores, enquanto nossos representantes nesses poderes desrespeitam não apenas os povos indígenas e sua humanidade, sua cidadania, como também a Humanidade como um todo ao desrespeitar nossos próprios pilares fundantes e fundamentais de humanidade e civilidade: agem em desacordo com os próprios regimes simbólicos, epistemológicos, políticos e sociais que fundamentam e legitimam a Toga que vestem.
Como dizia Michel de Montaigne em seu célebre ensaio (escrito no século XVI) sobre “os canibais”: “o diabo é que eles não usam calções”. Ou seja, a única diferença, para Montaigne, entre os selvagens e os civilizados (depois de demonstrar como seus costumes, no fundo, são tão humanos como os costumes da humanidade ocidental, não obstante tão diversos) é que os selvagens não usariam calções.
Mas ó, grande Montaigne, quão triste é a história do Ocidente: estavas redondamente enganado porque há uma brutal diferença entre “selvagens” – indígenas – e “civilizados” – não-índios, e é justamente o fato de que os selvagens, que não usam Toga, serem os únicos que fazem jus a ela.
O diabo, Montaigne, é que nós que não merecemos a Toga, pois se há alguém, nessa história toda que, de acordo com os nossos valores – de acordo com os valores e critérios fundantes de nossa civilização e humanidade – faz jus à Toga e a tudo o que ela representa, esse alguém são os índios. Em outras palavras, os não-ocidentais se mostram, com mais esse episódio, melhores ocidentais que nós.