Análise de dados do grupo Geo-Yanomami mostra que, além de garimpo, território também tem registro de desmatamento. Problema é motivado por avanço do agronegócio.
O avanço da fronteira agrícola no leste da Terra Indígena Yanomami (TIY) e o crescimento nos alertas de desmatamento: Eliminação total da vegetação nativa numa determinada área seguida, em geral, pela ocupação com outra cobertura ou uso da terra. no seu entorno aumentaram o risco imediato à saúde das populações locais, segundo mostrou um levantamento inédito (leia mais abaixo). O interesse do agronegócio no território não é recente, mas ele tem se intensificado nos últimos anos, apesar das diversas denúncias feitas por organizações indígenas.
Segundo o líder Yanomami, Davi Kopenawa, as fazendas de gado que invadem o leste da terra indígena já são denunciadas pela Hutukara Associação Yanomami há quase 10 anos. No entanto, muitos dos invasores permanecem na região e, em alguns casos, novos alertas de desmatamento indicam que suas áreas de pastagem estão crescendo.
“Nós denunciamos muitas vezes as fazendas que destroem a nossa terra, mas as autoridades não escutam”, declara Kopenawa, presidente da Hutukara, principal entidade indígena da região, criada em 2004 para defender a integridade física dos moradores da TIY e de todos seus recursos naturais.
Ainda que o garimpo seja a principal ameaça ao território, o avanço do agronegócio também põe em risco a integridade da maior terra indígena: Territórios da União reconhecidos e delimitados pelo poder público federal para a manutenção do modo de vida e da cultura indígenas em todo o país. no país, com cerca de 100 mil km² distribuídos entre Amazonas e Roraima. A região ganhou destaque no início de 2023, quando o Ministério da Saúde decretou Emergência Sanitária de Importância Nacional na região, ganhando manchetes de jornais pelo mundo.
Como investigamos o desmatamento na Terra Indígena Yanomami?
Utilizamos imagens de satélite e o sistema Deter para analisar mudanças na cobertura vegetal. Foram identificadas alterações durante o período de agosto de 2016 a novembro de 2022.
A reportagem buscou diversas fontes para entender as implicações das descobertas. Martha Fellows Dourado, do IPAM, analisou o desmatamento em Roraima em comparação com outras terras indígenas. Kleper Karipuna, da Apib, contextualizou a situação da TI Yanomami com outras demandas nacionais. Davi Kopenawa, da Hutukara Associação Yanomami, trouxe a perspectiva das lideranças indígenas locais. Ana Claudia Rorato Vitor e Christovam Barcellos, do GT Geo-Yanomami, explicaram como o mapeamento pode ajudar a coordenar ações humanitárias na região.
Confira mais detalhes nesta página.
Em parceria com o Laboratório InfoAmazonia de GeoJornalismo, o GT Geo-Yanomami verificou como a devastação florestal na TIY está avançando não apenas por conta do garimpo, mas também motivada pelo agronegócio. Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) lideraram o grupo de trabalho para consolidar dados e, futuramente, auxiliar as ações emergenciais em campo. O levantamento também envolveu cientistas da Universidade Veiga de Almeida (UVA), da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), entre outras instituições.
Os autores mapearam como a degradação florestal: Eliminação parcial e gradual da vegetação florestal para a extração seletiva de madeira e de outros recursos naturais. Pode ocorrer também por fogo e alterações climáticas. e o desmatamento avançaram na TIY nos últimos anos. Ao contrário do desmatamento, que é a eliminação total da vegetação nativa numa determinada área, a degradação florestal é a eliminação parcial e gradual da vegetação em um processo que pode ocorrer, por exemplo, com a extração seletiva de madeira, fogo, efeito de borda e seca.
No caso da Terra Indígena Yanomami, as alterações na cobertura vegetal foram medidas por meio de uma combinação de desmatamento, mineração e cicatriz de queimadas oriundos do Deter, sistema de levantamento rápido de alertas de evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia. A análise concluiu que mais de 729,45 km² tiveram alterações deste tipo entre 2017 e 2022. Os pesquisadores avaliaram todo o período disponível para análise do Deter, monitoramento que foi criado pouco antes, em 2016. Já o Sistema TerraClass, responsável por qualificar o desflorestamento na Amazônia Legal brasileira, também indicou que entre 2017 e 2020, novas áreas na região leste da reserva viraram pastagem.
Além disso, os cientistas destacam as diferenças entre a alteração na cobertura vegetal que ocorre por conta do avanço do agronegócio e da atividade madeireira daquela feita pelos próprios indígenas, que, ao se deslocarem pelo território, criam clareiras pequenas em diferentes regiões.
As queimadas foram as principais alterações observadas, tanto em frequência quanto na área total alterada. Entre os 729 km² com alterações, mais de 700 km² estavam ligados ao fogo na TIY. Em comparação com as clareiras, são áreas maiores, de formato alongado e que costumam acompanhar o leito dos rios ou o curso de estradas legais ou ilegais. Já as clareiras, observadas em pequeno número, ocupam áreas menores e têm formato circular.
Segundo os pesquisadores, o fogo em áreas periféricas da TIY, como o leste do território, que é próximo de estradas mais estruturadas, “pode estar relacionado à exploração madeireira e formação de terras para uso em pastagens ou processos agrícolas de larga escala”.
Mudanças no uso da terra
Uma das explicações para o aumento da área que sofreu mudanças de cobertura florestal no território é o avanço do agronegócio no extremo leste da terra indígena, porção mais próxima da cidade de Boa Vista.
“Ainda que o mais famoso na Terra Indígena Yanomami seja o conflito com garimpeiros, a ameaça também ocorre por conta de grileiros, ou seja, de fazendeiros que invadem a área demarcada”, explica Ana Rorato Vitor, coordenadora da análise de desmatamento do grupo Geo-Yanomami e pesquisadora do Laboratório de Investigação em Sistemas Socioambientais (Liss) no Inpe.
A pesquisadora afirma que dados obtidos via imagens de satélite mostram que muitos dos alertas de desmatamento que atingem a TI surgiram nos limites do território e avançaram para dentro da área demarcada no leste da reserva.
“As ameaças que acontecem fora dos limites entram para dentro do território. Embora as terras indígenas sejam uma das melhores barreiras contra o desmatamento, elas são permeáveis. O que muda é o tempo que demora para penetrar. Se você tem um governo que por anos tentou legalizar o garimpo, deu aval para atividades que promovem desmatamento, você tem uma aceleração desse processo”, completa Rorato.
O estado de Roraima é considerado a última fronteira agrícola do país. Única unidade federativa que não é conectada ao sistema nacional de distribuição de energia elétrica, Roraima depende da importação de energia da Venezuela e de usinas termelétricas altamente poluentes.
Esse isolamento, somado à proteção garantida pelas reservas indígenas presentes na área, fez com que o estado fosse menos visado por fazendeiros durante o processo de expansão dos territórios cultiváveis no Norte do país.
“Pensando na complexidade da Amazônia, é muito mais difícil acessar essa área porque ela é muito distante e isolada. O desmatamento e depois o fogo que acontecem nos territórios indígenas são seguidos pela invasão, um alimenta o outro, e aí vem a pastagem e o plantio de grãos”, explica Martha Fellows, pesquisadora e coordenadora do Núcleo Indígena do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).
“Na região de Roraima, essa sequência não ocorre com tanta facilidade porque, economicamente falando, é uma invasão que nem sempre se justifica. Há outras áreas da Amazônia mais visadas para isso”, completa a pesquisadora.
Avanço do agronegócio
Apesar da dificuldade de acesso reduzir o interesse do agronegócio, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a fronteira agrícola já está avançando sobre Roraima.
A área de plantio de soja no estado subiu de cerca de 47 mil hectares em 2017 para mais de 100 mil hectares em 2021, segundo a Pesquisa Agrícola Municipal. Já o rebanho bovino foi de cerca de 787 mil cabeças em 2017 para quase 938 mil cabeças em 2021, de acordo com a Pesquisa da Pecuária Municipal.
Todos os municípios do estado de Roraima que compõem a TIY apresentaram aumento na produção de bovinos nos últimos anos, segundo a nota técnica do grupo Geo-Yanomami produzida com dados do IBGE. Duas cidades que possuem mais de 70% da sua área dentro da Terra Indígena Yanomami, Alto Alegre e Iracema, tiveram o maior aumento proporcional na área de plantio de soja em todo o estado.
A presença de fazendeiros no leste da Terra Indígena Yanomami começou antes mesmo da demarcação definitiva do território. A Hutukara Associação Yanomami denuncia a atuação de grileiros na região há mais de 20 anos, e seu presidente, Davi Kopenawa, já foi alvo de ameaças de morte por pedir a retirada das fazendas ao governo federal.
“Nós começamos há muitos anos a denunciar o homem que destrói. Fizemos vários documentos. Só em 2014 que nós conseguimos a saída do Paludo. Mas conseguimos só um: ainda tem outros fazendeiros invadindo por lá”, diz Kopenawa.
O líder Yanomami faz referência à saída de Ermilo Paludo, criador de gado que por décadas manteve fazendas dentro do território. Em entrevista a um jornal local, em 2013, o ruralista confirmou que chegou a ter 3 mil cabeças de gado na TI.
Finalmente, em 2014, após firmar acordo com o Ministério Público Federal (MPF), Paludo deixou a terra indígena e foi indenizado pela ocupação reconhecida pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) como anterior à demarcação. Segundo o órgão, 12 fazendas ilegais na TI foram desocupadas naquele ano.
Apesar de terem ganhado maior fama, as fazendas de Paludo não foram as únicas que avançaram na região: dados dos sistemas Prodes e TerraClass de desmatamento e mudança no uso da terra mostram novas áreas de pastagem que surgiram no território entre 2017 e 2020.
O mapeamento dessas áreas indica que o desmatamento massivo e contínuo ocorre principalmente nas bordas das estradas que levam a Boa Vista, capital de Roraima, e próximo aos limites da terra indígena, explica Christovam Barcellos, pesquisador da Fiocruz e um dos idealizadores do grupo Geo-Yanomami.
Titular do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Lis/Icict), Barcellos avalia que o trabalho de sistematização de dados do Geo-Yanomami pode ajudar a orientar novas ações humanitárias no território. Para ele, o mapeamento do garimpo ilegal e do desmatamento levam a uma melhor avaliação da situação de desassistência em curso.
“Tinha muita gente indo para ações humanitárias que estava perdida, sem saber o que estava acontecendo. Quando a gente vai pra um terreno tem que saber onde está indo, onde tem pista de pouso, onde tem estrada, para manter a cadeia de abastecimento e ter rotas de fuga, porque pode haver conflito, inclusive com grupos armados. Precisa haver uma estratégia de ocupação do território, e não tinha nada”, afirma Barcellos.
A coleta e sistematização de informações, que envolveu o cruzamento de diversas bases de dados e imagens de satélite, também pode ajudar a reduzir as críticas que as ações de ajuda humanitária receberam até o momento. A falta de diálogo com lideranças locais e de conhecimento da realidade regional são os principais problemas apontados nessas iniciativas, consideradas insuficientes pelos líderes Yanomami.
Ajuda humanitária
As falhas nas ações de ajuda humanitária organizadas até agora já são conhecidas do grande público: em junho, uma reportagem da Agência Pública revelou que o Ministério da Defesa alegou falta de dinheiro e pediu à Funai mais de R$ 16 milhões para levar doações de alimentos às comunidades Yanomami. Os alimentos não chegaram ao destino, e a entrega de milhares de cestas básicas segue paralisada.
Em nota enviada à reportagem, o Ministério da Defesa disse que a Funai não havia repassado o valor solicitado até o momento, afirmou não ter recursos próprios para o trabalho e disse que as cestas “estão sob responsabilidade da Funai”. A InfoAmazonia entrou em contato com a Funai para atualizar a situação da entrega dos mantimentos, mas, até a publicação desta reportagem, não havia recebido uma resposta.
No final do mesmo mês de junho, uma comitiva organizada pelo Ministério da Defesa sobrevoou o território Yanomami sem autorização prévia dos indígenas e sem consultar lideranças locais. A expedição motivou a publicação de uma nota de repúdio coletiva, assinada pelas organizações Hutukara Associação Yanomami (HAY), Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (AYRCA), Associação das Mulheres Yanomami Kumirayoma (AMYK), Associação Wanasseduume Ye’kwana (SEDUUME), Associação Kurikama Yanomami (AKY) e Associação Xoromawë Indígena. O texto pede que o governo trabalhe em conjunto com as lideranças locais para reverter a invasão de garimpeiros e propõe mudanças na forma como a ajuda humanitária tem sido conduzida.
“O governo precisa trabalhar, de fato, de forma integrada e urgente, com ações bem planejadas para que se possa realizar uma desintrusão suficiente para acabar com o garimpo ilegal”, afirmaram as entidades na nota.
População em risco
Pelo menos 17 mil indígenas estão em situação de risco imediato por conta do comprometimento de suas áreas de vivência. Este percentual corresponde a mais de 62% da população Yanomami, de acordo com dados da Secretaria de Saúde Indígena (SESAI) do Ministério da Saúde compilados pelo grupo Geo-Yanomami.
O risco imposto às áreas de vivência foi medido por meio de uma análise que levou em conta tanto a situação dos rios contaminados como a das comunidades ameaçadas pelo desmatamento ou degradação florestal. O risco às comunidades foi calculado a partir de uma análise de alertas do Deter, sistema do Inpe que faz um levantamento rápido das evidências de alteração na cobertura florestal.
De acordo com os pesquisadores, o número de Yanomamis em risco imediato pode ser ainda maior do que o estimado, já que muitos detalhes sobre a mobilidade dos indígenas no território ainda são desconhecidos.
“A nossa análise da área de vivência é conservadora porque nós sabemos que muitas comunidades têm uma mobilidade maior nos territórios, então o impacto pode ser ainda maior do que o calculado no indicador de risco imediato”, explica Ana Rorato Vitor, do Inpe.
De acordo com Kleber Karipuna, diretor da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que reúne associações indígenas de todo o país, o maior desafio para resolver as demandas na Terra Indígena Yanomami é a falta de diálogo entre o governo federal e as organizações que representam as comunidades.
“Faltou colaboração. A própria Apib ficou de fora na construção das ações mais concretas do governo federal. Precisa haver o envolvimento das associações indígenas locais e nacionais, isso é fundamental para esse processo”, explica o líder da Apib.
“A nossa crítica é no sentido de que o que está sendo feito, hoje, é insuficiente. O próprio Ibama tem feito muitas reclamações sobre a quantidade de agentes disponíveis para cobrir uma área do tamanho da TI Yanomami”, completa Karipuna.
O líder Yanomami, Davi Kopenawa, afirma que a emergência Yanomami ainda não acabou, e que os esforços para combater o garimpo e o desmatamento na terra indígena ainda precisam ser intensificados.
“O governo precisa continuar lutando, não pode pensar que a situação da TI Yanomami está resolvida, porque quem vai falar que acabou somos nós”, afirma o líder e xamã.
“O garimpo ilegal entrou mesmo, como uma doença, e quando entra a doença na terra indígena, não tem cura. Trabalhando forte, a gente pode minimizar. Mas se só ficar falando, sem trabalhar, o problema não vai se resolver. A doença continua”, completa Kopenawa.
Esta reportagem faz parte do projeto PlenaMata, e foi produzida como parte do Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira, para promover e difundir o conhecimento científico e análise de dados geográficos na produção jornalística.