Estudo publicado na revista ‘Nature’ buscou entender como as diferentes partes da floresta respondem à seca. A pesquisa foi liderada por uma cientista brasileira, em parceria com outros 80 autores, e mapeou as condições de 540 árvores de 129 espécies diferentes espalhadas por Brasil, Bolívia e Peru.
O céu estava escuro e só a lua iluminava o caminho quando o biólogo Martin Acosta, da Universidade Federal do Acre (UFAC), saiu de um alojamento no entorno de Rio Branco para o meio da floresta. São 2h30 da manhã, e Acosta estava acompanhado por outros três colegas. São eles que o ajudam na missão de escalar algumas das árvores mais altas da Amazônia para coletar amostras que serão usadas para pesquisa científica.
Essa rotina, que se repetiu dezenas de vezes em 2017, é só uma parte do extenso estudo publicado no final de abril deste ano pela revista “Nature”, liderado pela brasileira Julia Tavares. Doutora em Ecologia e Mudanças Climáticas pela Universidade de Leeds, Tavares trabalhou com Martin Acosta e mais de 80 pesquisadores do mundo todo para mapear árvores em 11 locais da Amazônia, abrangendo Brasil, Peru e Bolívia.
O objetivo era entender como as diferentes regiões da floresta respondem a períodos de seca, que devem se tornar cada vez mais frequentes e duradouras devido às mudanças climáticas. O estudo mostrou que as regiões oeste e sul da Amazônia têm menos chances de resistir a períodos de poucas chuvas. A falha hidráulica: Falha no transporte de água da raiz das árvores para partes mais altas., que é uma das principais causas de mortalidade de árvores, é mais provável em regiões como a Reserva Nacional Tambopata, no Peru, e em áreas do sul da Amazônia, como o norte do Mato Grosso.
Essa conclusão só foi possível após um mapeamento cuidadoso que avaliou as condições de 540 árvores de 129 espécies diferentes ao longo de diversos meses: “Em algumas comunidades que nós visitamos, as pessoas falaram que éramos como ‘médicos das árvores’, e que nós íamos de madrugada porque não queríamos acordar as plantas”, conta Julia Tavares, atualmente pós-doutoranda na Universidade de Uppsala, na Suécia.
“Uma das medições que a gente fazia era para ver a pressão da água no interior das árvores e entender o quanto elas estão estressadas pela seca. Do mesmo jeito que a gente usa a pressão sanguínea para medir o estresse do ser humano. Na árvore, a gente usa a pressão da água”, explica a autora.
Uma das medições que a gente fazia era para ver a pressão da água no interior das árvores e entender o quanto elas estão estressadas pela seca. Do mesmo jeito que a gente usa a pressão sanguínea para medir o estresse do ser humano.
Julia Tavares, pós-doutoranda na Universidade de Uppsala, na Suécia, e autora do estudo
A pesquisadora Caroline Signori, pós-doutoranda na Universidade de Exeter, no Reino Unido, conta que uma das principais conclusões foi comprovar que a Floresta Amazônica é, na verdade, composta por uma série de florestas diferentes entre si. O bioma não é uniforme e, por isso, as ações de preservação devem ser também direcionadas de acordo com o que se sabe sobre cada região.
Além de coautora da pesquisa, Signori também é autora principal de um outro artigo que utilizou as mesmas amostras para explicar como os carboidratos não-estruturais: Eles consistem não apenas de amido, mas também de açúcares simples, frutanas, ácidos orgânicos e outros compostos menos comuns. das árvores podem ajudar a esclarecer as diferenças do bioma.
“Por meio de uma análise dos carboidratos não-estruturais de cada árvore, a gente consegue avaliar a disponibilidade de água na Amazônia e ter uma melhor previsão das respostas da floresta às futuras mudanças climáticas”, afirma a pesquisadora. A emergência climática faz com que a capacidade da floresta tropical de remover carbono da atmosfera diminua com o decorrer das secas, segundo as análises dos pesquisadores.
“Nas últimas décadas, a gente teve secas intensas na Amazônia em 2005, 2010 e em 2015. Essas secas fizeram com que a floresta perdesse um pouco a capacidade de estocar carbono, de armazenar carbono. A maneira que uma árvore absorve carbono é crescendo mas, na seca, ela para de crescer e deixa de remover carbono”, explica Julia Tavares.
Bastidores da pesquisa
É importante mostrar que as regiões oeste e sul da Amazônia têm menos chances de resistir a períodos de pouca chuva do que outras áreas da floresta, já que muitos estudos científicos são realizados apenas nas regiões centro e leste do bioma, que são tradicionalmente mais resistentes a secas.
“Algumas áreas do Pará onde são feitas muitas das pesquisas hoje são florestas sazonais mais resistentes à seca. Então, se você pegar o valor extraído desses estudos e aplicar para a Amazônia inteira você está superestimando a capacidade da floresta de aguentar períodos de seca”, explica Tavares.
Algumas áreas do Pará onde são feitas muitas das pesquisas hoje são florestas sazonais mais resistentes à seca. Então, se você pegar o valor extraído desses estudos e aplicar para a Amazônia inteira você está superestimando a capacidade da floresta de aguentar períodos de seca.
Julia Tavares, pós-doutoranda na Universidade de Uppsala, na Suécia, e autora do estudo
Na parte sul da Amazônia, em regiões como o norte do Mato Grosso, as árvores apresentaram maior grau de adaptação para lidar com a seca. Mas, apesar disso, as espécies dessa região correm o maior risco de morrer em períodos sem chuvas dentre todas as áreas analisadas. Segundo os pesquisadores, isto ocorre porque a região já passou por uma redução nos padrões de chuva causada pelo desmatamento, o que levou as árvores ao limite de sua capacidade.
Já na região oeste da Amazônia, que engloba áreas da Bolívia, do Peru e do estado do Acre, e possui solos mais férteis, as árvores apresentaram uma taxa de mortalidade devido à seca maior do que a observada em regiões menos férteis da Amazônia central.
Para avaliar essa capacidade de resistir à seca, os pesquisadores coletaram amostras na copa das árvores, em galhos diretamente expostos ao sol, e analisaram métricas relacionadas ao sistema hidráulico das plantas. A coleta precisava ocorrer sempre de madrugada, pois ao longo do dia as medições não são válidas, uma vez que as árvores estão no processo de fotossíntese.
“Eu já tinha feito muito trabalho de campo antes, mas eram lugares de mais fácil acesso, ficava uma ou duas semanas fora de casa. Para esta pesquisa, a gente ficou meses viajando e, como era uma pesquisa que coletava muitos dados, era uma equipe muito grande. Foi muito desafiador planejar tudo isso, e ainda tinha a barreira da língua e da cultura no Peru e Bolívia”, explica Caroline Signori, que também participou da coleta de amostras.
Eu já tinha feito muito trabalho de campo antes, mas eram lugares de mais fácil acesso, ficava uma ou duas semanas fora de casa. Para esta pesquisa, a gente ficou meses viajando e, como era uma pesquisa que coletava muitos dados, era uma equipe muito grande. Foi muito desafiador planejar tudo isso, e ainda tinha a barreira da língua e da cultura no Peru e Bolívia.
Caroline Signori, pesquisadora e uma das autoras
Após planejar a expedição, o grupo organizava visitas durante o dia para preparar as árvores que seriam analisadas com cordas e equipamentos de segurança. O mapeamento é realizado sob a luz do sol. Em seguida, na madrugada, os escaladores utilizavam as cordas previamente instaladas para subir até 40 metros de altura. Uma vez lá em cima, contavam com a ajuda de colegas no chão para manusear uma espécie de tesoura gigante, que cortava o galho escolhido pela equipe científica.
Durante uma dessas coletas, Martin Acosta e um de seus colegas escaladores encontraram um desafio extra na copa das árvores: “Tinha muitas formigas lá em cima, e meu colega teve que descer porque não aguentou as picadas. Não dava para ficar lá em cima com as formigas picando, então ele desceu para garantir a sua segurança. Mas, no final, ele conseguiu cortar o galho e desceu, todo machucado”, lembra Acosta.
Temporada de queimadas
A avaliação da resistência das árvores à seca é importante em um cenário de mudanças climáticas e de avanço do desmatamento e das queimadas na região amazônica. Mas, apesar disso, a temporada mais seca no bioma coincide com o período do ano em que aumentam os registros de queimadas, segundo os dados coletados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que coordena o programa de monitoramento BDQueimadas.
Em junho deste ano, registrou-se um recorde no número de focos de queimada na Amazônia Legal, segundo o BDQueimadas. O número, 5.731, representa um aumento de 15% em relação ao mesmo mês do ano passado, quando foram detectados 4.978. Embora o estudo examine apenas a resistência a períodos de seca, e não ao fogo, os dois aspectos estão associados, segundo a pesquisadora Julia Tavares.
“O estudo avalia apenas a falta de água no solo, que é causada pela seca, e não pelas queimadas. Mas, é claro, o fogo vai pegar com mais facilidade quando a floresta está mais seca. A importância do nosso estudo é que ele foi o primeiro a avaliar a vulnerabilidade da Amazônia em escala regional, ou seja, da Amazônia inteira”, explica Tavares.
A pesquisadora lembra ainda que, por conta das características próprias das árvores presentes na Amazônia, o bioma não tem queimadas naturais, como as que ocorrem em outros tipos de vegetação. Por conta disso, as queimadas identificadas pelo monitoramento do Inpe são sempre provocadas pela ação humana.
Com o agravamento das mudanças climáticas, no entanto, é possível que as queimadas provocadas tomem proporções maiores por conta das secas mais duradouras – e muitas árvores da Amazônia podem não ter mais capacidade de resistir a nenhum dos dois fenômenos.
“Mesmo as árvores que são naturalmente mais resistentes às secas estão sofrendo muito porque o descompasso da mudança climática é muito rápido, e elas não aguentam. Isso é extremamente preocupante, e é algo que precisa ser levado em conta cada vez que ocorre a temporada de secas e queimadas”, afirma a pesquisadora.
Reportagem do InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.