Analisamos dados de infraestrutura rodoviária e terras indígenas que permitiram avaliar o impacto da Ferrogrão na região
Como país signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Brasil deve “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente”.
Com a perspectiva de retomada pelo atual governo do projeto da Ferrogão (EF-170) – 933 km de ferrovia entre os municípios de Sinop (MT) e Itaituba (PA) com traçado próximo a Terras Indígenas (TIs) -, a reportagem Ferrogrão afetará pelo menos 6 terras indígenas, 17 unidades de conservação e 3 povos isolados analisou os possíveis impactos do empreendimento sobre esses territórios para saber se o processo de consulta a essas populações está sendo respeitado.
Realizada com a colaboração de uma equipe multidisciplinar, entre jornalistas, cientistas e profissionais de visualização de dados, no Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, a reportagem aponta seis TIs localizadas na área de influência da Ferrogrão, com uma população estimada de 2.600 indígenas que inclui os isolados Pu’rô, Isolados do Iriri Novo e Mengra Mrari.
Apenas duas delas foram consideradas no estudo de impacto ambiental (EIA) da Ferrogrão, apresentado pela MRS Ambiental em novembro de 2020 durante o governo de Jair Bolsonaro (Republicanos). Os povos Kayapó, Munduruku e Panará que possuem seus próprios protocolos de consulta reivindicam serem ouvidos em relação ao empreendimento.
Além do território indígena, 17 Unidades de Conservação estão na área de influência da Ferrogrão, 98.862 km² com incidência em 25 municípios dos estados Mato Grosso e Pará.
Como investigamos:
Para essa análise consideramos uma área de 50km em torno do traçado da ferrovia com base na nota técnica apresentada pelo Instituto Kabu, que representa 12 comunidades do povo Mẽbêngôkre-Kayapó distribuídas entre as Terras Indígenas (TIs) Baú e Menkragnoti e duas comunidades Panará, localizadas na TI Panará.
Com base no traçado da ferrovia, disponível no Banco de Informações de Transportes do Ministério dos Transportes, usamos a ferramenta de geoprocessamento e de código livre, QGIS, para analisar a evolução do desmatamento acumulado nessa região, entre 2008 e 2022, registrado pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes). A reportagem teve consultoria científica de Luís Maurano, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Essa área de influência maior tomou como base a nota técnica apresentada pelo Instituto Kabu à Funai em novembro de 2019, que alerta para as pressões diretamente relacionadas ao processo de pavimentação da BR-163 nesse perímetro – e que podem se agravar a partir da construção da ferrovia.
No trecho paraense da ferrovia, diz a nota, um trecho de quase 380 km (40% do total) em muitos pontos está a menos de 50 km das terras indígenas Baú, Menkragnoti e Panará, “onde os índices de desmatamento mantêm-se extremamente elevados desde que teve início a pavimentação da BR-163”. A área de influência da BR-163 é de 40km em torno da rodovia, previsão para esse tipo de empreendimento na Amazônia Legal segundo a Portaria Interministerial nº60/2015.
Como analisamos:
A região apresenta cerca de 10% (9.662,83 km²) de área desmatada, sendo que 42% foi registrado nos últimos quatro anos, durante o governo de Jair Bolsonaro.
A base de dados do Prodes, assim como os dados geográficos de Terras Indígenas, Unidades de Conservação e municípios da Amazônia Legal utilizados nesta análise estão disponíveis no site TerraBrasilis, plataforma desenvolvida pelo Inpe.
Para verificar a incidência do traçado da ferrovia, assim como do desmatamento sobre Terras Indígenas e Unidades de Conservação, consideramos uma zona de amortecimento de 10 km em torno desses territórios, área que tem como objetivo minimizar os impactos negativos sobre as áreas preservadas.
A incidência do desmatamento sobre TIs (799,82km²) na área analisada, acontece principalmente no município de Altamira, com 765,201 km² que incide sobre as TIs Baú (582,698 km²), Menkragnoti (159,386 km²) – habitadas pelos Kayapós e pelos três povos isolados – e Panará (23,1166 km²).
Embora estejam localizadas no município de Altamira, essas TIs estão próximas à divisa com o município de Novo Progresso, epicentro da ação criminosa conhecida como Dia do Fogo, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (Partido Liberal) atearam fogo na floresta às margens da BR-163 em agosto de 2019.
A análise aponta que 80% do desmatamento está na área de influência da rodovia. Especialistas ouvidos pela reportagem apontam que a BR-163 é diretamente responsável pela intensificação do desmatamento na região, com vetores que se aproximam das áreas protegidas, onde se verifica a prática de atividades ilícitas como roubo de madeira e garimpo, que afeta os territórios indígenas ocupado pelos Kayapós e Mundurukus na área analisada.
Limitações da análise
A análise feita com um buffer de 50 km no entorno do traçado previsto para a ferrovia aponta os territórios impactados pela BR-163 e desconsiderados na análise feita pela MRS Ambiental para o estudo de impacto ambiental sobre a Ferrogrão, com a utilização de um buffer de 10 km em torno do traçado.
“O uso de um buffer linear de 50 km em torno do traçado é uma primeira aproximação válida, mas tem que levar em conta que o impacto é maior na região em torno das estações de carga, então teria que ser maior nesses pontos, mas é difícil dizer quanto maior”, afirma Juan Doblas, analista geoespacial da Global Earth Observation (GlobEO).
Ele explica que a análise com um buffer linear não permite dimensionar toda a extensão dos impactos provocados pelo empreendimento, que exige estudos e análises de maior complexidade que considerem outras variáveis como, por exemplo, os fluxos de tráfego na região observados pelo Centro de Sensoriamento Remoto da UFMG que aponta para o impacto da Ferrogrão na Terra Indígena do Xingu e na TI Capoto Jarina.
“Os impactos dos empreendimentos não se transmitem de forma uniforme pelo território, se transmitem por eixos de transporte, em função da presença de rios, de estradas asfaltadas ou não. A gente sabe que os impactos da Ferrogrão vão além da Terra Indígena Batelão, além do Parque Indígena do Xingu, que estão além dos 50 km considerados, por conta justamente dos eixos transversais de transporte: rodovias que podem ser asfaltadas e que vão ter um efeito sinérgico sobre esse empreendimento”, afirma Juan Doblas.
Bases analisadas
Fonte | Base original | Tabelas geradas (análise) |
Ministério dos Transportes | Malha ferroviaria nacional | Análises Ferrogrão com buffer 50km |
Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT) | Malha rodoviária nacional | Análises Ferrogrão com buffer 10km |
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) | Desmatamento Acumulado na Amazônia Legal entre 2008 e 2022, municípios da Amazônia Legal, Terras Indígenas e Unidades de Conservação | Análises BR-163 |
Análises TI Baú desafetada |
Fontes e entrevistados
A reportagem ouviu lideranças indígenas nos territórios próximos ao traçado da ferrovia, que reivindicam a consulta prévia, livre e informada em relação ao empreendimento. Foram entrevistados Doto Takak Irê, presidente do Instituto kabu, que representa 12 aldeias Kayapó das Terras Indígenas Baú e Menkragnoti e mais 2 aldeias Panará. O Instituto reivindica a consulta em relação ao projeto da Ferrogrão e encaminhou a nota técnica à Funai que serviu de base para determinar a área de influência utilizada nesta análise.
A reportagem também conversou com Kunity Panará, secretário da associação indígena Iakiô Panará, criada para a defesa do território retomado pelos Panará em 1991, Terra Indígena mais próxima de Matupá, onde os estudos da Ferrogrão consideram a construção de uma estação intermediária.
Entrevistamos Alessandra Munduruku, coordenadora da Associação Indígena Pariri, que representa 12 aldeias Munduruku do Médio Tapajós premiada este ano por sua atuação no combate ao garimpo na proximidade da TI Sawré Muybu e Ewesh Waura, assessor jurídico da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), que representa os 16 povos indígenas que vivem nesse território.
Conversamos com a economista, Mariel Nakane assessora técnica do Programa Xingu do Instituto Sociambiental. Nakane acompanha o projeto da Ferrogrão desde 2018 e ajudou na compreensão da dinâmica de interação entre o projeto da Ferrogrão e os demais empreendimentos de infraestrutura presentes no território, assim como as formas de considerar os impactos dessas obras para as populações indígenas.
A reportagem conversou também com a coordenadora do Programa Xingu do ISA, Biviany Rojas Garzon que atua na elaboração de protocolos de consulta de povos indígenas e comunidades tradicionais na região. Ela é co-autora junto a Mariel Nakane e Rodrigo Magalhães de Oliveira, do documento Diretrizes para a verificação do direito à consulta e ao consentimento livre, prévio e informado no ciclo de investimento em infraestrutura, publicado em abril deste ano e reivindica, junto à Rede Xingu +, que o projeto da Ferrogrão respeite o processo de consulta às populações afetadas. Ela defende que os estudos econômicos e de impacto ambiental devem ser revistos e, o primeiro passo para isso é rever a área de influência da Ferrogrão.
O pesquisador Juan Doblas, analista geoespacial da GlobEO (Global Earth Observation), também foi ouvido pela reportagem e trouxe informações sobre a dinâmica territorial em torno de Novo Progresso (PA). Doblas é co-autor junto aos pesquisadores Mauricio Torres e Daniela Fernandes Alarcon do livro Dono é quem desmata: conexões entre grilagem e desmatamento no sudeste paraense. Ele também apontou as limitações da análise geoespacial feita por essa reportagem.
Nome | Instituição | Referência |
Juan Doblas | Global Earth Observation | https://www.escavador.com/sobre/561253672/juan-doblas-prieto |
Biviany Rojas Garzon | Instituto Sociambiental | https://www.escavador.com/sobre/390623/biviany-astrid-rojas-garzon |
Mariel Nakane | Instituto Socioambiental | https://www.escavador.com/sobre/378340160/mariel-mitsuru-nakane-aramaki |
Doto Takak Ire | Instituto Kabu | https://socioambiental.medium.com/n%C3%B3s-respeitamos-voc%C3%AAs-queremos-que-voc%C3%AAs-nos-respeitem-c1816af2145d |
Kunity Panará | Associação Iakiô Panará | https://infoamazonia.org/2022/11/21/povo-panara-do-exilio-imposto-pela-ditadura-militar-ao-retorno-para-terra-tradicional/ |
Alessandra Munduruku | Associação Indígena Pariri | https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/deutsche-welle/2023/04/24/quem-e-a-indigena-premiada-com-um-goldman-por-barrar-mineracao-na-amazonia.htm |
Ewesh Waura | Associação Terra Indígena do Xingu | https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/controle-social/organizacoes-da-sociedade-civil/de-a-a-z/associacao-terra-indigena-xingu-atix |
Este material é parte do Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira, para promover e difundir o conhecimento científico e análise de dados geográficos na produção jornalística.