Dados das GTAs e do CAR permitiram identificar origem e destino do transporte de animais, e nos levaram até grandes fazendas na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau
Em março de 2021, comunidades indígenas no Brasil e na Colômbia usaram, pela primeira vez, a lei francesa do dever de vigilância para cobrar do Grupo Casino responsabilidade sobre a origem da carne nas prateleiras de suas redes de supermercados. Segundo essas comunidades, fazendas instaladas dentro de terras indígenas abasteceram a rede de fornecedores do grupo, que no Brasil é dona do Pão de Açúcar, Assaí e Extra Hiper, e na Colômbia das lojas do Êxito.
A Lei aprovada em 2017 na França obriga grandes empresas do país a garantirem que “tanto suas filiais quanto empresas subcontratadas” não causem “violações graves contra os direitos humanos e liberdades fundamentais, da saúde e segurança das pessoas e do meio ambiente”.
Essa é a primeira vez que povos indígenas processam uma rede do varejo por violações na sua cadeia de abastecimento. Após a primeira audiência na França, as comunidades recusaram uma proposta de mediação para um acordo, e pedem que o caso vá a julgamento.
O Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo teve acesso a mais de 500 mil informações com dados das Guias de Transporte Animal (GTAs) em Rondônia e que confirmariam a relação de dois frigoríficos da JBS nos municípios de Vilhena e Pimenta Bueno com fazendas na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (TIUEWW). Leia a investigação publicada a partir dessas informações: “Grupo Casino continua vendendo carne proveniente da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, apesar de processo judicial na França“.
As GTAs são preenchidas pelos próprios produtores e é documento obrigatório para o manejo de gado. Entre outras funções, tem objetivo de garantir a proteção sanitária dos rebanhos.
Como investigamos:
Mas além do ineditismo da ação na Justiça da França e dos dados que tínhamos em mãos —e que podem colaborar com esse processo se o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) compartilhar essas mesmas informações com a Justiça na França—, chamou atenção que mesmo após abertura do processo na França, o gado continuou engordando em terras indígenas e abastecendo os frigoríficos da rede de fornecedores do grupo Casino, mais uma vez, segundo esses dados das GTAs.
Informação chave para essa investigação é o dado do Cadastro Ambiental Rural (CAR) informado pelos produtores no momento do transporte dos animais. O CAR é outro documento autodeclaratório que reúne informações ambientais das propriedades e posses rurais. E, apesar de depender de validação para efetivo controle ambiental, apenas com o número do cadastro já é possível declarar uma propriedade rural, e fazer manejo de gado.
Através do dado do CAR dessas guias, nós conseguimos georreferenciar a localização das propriedades e verificar se estavam dentro de terras indígenas ou áreas protegidas. O resultado mostrou que pelo menos 15 fazendas dentro da TIUEWW forneceram gado na cadeia de abastecimento do Casino.
Como analisamos:
A análise desses registro foi realizada em parceria com o Centro para Análises de Crimes Climáticos (CCCA – Center for Climate Crime Analysis –, em inglês), que identificou quais GTAs estavam relacionadas com CARs registrados dentro de terras indígenas e unidades de conservação no estado de Rondônia. Contamos com uma consultoria especial da equipe técnica do CCCA.
Com estes dados, conseguimos refazer o caminho desde o fornecedor direto da JBS até as fazendas com CAR registrado dentro da terra indígena, ligando de quem a JBS comprou e de quem o fornecedor da JBS comprou, e assim por diante.
Um dos casos encontrados é o do fazendeiro Orlando Alves Trindade, que ocupa mais de mil hectares dentro da terra indígena com a Fazenda Coimbra e desta fazenda mandou gado para outra fazenda de sua propriedade fora da terra indígena antes de abastecer o frigorífico da JBS em Vilhena em 15 de maio de 2021, após a denúncia na França.Para analisar a base de dados, utilizamos a linguagem de programação Python e aplicamos a biblioteca Pandas, comumente usada para essa finalidade. Abaixo está um trecho do código que construímos para chegar às evidências:
#trecho do código em python que monta a cadeia de abastecimento de um dos frigoríficos da JBS em Vilhena até a fazenda Coimbra, dentro da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, e o CSV correspondente dessa consulta:
from_label_x | to_label_x | data_emissao_list_x | quantity_animals_x | from_label_y | to_label_y | data_emissao_list_y | quantity_animals_y |
FAZENDA . COIMBRA TRV B 30 GLEBA 3133 LOTE 40 50 | FAZENDA ARYANE LH 201 KM 9 GLEBA 26 E 27 LOTE 27 42 E 43 | [“2021-02-08T21:38:00”, “2021-02-08T21:36:00”, “2021-02-08T21:41:00”, “2021-02-08T21:35:00”, “2021-02-08T21:38:00”] | 90 | FAZENDA ARYANE LH 201 KM 9 GLEBA 26 E 27 LOTE 27 42 E 43 | JBS – 02916265003770 – 31ddc023 | 2021-05-15T17:13:00, 2021-05-15T17:14:00, 2021-05-15T17:15:00 | 54 |
A Fazenda Coimbra ocupa 1.142 hectares e está dentro da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau. Em fevereiro de 2021 essa fazenda enviou 90 cabeças de gado para outra fazenda do mesmo dono, mas fora da terra indígena, que é a Fazenda Aryane, que por sua vez, em maio de 2021, enviou 54 animais para a planta de abate da JBS em Vilhena.
Encontramos o mesmo padrão de ocorrência para 15 CARs (propriedades) que transferiram gado, segundo as informações das GTAs, para fornecedores diretos do Casino após a denúncia contra o grupo na França. Desde 2008, foram identificados 46 CARs, ou fazendas, nessa mesma situação.
Diante do grande volume de dados, e da necessidade de diversas consultas individuais pelas áreas identificadas (CAR) na terra indígena, geramos um painel no PowerBI para consultar mais facilmente os dados individuais de cada transação. Neste painel você também poderá fazer consultas por CPF, CNPJ, Nome das fazendas ou lotes. Os dados agregam as mais de 500 mil linhas de informações de GTAs relacionadas a propriedades em áreas protegidas, veja:
Análise geoespacial
Realizamos análises geoespaciais com a ferramenta QGis, com os dados dos CARs identificados e sobrepostos na terra indígena, e cruzamos com informações de desmatamento, e embargos ambientais.
Análise no Qgis
Também relacionamos os dados das análises com informações do processo judicial 0000078-09.2004.4.01.4100, em que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) pede a reintegração de posse da terra indígena e a retirada de fazendeiros do local, além de pesquisas em outras bases de documentos, como o Sistema Integrado de Informações sobre Operações Interestaduais com Mercadorias e Serviços (Sintegra), Receita Federal, Diários Oficiais e outros.
Repercutimos o tema com especialistas, representantes dos indígenas da terra Uru-Eu-Wau-Wau e órgãos públicos relacionados ao assunto.
Limitação dos dados
Apesar da grande quantidade de dados disponíveis para consulta desta reportagem, tivemos limitações e algumas transações não puderam ser analisadas por inconsistência nos dados, principalmente relacionado a dados de CAR. Apesar de obrigatório para o preenchimento das GTAs, em diversas transações não conseguimos confirmar a área exata que manejou animais por inconsistência neste dado.
Na coluna cod_car deveria constar os dados do CAR, mas devido a falta de dados ou o não preenchimento, está como NaN.
Bases analisadas
Fonte | Base Original | Tabelas geradas (análise) |
Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) | Tabela com os dados primários de cada transação | Cadeia nível 2 |
Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) | Terras Indígenas e Unidades de Conservação | Áreas protegidas (TIs e UCs) com relações com a cadeia de abastecimento |
Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima | Cadastro Ambiental Rural | Áreas protegidas (TIs e UCs) com relações com a cadeia de abastecimento |
Cadeia nível 3 | ||
Os 46 CARs (fazendas) identificadas na TI Uru-Eu-Wau-Wau |
Fontes e entrevistados
Para repercutir e entender melhor a disputa entre fazendeiros e indígenas na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, conversamos com o antropólogo Tiago Moreira, do Instituto Socioambiental (ISA), um dos autores do livro Povos Indígenas no Brasil (2017-2022) e que monitora a situação no território. Moreira alertou, especialmente, para os riscos da ocupação ilegal na TI em relação aos povos que ainda vivem em isolamento dentro do território, e que a conivência das autoridades alimenta projetos de mais invasões por conta de uma sensação de impunidade.
Foi fundamental para esta publicação o apoio técnico do analista de dados Heron Martins, que nos ajudou a conectar as relações entre fazendas e auxiliou nas análises geoespaciais com informações relevantes, como checar a qualidade dos pastos nas fazendas suspeitas, entre outros.
Também entrevistamos a advogada Cristiane Soares, que acompanha o andamento do processo na Corte francesa e consultamos fontes no Ministério dos Povos Indígenas e na Funai, além de mantermos conversas com indígenas da região.
Trouxemos para a reportagem o relato da indigenista Ivaneide Bandeira, uma das maiores lideranças da região e que há mais de 20 anos acompanha a situação na terra indígena. A pedido dos próprios indígenas, não expusemos suas identidades por questões de segurança.
Nós também falamos com o produtor Argeu Silva Ferrando que tem fazenda dentro da terra indígena. Argeu Ferrando é um dos que briga na Justiça para manter as produções naquela área e quer a alteração da terra indígena. Quando ele fez a escritura do imóvel, o território já estava homologado, mas ele justifica que a negociação ocorreu com os assentados originários da área com registro em cartório.
Nome | Instituição | Referência |
Tiago Moreira | Instituto Socioambiental (ISA) | https://www.escavador.com/sobre/1721953/tiago-moreira-dos-santos |
Especialistas CCCA | CCCA | https://climatecrimeanalysis.org/ |
Cristiane Soares | COIAB | https://twitter.com/CoiabAmazonia |
Ivaneide Bandeira | Associação Kanindé | https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/causadores-neidinha-surui/ |
Este material é parte do Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira, para promover e difundir o conhecimento científico e análise de dados geográficos na produção jornalística.