Com uma população com cerca de 1,6 milhão de pessoas autodeclaradas, de acordo com dados preliminares do Censo de 2022, indígenas fazem retomada identitária em busca de novos espaços na sociedade.
A jovem Jheyle Mura vive na zona norte da cidade de Manaus há 6 anos. Nascida no município de São Gabriel da Cachoeira, Jheyle deixou seu povo para buscar emprego com a mãe. Desde o início da mudança ela foi sentindo a perda da sua cultura. Sem saber onde encontrar outro indígenas, Jheyle passou por casos de racismo e foi, aos poucos, deixando seus costumes. Parou de pintar o corpo com grafismos, de usar o artesanato produzido por seus parentes e de falar a língua do seu povo. “Eu pensei que só eu era indígena aqui”, conta.
Sua identidade não se perdeu porque encontrou e foi acolhida por outras mulheres indígenas. Apesar de serem de uma etnia diferente, indígenas Sateré-Mawé passaram a trocar vivências com Jheyle. Juntas elas constituem a Associação de Mulheres Indígenas Sateré-Mawé (Amism), em que pautam debates sobre serem indígenas em territórios urbanos. “A minha história na cidade começou ali”, conta Jheyle.
Foi também para encontrar respostas para questões como essas que Kwarahy Tembé Tenetehara fundou a Associação Wyka Kwara, no município de Ananindeua, no Pará. A organização acolhe indígenas em contexto urbano ou que estão em busca do histórico de seu povo. De acordo com o setor de documentação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), cerca de 1,4 mil povos foram extintos no Brasil desde a chegada dos colonizadores portugueses em 1500, o que ocasionou um apagamento de informações aos descendentes que restavam e nasceram fora das aldeias.
“Independente do tempo e da razão, a gente tem encontrado indígenas que sabem o povo, mas que estão no contexto urbano e que por alguma situação eles não têm mais como voltar para a aldeia. Porque já é um bisneto, ou tataraneto, ninguém conhece mais os parentes”, explica Kwarahy.
Segundo Kwarahy, a retomada da identidade e autodeclaração tem se mostrado um instrumento para organizações indígenas na garantia da preservação da cultura étnica, social e política dos povos.
Oficialmente não existe processo normativo de qualquer órgão federal que define quem é ou não é indígena. A Constituição Federal, em seu artigo 231, garante aos povos indígenas “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
Dessa forma, são os indígenas, seus povos e organizações que asseguram o funcionamento desse reconhecimento. O processo envolve regras e medidas que são determinadas de formas diferentes para cada um deles. O Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (RANI), que muitas vezes é usado como exigência de reconhecimento, não tem a função de determinar a etnia de um indígena, mas serve como documento similar ao Registro Civil de Nascimento.
Quando os indígenas precisam confirmar sua identidade em concursos ou processos seletivos, os órgãos solicitantes adotam diferentes medidas. No caso das universidades, por exemplo, algumas aceitam o RANI como comprovante dessa declaração, outras pedem um documento assinado atestando que as informações são de responsabilidade do candidato. Outras exigem confirmação de lideranças do povo ao qual o candidato diz pertencer. É o caso, por exemplo, da Universidade Federal do Amazonas, que pede um documento de comprovação do povo ou organização indígena.
O Programa de Bolsa Permanência do Ministério da Educação exige também um documento de comprovação do povo. Neste caso, o órgão pede a assinatura de três lideranças da comunidade, que atestem reconhecer a pessoa como indígena de seu povo.
De acordo com os dados preliminares do Censo de 2022, são 1,6 milhão de indígenas autodeclarados no Brasil, no Censo de 2010 eram 817 mil – 95% a mais em 12 anos. O processo de retomada e reconhecimento até a resposta afirmativa da autodeclaração, no entanto, não é simples ou fácil, principalmente para aqueles que vivem em territórios urbanos.
Quase dobrou o número de pessoas que se autodeclaram indígenas no Brasil
1,6 milhão indígenas em 2022
817 mil indígenas em 2010
Fonte: Censo IBGE
Nesses casos, os indígenas enfrentam diversas barreiras incluindo racismo e a falta de dados históricos sobre suas etnias. O último Censo do IBGE, de 2010, mostrou que 315 mil indígenas viviam em contexto urbano no Brasil. Os deslocamentos ocorrem principalmente em decorrência da necessidade de trabalho, conflitos fundiários e a formação escolar.
O antropólogo Raimundo Nonato afirma que o aumento nos dados da autodeclaração ocorrem por diversos fatores, incluindo os dados de mortalidade infantil entre indígenas, que caiu na última década, ou seja, mais indígenas nascem e possuem longevidade, além do sentimento de orgulho indígena e o combate ao preconceito. O professor também cita a política de cotas raciais nas universidades e o aumento de instituições que abriram bancos de dados e informação referente à autodeclaração.
“As ações dos indígenas em intenso diálogo com o Estado, no incremento de políticas públicas em prol da diversidade e o protagonismo indígena serviu para elevar a autoestima em ser indígena, em se ver como indígena. O orgulho de ser indígena está erradicando o preconceito”, explica.
Língua como característica da identidade
O apagamento da identidade também ocorre entre jovens indígenas que alcançam a universidade. Jeiviane da Silva é profesora doutora em Antropologia Social e trabalha há 15 anos com indígenas da região do Alto Rio Negro, no noroeste do Amazonas. Lotada na Faculdade de Letras da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Jeiviane desenvolve pesquisa com línguas indígenas. Ela afirma que, quando os indígenas chegam à universidade, eles passam por diferentes enfrentamentos para manter sua cultura.
“Eu vejo que em alguns casos não seja uma situação de falta de conhecimento sobre sua cultura, mas alguns indígenas preferem silenciar-se a ter que sofrer mais preconceito, a ter sua identidade mais uma vez negada, não afirmada, principalmente dentro da instituição”, explica a professora.
Jeiviane também conta que na universidade esses estudantes encontram formas coletivas de resistência. “Depois que entram em parceria com outros [estudantes], eles vão se encontrando dentro dos espaços do movimento indígena e vão se fortalecendo. Aí ele deixa de ter essa vergonha e passa a afirmar ‘eu estou aqui também. Eu quero manifestar a minha identidade. Eu quero falar a minha língua’ “, analisa.
Foi na língua Pano que o jovem Isaká Huni Kuin, do povo Huni Kuin, do Acre, se apegou quando deixou sua aldeia e foi estudar na capital do estado, Rio Branco. “Na cidade a gente não estuda a nossa língua. Então em casa a minha mãe sempre falava a língua com a gente. Senti muita dificuldade com o português, dificuldade para me adequar. Então eu precisei manter minha língua e aprender também”, afirma.
Como professora de letras e antropóloga, Jeiviane afirma que a língua é uma das maiores expressões da identidade indígena, que também foi retirada e apagada de seus povos. De acordo com pesquisa do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mais de mil línguas indígenas foram extintas no Brasil. A Constituição Federal garante aos povos indígenas viver em harmonia com sua cultura, o que obriga ao Estado oferecer uma educação escolar diferenciada, intercultural e bilíngue
“A gente tem um processo de luta de resistência e de sobrevivência a todo esse processo, a todo esse massacre a que eles foram submetidos. A língua ela vem como símbolo muito importante de manutenção da identidade, da diversidade cultural, da diversidade social desses povos e hoje a gente vive e presencia a língua sendo colocada pelos próprios, como demarcação dessa identidade”, explica Jeiviane.
Raça, etnia e coletividade
O antropólogo Raimundo Nonato da Silva, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), explica que o reconhecimento indígena vai além do fenótipo e que isso se diferencia muito da luta do povo negro. No caso dos indígenas, a etnia define a identidade de cada indivíduo. Ou seja, a cultura estabelecida e vivenciada por esse grupo é o que pode trazer esse pertencimento. “Na questão negra, o parâmetro do fenótipo e genótipo tem um peso que fica objetivo naquele que se vê. Os indígenas, pelo contrário, tiveram uma imagem idealizada e criada, que não condiz com aquilo que é a realidade dos povos”, diz.
O professor explica que existem, por exemplo, indígenas de olhos claros ou indígenas que incorporaram referências diversas e que não deixam de ser indígenas. No caso dos indígenas em contexto urbano, por exemplo, a noção de comunidade é diferente, porque eles não estão vivendo em territórios malocas ou terras demarcadas e reconhecidas pelo Estado. Mesmo assim, essas comunidades se criam a partir de outras organizações, mas com a mesma lógica de seus povos.
“Na cidade você tem comunidades de relações. São familiares que moram num bairro, outra parte que mora em outro, pessoas que vão se deslocando. Então é a comunidade de relações mantidas nesse espaço urbano, que também é um elemento dessa reafirmação”, explica o professor.
O antropólogo e professor Gersem Baniwa, no artigo “A presença indígena em contexto urbano”, ressalta que essas relações comunitárias evidenciadas no espaço urbano são ainda mais criativas. O professor aponta que o debate a respeito dos indígenas em contexto urbano deve aumentar nos próximos anos e exigir mais estudos e debates. “São comunidades étnicas ou multiétnicas fortemente resilientes e resistentes culturalmente e linguisticamente. Tais práticas e vivências culturais estão sempre acompanhadas por processos de resgate e revalorização das tradições ancestrais e por uma permanente atualização e dinamização dessas tradições aos contextos e realidades atuais”, destaca no artigo.
Os indígenas têm uma cultura marcada pela vivência e luta coletiva. Mesmo nos casos dos que mantêm isolamento voluntário, eles vivem em grupo, com costumes e linguagens próprias que desenvolvem com seus parentes. Além disso, os que têm contato com não indígenas se reúnem em organizações também coletivas, com povos diversos que planejam ações para cobrar seus direitos. O professor Raimundo explica que é este senso coletivo e por meio dele que a identidade se impõe.
Para a autodeclaração é necessário que exista a vivência com um povo de origem e que esse povo reconheça as pessoas como sendo pertencente àquela cultura e etnia. “A relação entre os indígenas que estão em retomada e seus povos precisa ser amadurecida. Não pode ser apenas porque precisa de um documento para assinar. Então algumas etnias estão amadurecendo com relação a isso, cada uma vai criar seu critério de aproximação, identificação e reconhecimento”, explica Raimundo.
Em entrevista ao programa Roda Viva, a ministra do Povos Indígenas Sonia Guajajara afirmou que essa autonomia deve ser garantida. “Quem dá esse aval para dizer quem é indigena ou quem não é? Não é a Funai, não é um órgão de governo que tem que dar, a pessoa tem que encontrar de fato essa origem. Precisamos achar um jeito de conseguir um caminho para essa identificação. Tem muita gente se autodeclarando indígena e acho isso muito positivo”, disse.
A Associação Wyka Kwara, que acolhe indígenas que estão em busca dessa identidade, entende que a procura da origem é o primeiro passo para que os indígenas tenham reconhecimento de si e sejam enxergados como cidadãos com direitos indígenas. Aqueles que não encontram seu povo, são inseridos nas vivências coletivas de povos que os recebem. “Depois da acolhida essa pessoa precisa viver como indígena, precisa pensar como indígena, precisa discursar como indígena e votar como indígena”, afirma Kwarahy.
O professor Raimundo Nonato afirma que essa inserção dos indígenas dentro da coletividade e da etnia de seus povos é uma forma também de combater a apropriação cultural. Indígenas que passam a se reconhecer e buscar suas origens necessitam portanto do elemento da vivência coletiva. “Os indígenas têm razão quando pedem que ocorra o reconhecimento dentro de cada povo, porque quando se tem o contexto da falta de contato, você encontra situações diversas. Existem comunidades indígenas que se organizaram há pouco tempo, existem indígenas que fizeram esse contato recentemente e possuem pouca relação, então essa vinculação é individual porque requer essa valorização, mas também necessita do respaldo coletivo”, explica.
Ataques aos direitos da autodeclaração
Em 2021, a Funai publicou portaria que alterou o direito à autodeclaração dos povos indígenas. Na época, a portaria exigia que os povos indígenas que estavam declarando pertencimento estivessem em território demarcados, o que impediria milhares de indígenas de terem acesso aos seus direitos e abriria brechas para que as terras indígenas ainda não homologadas fossem vistas como inabitadas. O advogado Rafael Modesto, do Conselho Indigenista Missionários (Cimi), afirma que alterar a forma como os indígenas se organizam é uma grave violação de direitos.
“A Constituição reconhece aos indígenas a sua organização social e quando o Estado reconhece isso, ele reconhece todos os seus sistemas, inclusive o seu direito de autoconhecimento. Quando a Funai ou o Estado intervêm nesse direito, elas revigoram legislações anteriores de 88 com visões inclusive da ditadura militar, quando os indígenas não eram considerados pessoas de direito”, afirma Modesto.
Naquele ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a portaria não tinha base jurídica para entrar em vigor, mas somente em abril de 2023 é que ela foi de fato revogada pela Funai. Em maio deste ano, a Funai publicou nota em que explica de que forma ocorre o processo de emissão do Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (RANI), o único dispositivo governamental que oficializa o registro de uma pessoa indígena.
De acordo com o órgão, apesar do registro ser oficial, ele não garante o reconhecimento étnico de um povo e não tem a finalidade de reconhecer a pessoa dentro de uma aldeia. “Diante da diversidade dos povos indígenas no Brasil e a complexidade que permeia o tema, além do autorreconhecimento, entende-se necessário ouvir a comunidade à qual o indivíduo diz pertencer, de modo que não cabe à Funai atestar quem é indígena, pois tal ato contraria os direitos até então conquistados pelos povos originários”, entende o advogado.
Li toda a matéria e me senti descrito em cada parágrafo. Sou de Barreirinha, tenho absoluta certeza da minha ascendência indígena Sateré Mawé, porém meu bisavó morreu mesmo antes de eu nascer, minha vó (filha dele) morreu quando eu era criança e minha mãe não possue qualquer documento e nem sabe dar mais detalhes sobre nossas ancestralidades, mas carrega o sobrenome. Minha mãe já nasceu e sempre viveu em área urbana e assim consequentemente eu também. Me formei em 2018 em enfermagem pela UEA- Parintins, mas nunca pude garantir a pontuação oferecida exclusivamente a indígenas em processos seletivos (por exemplo dos DSEI) por conta de esses certames geralmente exigirem para comprovação étnica o RANI, o qual não consigo obter/emitir devido à essa perda de informações/documentações de antepassados ou a Declaração de Pertenciento Étnico emitda por lideranças indígenas, as quais não tenho contato e afinidade, pois como já mencionei há gerações que esse pertencimento deixou de ser documentado na minha família devido nossa vivência em área urbana. Esses processos seletivos não aceitam a autodeclaração como suficiente para tal finalidade de comprovação. Hoje moro em Manaus, o que torna mais difícil ainda conseguir qualquer documento válido para tais finalidades. A autodeclarção acaba não servindo para algumas situações, tendo vista que são essas autarquias (FUNAI, etc.) detém a autoridade maior para reconhecer ou não que uma pessoa é indígena.