Enquanto aguardam que o Estado reconheça os danos causados pela rodovia, os Tenharim estão criando um memorial na TI Tenharim/Marmelos para que tragédia da Transamazônica não se repita – e temem sofrer os impactos da construção da UHE Tabajara
O caminho da mortalidade, o caminho do problema, uma cicatriz aberta no meio da terra, uma ferida que não sarou. Essas são algumas das formas como a BR-230, a Transamazônica ficou na memória do povo Tenharim: “Pepukuhua aremokanimba’ava”, dizem em sua língua; “A estrada matou o nosso povo”. A rodovia, chamada por eles de pepukuhua, corta os territórios tenharim e jiahui, ambos povos Kagwahiva, no sul do Amazonas.
Desde o início da construção da Transamazônica no ano de 1970, em plena ditadura militar, os Tenharim, que se autodenominam Pyri, passaram a conviver com a ameaça de desaparecer como povo indígena. Até hoje, as graves violações sofridas por eles na ditadura militar não foram reconhecidas pelo Estado brasileiro – e sequer chegaram a ser investigadas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Diante disso, os Tenharim que vivem na Terra Indígena (TI) Tenharim/Marmelos estão organizando seu próprio projeto próprio de memória, para manter viva a cultura de seu povo e não deixar a história de massacres ser esquecida.
No último mês de março, uma delegação formada por lideranças tenharim esteve na Universidade de São Paulo (USP) para assinar um convênio para a criação do Memorial Jiré: a história Tenharim através da cultura material de seus anciãos, na TI Tenharim/Marmelos. O projeto envolve pesquisadores da antropologia e da arqueologia e tem apoio da USP e do Museu Britânico, na Inglaterra.
“Tem coisas que a gente sabe e tem coisas que a gente não sabe, porque a gente não chegou a ver. E o memorial vem para juntar tudo que a gente sabe por meio dos nossos avós, dos nossos anciãos”, diz Vilson Tenharim, professor e liderança na TI Tenharim/Marmelos. “A língua, nossos cânticos tradicionais, nossa cestaria. Tudo vai estar lá concentrado para as próximas gerações que estão vindo”, completa.
O memorial leva o nome do avô de Vilson, Jiré. Assim como outros anciãos, Jiré fez parte da geração que de uma hora para outra viu o território de seu povo ser devastado para a construção da Transamazônica.
As memórias coletivas são extremamente dolorosas para os Tenharim. São histórias de sequestros, exploração exaustiva do trabalho, agressões, abusos sexuais, além das muitas doenças infecto-contagiosas que dizimaram a população. Dos cerca de 10 mil indígenas, apenas cerca de 200 sobreviveram na época. Hoje os Tenharim chegam a pouco mais de mil pessoas.
Testemunhos da destruição
“Quando eles passaram pelo rio Marmelos, prestaram atenção e ouviram a zoada, barulho de árvores caindo, dos tratores que faziam as derrubadas”, conta Antonio Neves, liderança política da TI Tenharim/Marmelos que ouviu a história dos mais velhos. “Eles se depararam com um maquinário que nunca haviam visto antes, nem sequer tinham ouvido falar”, lembra.
“Foi assustador para eles. Foi a primeira vez que viram trator e o homem branco derrubando as árvores”, comenta.
Os tratores eram da Paranapanema, construtora e mineradora carioca. Assim como outras empreiteiras brasileiras, a Paranapanema era uma empresa familiar, dos Lacombe, que circulavam junto ao alto escalão do regime militar.
A Paranapanema se beneficiou não só em contratos para a construção da Transamazônica, mas também com a exploração de minérios no território Tenharim. Já nos anos 1980, uma denúncia feita pelo indigenista Egydio Schwade com base em relatórios do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) explicava como, após a construção da rodovia, a empresa passou a explorar cassiterita no Igarapé Preto e São Francisco, áreas de ocupação tradicional, de onde os Tenharim foram removidos forçadamente.
Segundo os relatórios dos anos 1980, nas áreas de exploração de minérios no território Tenharim, os diretores da Paranapanema receberam generais do exército para mostrar como a exploração estava funcionando. O convite tinha a intenção de conseguir o aval dos militares para explorar outra área com presença indígena: as terras dos Waimiri-Atroari. Tanto no território tenharim como no dos Waimiri-Atroari o modus operandi da parceria da Paranapanema com o governo militar foi o mesmo: contratos para a construção de grandes obras de infraestrutura, seguido da exploração de minérios em território indígena.
Tudo isso explorando mão de obra indígena, que diminuiu drasticamente pelo contato com doenças.
“É muito difícil falar a respeito porque traz uma recordação muito triste, houve muitas doenças contagiosas”, lembra Antonio Neves, da TI Tenharim/Marmelos. “Nós não tivemos condições de cuidar do outro parente porque todos estavam doentes”, lamenta.
“Meu pai, outros parentes, foram pegos para serviço braçal. Como escravos mesmo. Não foram compensados, não foram pagos. Eles só tinham direito de se alimentarem mal”, conta Neves.
Além disso, outra dimensão importante para o povo Tenharim é a maneira como a construção da Transamazônica e seus impactos causaram graves danos espirituais.
“[A obra] passou por cima dos cemitérios, locais sagrados. Isso para nós é muito triste, é impagável”, diz Neves. “Nós perdemos muitos dos nossos antigos, nossos curandeiros, nossos pajés, as crianças. E a parte mais difícil é que não tivemos condições de fazer o sepultamento do parente”.
Ações por reparação
Para que a história não se repita, os Tenharim apostam no Memorial Jiré como forma de lembrar e manter a história viva para as próximas gerações. Além disso, junto aos Jiahui, os Tenharim exigiram em uma Ação Civil Pública, proposta pelo Ministério Público Federal no Amazonas (MPF/AM) em 2014, a reparação do Estado brasileiro pelos danos sofridos na construção da Transamazônica.
“A estrada cortou o território desses grupos e também a própria construção foi marcada pela exploração da mão de obra, pela contaminação de indígenas, pela destruição de locais sagrados, tudo isso foi colocado na ação”, explica Julio José Araujo, procurador do MPF.
Em agosto de 2019, o Tribunal Regional Federal da Primeira Região proferiu sentença favorável ao pedido do MPF reconhecendo os danos causados aos povos Tenharim e Jiahui. Dentre as determinações, a sentença obriga a União e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) a adotar medidas permanentes de preservação de lugares sagrados indicados pelos dois povos, medidas de não-repetição, tais como a criação de um centro de memória, e o pagamento de indenização de 10 milhões de reais por cada uma das demandadas.
Segundo Araujo, o MPF também investiga a responsabilidade da Paranapanema. “Uma das empresas que estão sendo objeto de pesquisa e análise é a Paranapanema, tanto em relação aos Tenharim quanto em relação aos Waimiri-Atroari”, conta.
A outra cobra grande
Enquanto lutam na Justiça Federal pelo reconhecimento do Estado brasileiro dos danos causados pela construção da BR-230, os Tenharim temem a chegada de um novo empreendimento que afetaria novamente o território. A Usina Hidrelétrica (UHE) Tabajara do Rio Machado é um empreendimento previsto na região de Machadinho D’Oeste (RO), nas proximidades da TI Marmelos.
“O povo Tenharim está sendo atingido por duas ‘cobra grande’. Primeiro a Transamazônica na década de 1970 e agora pela hidrelétrica Tabajara, no entorno da terra, que atinge diretamente nosso povo”, diz a liderança Antonio Neves.
Apesar de constar sua presença no Componente Indígena do Estudo de Impacto Ambiental, os Tenharim apontam diversas falhas no processo de consulta –– direito que é garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Outros povos da região que também consideram que seus territórios seriam afetados, os Arara, Gavião e Jiahui, sequer constam no estudo de impactos. Ainda assim, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) realizou audiências públicas para avaliação do estudo em abril de 2022.
“Eles querem fazer do jeito deles, violando o nosso direito. Aí eu penso, se nós não nos prepararmos, conhecermos essa lei, eles iriam passar por cima. Igual a Transamazônica”, opina Vilson Tenharim.
Mesmo com a mudança de comando no governo federal, as lideranças se preocupam com a possibilidade do empreendimento avançar.
“A gente não confia mais na empresa Eletronorte porque a gente viu como avançou a situação da UHE Tabajara no governo Bolsonaro. Agora com o novo governo Lula, a gente vai ver como é que vai ficar. A gente sabe que esse empreendimento é do PAC 2: O Programa de Aceleração do Crescimento 2 (PAC 2) foi lançado em 2010 durante o governo de Dilma Roussef e tinha entre suas metas mega empreendimentos na área de energia”, comenta Vilson.
Além de se preocupar com mais um impacto sem volta no território, os Tenharim temem pelos povos em isolamento que habitam a região.
“Nas cabeceiras tem a existência de indígenas isolados que serão prejudicados” aponta Antonio Neves. Ele conta que seu povo também busca o apoio de pesquisadores para entenderem melhor os possíveis impactos da construção da UHE Tabajara. “Nós trouxemos uma demanda para a USP. Apresentamos uma pauta para que os profissionais técnicos façam um estudo no nosso território”.
Em um recurso apresentado pelo MPF, a Justiça Federal concedeu liminar em julho de 2022 decidindo que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ibama deverão exigir do empreendedor novos laudos técnicos sobre os impactos ambientais da UHE Tabajara que podem atingir os povos indígenas e as comunidades tradicionais da região. Os novos estudos deverão incluir a avaliação das consequências da inundação, impactos sobre grupos isolados e os modos de vida, além dos impactos cumulativos causados pela construção da Rodovia Transamazônica.
Esta reportagem faz parte da série ‘Memória Interétnica’, com conteúdos que retomam casos de violações contra indígenas documentados por Centro de Referência Virtual Indígena e Cartografia de Ataques contra Indígenas, conectando-os aos temas da atualidade. O projeto é uma realização do Instituto de Políticas Relacionais em parceria com o Armazém Memória e tem apoio da Embaixada Real da Noruega em Brasília.