Em entrevista à InfoAmazonia, Juliana Siqueira-Gay do Instituto Escolhas fala sobre da implantação da nota eletrônica e do fim da presunção de boa-fé na origem do ouro como avanços no controle e fiscalização da exploração do minério na Amazônia
Em três meses, desde que a nova gestão do governo Lula (PT) assumiu tendo como um dos primeiros desafios combater o garimpo ilegal na Amazônia, o sistema para negociação de ouro registrou avanços nunca vistos, segundo aponta gerente de projetos do Instituto Escolhas, Juliana Siqueira-Gay, engenheira ambiental e doutora pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, em entrevista à InfoAmazonia.
A implantação da Nota Fiscal Eletrônica, no fim de março, pela Receita Federal e o fim da chamada “presunção de boa-fé”, suspensa por decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em 5 de abril, já devem conferir maior controle sobre a origem e o comércio de ouro ainda este ano.
Na decisão do STF, o ministro Gilmar Mendes apontou que conferir legalidade para o ouro adquirido através do chamado princípio da boa-fé “abre caminho para que as Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs) comprem ouro e arquivem as informações fornecidas pelos vendedores (muitas vezes, posseiros e garimpeiros ilegais), sem nenhuma outra providência no sentido de comprovarem essas informações”. O governo terá 90 dias após a decisão de Gilmar Mendes para implantar mecanismos que cumpram a decisão.
Já a implantação da nota fiscal eletrônica (estabelecida pela Instrução Normativa 2.138) deve passar a vigorar a partir de julho deste ano e permitirá mais transparência e poder para se rastrear a origem do ouro explorado nos garimpos da Amazônia.
“Ambos, tanto o fim do princípio da boa-fé como a nota fiscal eletrônica, são fundamentais para rastrear a origem do ouro”, explica Siqueira-Gay.
Nessa conversa, além de explicar como o fim do princípio da boa-fé e a implantação da nota eletrônica vão colaborar com o melhor controle da cadeia do ouro, Siqueira-Gay também fala sobre outros desafios, como a implantação de guias de transporte para o minério, que vão conferir maior controle sobre quem e para onde o ouro é enviado, e sobre as questões ambientais que envolvem o funcionamento de garimpos na Amazônia.
Confira a entrevista na íntegra
O que representa essa decisão do ministro Gilmar Mendes que suspendeu a “boa-fé” na primeira compra do ouro dos garimpos? Essa decisão é definitiva ou depende de ser referendada pelo tribunal ou por outros órgãos do Executivo?
Juliana Siqueira-Gay: Acho que o primeiro ponto é uma vitória. Esse assunto vinha sendo questionado em pelo menos duas ADIs [ADI 7273 e ADI 7345], que são ações de inconstitucionalidade, e a decisão do ministro suspende o princípio da boa-fé, que estabelecia que a veracidade das informações sobre a origem do ouro ficava a cargo do vendedor. Qualquer um que vendesse ouro poderia declarar que veio de algum processo minerário ou de algum outro lugar que não necessariamente seria verificado, porque ele estava resguardado por esse princípio. A partir do momento em que isso é suspenso, que foi a decisão na medida cautelar, esse princípio não vale mais. Isso representa que as instituições financeiras e todos os sistema da cadeia do ouro têm responsabilidade sobre essa origem. Por exemplo, se forem necessárias fiscalizações e investigações, a partir de agora, será preciso atestar essa origem. A decisão do ministro Gilmar Mendes suspende a boa-fé e dá 90 dias para o governo federal tomar alguma ação, seja infralegal ou legal.
Diante de todos esses impactos que a gente tem visto nos últimos anos, principalmente desde 2018, como é o caso da questão dos yanomamis, o ministro tomou essa medida cautelar, que é algo imediato e passa valer do momento da publicação. Agora o governo precisa, dentro desse prazo, definir qual dispositivo será usado para garantir a decisão.
Recentemente nós também tivemos a adoção da Nota Fiscal Eletrônica para transações de ouro. Existe alguma relação entre a questão da boa-fé e a nota eletrônica e o que muda? Será possível o rastreamento do ouro?
A nota fiscal eletrônica foi uma instrução normativa da Receita Federal. Antes, todas as transações do ouro e todas as informações ficavam armazenadas em registros em papel. Esse é um ponto que também corroborou para fraudes e ilegalidades na cadeia. Tinha a origem da boa-fé, que a origem não era verificada. Tinha um registro em papel, que favorecia essas fraudes. Tínhamos um conjunto do cenário perfeito para o avanço das ilegalidades na cadeia do ouro. Com o advento da nota fiscal eletrônica, a partir de julho deste ano, esses recibos precisam ser digitalizados, e conter informações sobre o CNPJ e demais informações sobre essas transações. Ambos, tanto o fim do princípio da boa-fé como a nota fiscal eletrônica são fundamentais para rastrear a origem do ouro, isso é, para fortalecer a rastreabilidade na cadeia, certificar que esse ouro não está vindo de terras indígenas, de Unidades de Conservação, ou áreas que não podem ser mineradas.
Então, em tese, com o fim da boa-fé e a nota fiscal eletrônica já é possível rastrear a cadeia do ouro e verificar ilegalidades para punir eventuais infratores?
Sim, a princípio será possível. Claro, são avanços, que temos que acompanhar e que ainda estão em processo de implementação. A questão da boa-fé era elencada como medida número 1, que o Instituto Escolha trazia sempre nos estudos e comunicações. Mas também trazer outros pontos de atenção, como as guias de transporte. A nota fiscal vai declarar quem está comprando e quantidade, mas não temos por exemplo, ainda, uma guia de transporte, como já existe na custódia da madeira e outras cadeias produtivas. Com a guia de transporte podemos acompanhar quem está transportando e para onde. Essa digitalização do sistema é algo fundamental. Temos outras medidas que estão sendo discutidas, e para se garantir o rastreamento de toda a cadeia do ouro ainda precisamos avançar em alguns outros pontos, que se possa cruzar essas informações, com sistemas de alertas para transações com grandes volumes de ouro. Um dos pontos que comentamos bastante com a Polícia Federal é a marcação física do ouro, que são tecnologias que marcam o minério na origem do lote sem prejudicar a pureza do ouro, isso é algo muito interessante e que exigiria uma mão de obra especializada. Mas isso nos daria garantias mais precisas sobre a origem do ouro.
Essas guias funcionariam como as já implantadas para controle do gado? Nesse caso, poderíamos descobrir, se necessário, se o ouro que chegou no mercado tem alguma origem em um garimpo ilegal?
Eu acho que sim, eu acho que é fundamental a implementação dessas guias e também uma maior conscientização sobre a responsabilização de quem compra esse ouro. As cadeias da carne e da madeira têm suas especificidades, mas o ouro é um ativo muito valioso, acho que merece ter uma guia de transporte exclusiva, alguma responsabilização sobre esse bem. A gente olha nas cidades e vê diversos carros fortes transportando dinheiro, eu imagino que o ouro também mereceria algo muito delicado nesse sentido desde a extração. E também não é uma cadeia tão pulverizada assim. Nós temos o ouro que vai para os bancos e para as agências de investimento, que é a maior parte, e tem a indústria, as joalherias e o mercado do ouro. A própria Agência Nacional de Mineração (ANM) tem esses anuários minerais que mostram o quanto de ouro sai, qual é a participação de cada segmento. E se houvesse uma responsabilização, essa implementação exigiria mecanismos como essas guias de transporte que facilitariam esse rastreio, principalmente considerando um sistema digital informatizado.
Hoje nós vemos garimpos com produção de escala industrial funcionando com licenciamento simplificado como se exercesse uma atividade artesanal. Sobre a questão da pequena mineração em si e o conceito sobre o que é ou não artesanal, como podemos pensar uma política ambiental que seja mais efetiva sobre essa categorização?
O garimpo hoje não é mais artesanal. A gente vê retroescavadeira e uma série de maquinários que mostram que não se opera mais de forma pequena, tão pouco artesanal, muito menos com uma bateia na mão. E a gente tem dados geográficos das áreas de mineração, como os que são produzidos pelo MapBiomas, e o garimpo já ocupa uma área maior que a mineração Industrial. O garimpo cresceu muito, mais que dobrou [a área ocupada] de 2018 até 2021. Então, a gente tem uma área muito grande e um avanço muito maior que precisa de uma atenção. Isso exige uma atenção do licenciamento, de toda a avaliação ambiental. Hoje o garimpo tem avaliações simplificadas que são totalmente incompatíveis com o tamanho e impacto dessas atividades. O uso do mercúrio nos garimpos é algo que precisa ser observado, pois está contaminando os rios, os peixe, a água e toda a biota aquática. Hoje o garimpo não tem obrigação de recuperar aquilo que ele polui. Ao se implementar um plano de aproveitamento de lavra do garimpo também se consegue identificar o quanto aquele garimpo vai durar e também se prever um plano de recuperação de áreas degradadas. O que é obrigatório para mineração industrial, mas que não é para o garimpo artesanal.