Leilão da ANM lançado no final da gestão Bolsonaro disponibilizou áreas para legalizar garimpos, incluindo áreas na Terra Indígena Menkragnoti, no Pará, e em pelo menos nove unidades de conservação; cooperativas ligadas ao lobby pró-garimpo devem ser as mais beneficiadas. MPF instaurou investigação e organizações pedem cancelamento do edital.
Às vésperas do primeiro turno na eleição de 2022, a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) disponibilizou quase 1 milhão de hectares na Amazônia para instalação de garimpos, incluindo áreas dentro de terras indígenas e unidades de conservação.
A 6ª Rodada de Disponibilidade de Áreas da Agência Nacional de Mineração (ANM), lançada em setembro de 2022, ofertou 420 áreas para Permissão de Lavra Garimpeira (PLG), que é a autorização para o funcionamento dos garimpos. Segundo a agência, o leilão “visa a regularização e a formalização da extração mineral em áreas de conflito”.
O edital do leilão ainda depende da homologação do resultado. Dos 420 processos minerários ofertados, 243 apresentaram interessados. A publicação do resultado final estava prevista para a última quarta-feira, 8 de março, mas a ANM informou que a publicação foi adiada.
No mapa, as cruzes amarelas indicam as principais Permissões de Lavra Garimpeiras (PLGs) ofertadas no leilão próximos a terras indígenas (em roxo) e unidades de conservação (em verde). Aproxime das áreas indicadas para ver os limites dos requerimentos minerários (em branco) oferecidos ao garimpo via leilão.
A maioria das áreas ofertadas, 393, está na Amazônia. O Pará é disparado o estado com maior número de áreas, com 300 processos minerários disponibilizados aos garimpeiros. Mato Grosso, com 59 processos, e Roraima, com 29, vêm na sequência.
Levantamento da InfoAmazonia identificou que pelo menos 97 sobreposições dessas áreas estão em unidades de conservação (UC) e dois processos na Terra Indígena Menkragnoti.
63 áreas ofertadas estão dentro da APA do Tapajós, que é a UC mais impactadas pelo edital. No Pará também foram identificados processos com sobreposições na Floresta Nacional do Crepori, Floresta Nacional do Jamanxim, APA Triunfo do Xingu e Parque Nacional do Rio Novo.
Em boa parte das áreas do leilão já existem garimpos instalados, a maioria operando ilegalmente, fazendo uso de mercúrio, alterando cursos de rios e provocando desmatamento em terras indígenas e áreas de proteção ambiental.
A reportagem identificou que cooperativas beneficiadas no leilão da ANM mantêm negócios com o mesmo grupo que ao longo dos últimos quatro anos atuou no lobby pró-garimpo em Brasília (ver “DTVMs e o ouro das cooperativas“ ). O grupo chegou a apresentar uma minuta para um novo Código de Mineração, tentou encaminhar um termo de ajuste de conduta (TAC) entre poder público e os garimpeiros e, principalmente, procurou mobilizar o avanço do PL 191/2020, que visa liberar as terras indígenas para mineração, e está parado no Congresso.
O leilão da invasão garimpeira
Dentro da Terra Indígena (TI) Menkragnoti, onde vivem os kayapós, no Pará, áreas de dois processos minerários foram disponibilizadas. As ofertas ocorreram mesmo depois da ANM já ter indeferido os processos por interferência total na terra indígena.
As áreas estão listadas como prova entre 910 processos de mineração considerados ilegais em uma ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF). Em janeiro deste ano, a Justiça concedeu decisão favorável ao MPF e determinou o cancelamento dos requerimentos de mineração em terras indígenas na região de Altamira, no Pará. Mas a ANM recorreu da decisão.
O processo minerário na TI Menkragnoti fazia parte de um antigo projeto da mineradora Vale, de 1996, em Altamira, e até 2020 esteve no portfólio da empresa como “relevante para os negócios da Companhia”. A Vale nunca conseguiu minerar ouro no local e a desistência pela área foi homologada pela ANM em 2021.
Já na Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, partes de garimpos que já invadiram a Terra Indígena Munduruku podem ser legalizadas pelo leilão da ANM. Nesse caso, apesar de as áreas leiloadas estarem fora da terra indígena, elas cobrem parte de grandes garimpos ilegais já em operação.
Com apoio de imagens de satélite, a reportagem da InfoAmazonia identificou duas áreas arrematadas pela Cooperativa Mista de Desenvolvimento do Crepurizão (Comidec) que cobre parte de um garimpo que percorre todo o Igarapé do Prata e invade a TI Munduruku. Nessa mesma região, a Comidec tem outros dois pedidos de mineração ativos na ANM, uma das áreas faz divisa com o território indígena justamente onde ocorre uma das invasões ilegais.
Ouro sem fiscalização
O leilão da ANM disponibilizou áreas de processos minerários que estavam parados no órgão e que não avançaram, seja por falta de viabilidade ambiental, geológica, de mercado, ou abandono dos interessados.
Praticamente não existem mais áreas livres para novos pedidos de mineração, e as regiões onde sabidamente tem minérios já são requeridas. Mas as áreas garimpáveis foram invadidas por garimpos sem a fiscalização da ANM.
A autorização da ANM é imprescindível para tornar legal o ouro que é colocado à venda no mercado financeiro. O ouro que sai dos garimpos sem PLG é ilegal, e para virar ativo financeiro passa por um processo chamado de “esquentamento”, que é quando o minério de origem ilegal é declarado como se viesse de uma PLG ativa.
Esse esquema foi descoberto pelo MPF e revelou que as Distribuidoras de Valores Mobiliários (DTVMs), instituições que fazem a primeira compra do ouro, negociaram toneladas de minério ilegal nos últimos anos declarando como origem PLGs ativas que nunca foram exploradas.
“Muitas áreas deste leilão estão no Pará, e justamente em Itaituba, onde se tem indícios de ilegalidades e lavagem de ouro”, afirma Juliana Siqueira-Gay, gerente de projetos do Instituto Escolhas, que investiga a cadeia do ouro no Brasil.
A organização pediu o cancelamento da 6ª rodada do leilão à ANM por considerar que as áreas ofertadas estão “concentradas em locais sabidamente problemáticos em termos de ilegalidades e invasão de Terras Indígenas”.
“O nosso olhar é de que uma Agência Nacional de Mineração teria sim que fiscalizar onde estão essas áreas, se tem sobreposições, antes de abrir para disponibilidade”, afirma a gerente do Instituto Escolhas.
O MPF instaurou notícia de fato para apurar a oferta do leilão sobre áreas de preservação nos estados do Pará, Roraima e Amapá. O procedimento teve início após a procuradoria da República em Macapá identificar três processos minerários na Floresta Estadual do Amapá (FLOTA), e cobrou informações da ANM. O mesmo procedimento foi adotado pelas procuradorias do Pará e Roraima.
“É imprescindível averiguar qual o fundamento jurídico que baseia o leilão organizado pela ANM, uma vez que tais áreas sequer poderiam ser colocadas em disponibilidade e, possivelmente, não podem ser exploradas para fins minerários”, diz trecho da manifestação da procuradora Thereza Luiza Fontenelli Costa Maia, do MPF do Amapá.
115 mil hectares de garimpo
As 420 áreas colocadas em leilão receberam propostas entre 15 de setembro e 15 de novembro de 2022. Os participantes pontuaram de acordo com critérios como regionalização, quantidade de cooperados e existência ou não de direito de uso das áreas. Os interessados também puderam requerer os processos sem comprovação de posse ou uso da área.
A Comidec, que opera garimpos na região do rio Crepori, no Pará, apresentou propostas para arrematar 31 áreas que juntas somam 74,1 mil hectares, incluindo áreas na APA do Tapajós e nas Florestas Nacionais do Jamanxim e do Crepori.
A cooperativa tem outros 85 processos de mineração ativos na ANM com mais 41,2 mil hectares.
Se somadas as áreas ativas da Comidec na ANM com as pretendidas no leilão, a Cooperativa pode ficar com mais de 115 mil hectares para garimpar ouro na Amazônia.
Apesar do regime de permissão de lavra garimpeira ter sido concebido originalmente para operações rudimentares, em pequena escala, e, por isso, com condições facilitadas para exploração, isso não é o que ocorre na prática.
“Hoje, os garimpos contam com maquinário, logística e organização industrial e, conforme já demonstrado, possuem conexões com empresas em todos os elos da cadeia, inclusive no exterior”, destaca o documento do Instituto Escolhas enviado à ANM.
Em 2019, o diretor da ANM, Tasso Mendonça Júnior, esteve em Itaituba, no Pará, para conhecer as áreas de garimpos no Crepurizão, onde a cooperativa agora tenta legalizar mais áreas.
Durante o encontro, um dos fundadores da Comidec, João Batista Bezerra Ferreira, conhecido como João da Delub, anunciou a construção de uma escola com dinheiro da cooperativa.
Em fevereiro do ano passado, João da Delub se reuniu com o então já ex-presidente do ICMBio, coronel Homero de Giorge Cerqueira, em Brasília, para discutir a legalização dos garimpos no Pará.
Após deixar a chefia do ICMBio, em agosto de 2020, Cerqueira passou a representar a Confederação Nacional de Mineração (CNMI), e encabeçou as discussões para legalização dos garimpos.
A cooperativa chegou a informar exploração de ouro de áreas que aparentemente nunca foram exploradas. A extração teria ocorrido em 2018, mas imagens de satélite sugerem que não houve intervenção por garimpo no local indicado, mas sim nas proximidades – onde não há autorização para garimpar. Uma auditoria foi sugerida pela área técnica da ANM, mas não há informações se de fato foi realizada.
Comidec que pretende arrematar 31 áreas de garimpo declarou ouro de área onde aparentemente não houve extração de minério. Fonte: Planet Labs. Inc.
DTVMs e o ouro das cooperativas
Em novembro de 2019, representantes da Cooperouri —que pretende arrematar áreas no leilão vizinhas à Terra Kayapó— se reuniram com o então presidente da ANM, Victor Bicca, em encontro que contou com a presença do senador Zequinha Marinho (PSC-PA), para agilizar a concessão de mais permissões de lavra garimpeira.
Entre 2020 e 2023, a Cooperouri informou mais de 3 mil quilos de ouro em áreas onde já tem PLGs ativas e acabou entrando na mira da Polícia Federal na Operação Terra Desolada. As investigações apontaram depósitos bancários da cooperativa para investigados envolvidos com o garimpo ilegal. Em 2017, o presidente da cooperativa foi autuado em flagrante em um garimpo dentro da Terra Indígena Kayapó.
Parte do ouro declarado pela Cooperouri foi comercializado pelas Distribuidoras de Valores Mobiliários (DTVMs) Ourominas (OM) e FD’Gold, ambas denunciadas por despejar mais de duas toneladas de ouro ilegal no mercado financeiro entre 2019 e 2020.
Em branco área vencida pela Cooperouri na fronteira da Terra Indígena Kayapó é parte de garimpo que adentra o território tradicional.
Lobby do garimpo
A FD’Gold pertence ao empresário Dirceu Santos Frederico Sobrinho, que atua em todos os setores da cadeia do ouro, da extração ao comércio internacional.
Em setembro do ano passado, Sobrinho foi preso em São Paulo e assumiu ser dono de 78 quilos de ouro apreendidos pela Polícia Federal.
Como presidente da Associação Nacional do Ouro (Anoro), foi um dos principais articuladores pró-garimpo durante a gestão do ex-presidente Bolsonaro, e participou de discussões no GT do Novo Código de Mineração da Câmara.
Dirceu tem 179 processos minerários ativos na ANM, a maioria dentro da APA do Tapajós, onde defende a criação de uma reserva garimpeira. O empresário não participou do leilão da ANM, mas as cooperativas que mantêm negócios com suas empresas sim.
Uma delas é a Cooperativa do Garimpeiro Legal (CGL), fundada em 2020 e parceira da Anoro em garimpos no Pará. A CGL arrematou 18 mil hectares em 11 áreas no leilão, com áreas na APA do Tapajós e Flona do Crepori.
Entre 2021 e 2022, a CGL negociou 131 quilos de ouro com a FD’Gold de Sobrinho, 13% de uma produção total de 976 quilos declarada em duas permissões de lavra garimpeira.
Uma das maiores áreas requeridas pela cooperativa, de 4,3 mil hectares, foi invadida por garimpos ilegais nos últimos anos, mas não há informação se a CGL comanda esses garimpos.
Desde 2021, o MPF pede a suspensão das atividades das DTVMs FD’Gold e Ourominas, que têm suas atividades reguladas pelo Banco Central, mas elas continuam operando normalmente.
Questionado, o Banco Central afirmou à reportagem que a instituição ”interage com outros atores que atuam na cadeia de comercialização do ouro em fóruns sobre o assunto, a exemplo das ações no âmbito da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e a Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), bem como sempre contribuiu e se colocou à disposição para integrar grupos de trabalho com o intuito de melhorar a ação do Estado sobre a matéria”. O órgão disse que “não faz comentários sobre empresas específicas”.
ANM vai cobrar licença ambiental
A ANM respondeu os questionamentos da reportagem e informou que a seleção dos processos do leilão ocorreu por meio de software que auxiliou na identificação de área “compatível com a lavra de minerais garimpáveis”.
Segundo a agência, o edital “visa a regularização e a formalização da extração mineral mitigando situações de conflito em áreas onde historicamente a atividade minerária ilegal entra em choque com os interesses do país”, apontando que este é “o único caminho possível para que ocorra na área o trabalho de aproveitamento mineral legal”.
Sobre áreas do leilão em unidades de conservação ou que dependam de condicionantes ambientais, a agência afirmou que para obter a autorização por permissão de lavra garimpeira o vencedor terá que “cumprir uma série de exigências técnicas da ANM, além de receber o devido licenciamento ambiental e autorizações necessárias”.
A ANM informou ainda que “encaminhou comunicação com o ICMBIO no início das conversas para a realização deste Edital”.
“Não se está autorizando nenhum violador da lei a absolutamente nada. O que se faz neste momento é que a exploração mineral, que é realidade nesses locais, seja exercida dentro da legislação mineral e ambiental, possibilitando que todos possam agir mediante a apresentação de estudos ambientais e, por óbvio, cumprindo todas as condicionantes e obrigações de empreendedor”.
A Agência não se manifestou sobre os processos minerários dentro da Terra Indígena Menkragnoti.
A InfoAmazonia enviou questionamentos a todas cooperativas citadas na reportagem. A Comidec afirmou que a assessoria jurídica da cooperativa responderia a reportagem, mas até o momento não tivemos retorno. Cooperouri, Coogavape e CGL não responderam.
Também enviamos questionamentos ao ICMBio, Funai, Ministério dos Povos Indígenas e à Secretaria de Meio Ambiente de Itaituba, que não se manifestaram até a publicação desta reportagem. Dirceu Sobrinho e as DTVMs FD’Gold e Ourominas também não se manifestaram.