Anciãos do povo Panará recordam o primeiro contato em 1973, quando seu povo foi retirado de sua terra pela Ditadura Militar para fugir do risco de morte trazido pela BR-163 e transferido para o Parque Indígena do Xingu; em 1997, eles retornaram para seu território tradicional
Dois grupos de homens descem o estradão de terra numa corrida embalada. Sob o intenso sol do meio-dia, cada um dos grupos carrega um tronco de palmeira de buriti com cerca de 100 kg e três metros de altura.
Um corredor sustenta por alguns metros, logo passa para outro que chega para substituí-lo; fazem isso numa velocidade impressionante, tentando ultrapassar o grupo adversário. É a corrida de tora, uma tradição do povo Panará.
Conforme a estrada se aproxima da aldeia, a velocidade aumenta, até que um dos grupos se desgarra e dispara, chegando na frente e encerrando a corrida na Casa dos Homens, uma construção de madeira e palha no centro da aldeia. Depois, com as toras já dispostas no chão, todos se reúnem para dançar e cantar. As mulheres, com pinturas, adornos de pena nos braços, chocalhos de sementes de pequi amarrados nas pernas e saia de miçangas, seguem em fila e se reúnem aos homens na dança circular.
A comemoração dos 25 anos do retorno dos Panará ao seu território tradicional foi promovida pela Associação Iakiô Panará, que os representa, e foi realizada nos dias 15, 16 e 17 de outubro, com dança e cantos tradicionais, corrida de tora, disputa de arco e flecha, moitará (troca de objetos entre os participantes do evento), encontro das mulheres e falas importantes dos Panará lembrando sua história de resistência .
Durante o período da ditadura militar, impactados pela construção da BR-163, os Panará sofreram um exílio dentro do Brasil e foram transferidos compulsoriamente para o Parque Indígena do Xingu. Há 25 anos, eles retornaram ao seu território de origem, encerrando um ciclo de perdas e muita dor. Os Panará são guerreiros e têm muitas conquistas a comemorar.
“Eu fui corajoso. Eu fui forte. Eu fui guerreiro para poder tomar esse pedaço de terra. Se não fosse eu, a gente não tava aqui. Por isso que eu lutei. Eu não tinha medo dos brancos. Eu tinha coragem. Estou feliz ouvindo e celebrando a nossa história”, comemorou o líder Akâ Panará, na cerimônia de abertura da festa.
Akâ é ancião do seu povo e vivenciou o contato com os não-indígenas na década de 1970. É um dos poucos dessa época que ainda estão vivos.
O CONTATO
“Vamos começar pelo começo” é assim que Akâ, sentado em um banco de madeira em frente à sua casa, retoma suas memórias. “Onde tá Matupá [cidade do Mato Grosso] hoje, foi lá que eu nasci, na aldeia grande Inkasã”. Akâ viveu sua infância em um tempo anterior ao contato com os brancos. Os Panará viviam espalhados em dezenas de aldeias em uma região que se estende por todo o norte do Mato Grosso e sul do Pará, e hoje abrange cidades como Colíder, Matupá, Peixoto de Azevedo, Guarantã do Norte e sul de Altamira.
“Antes de o branco chegar eu era feliz, eu caçava, eu brincava sem ter que pensar nos inimigos. Eu tinha liberdade, era só alegria”, conta. Os Panará faziam corrida de tora, festejavam, caçavam e pescavam muito.
Nessa época, porém, povos indígenas ao sul do Mato Grosso já haviam sido contatados pelos irmãos Villas-Bôas (Cláudio, Leonardo e Orlando). Em 1961, o Parque Indígena do Xingu (hoje Território Indígena do Xingu) havia sido demarcado para abrigar e proteger todos esses povos, alguns deles trazidos de outras regiões, como os Ikpeng e os Kawaiwete.
Os Panará não haviam sido alcançados pelo movimento dos Villas-Bôas. Até que, no fim da década de 1960, entraram no caminho dos generais. Em 1967, o governo militar ordenou que Cláudio e Orlando Villas-Bôas empreendessem uma expedição para contatar os Panará e retirá-los da rota da rodovia BR-163 (Cuiabá/Santarém).
“A gente tinha saído para caçar e ouviu o barulho do avião” – neste momento, Akâ recorda que ele e seus parentes foram pegar seus arcos e flechas – “foi um tumulto na aldeia, ficaram assustados com o avião rasante”. No dia seguinte, o avião voltou e os Panará tentaram flechá-lo. Provavelmente, eram voos de aviões militares indo até a base militar na Serra do Cachimbo.
“Ficamos muito preocupados, pessoas de outras aldeias vieram e se juntaram para enfrentar esse inimigo”, recorda Akâ. Em uma ocasião, os Panará encontraram com um branco e o mataram de flechada. Por dias, os Panará continuaram a ouvir o barulho dos aviões. Então, começaram a encontrar objetos no mato, deixados pelos sertanistas no processo de contato.
Kreton Panará, que também viveu essa época, conta que se cortou com a faca que encontrou na floresta, porque não sabia para que servia. Depois de um encontro com um branco na mata, Kreton conta que os Panará se juntaram e discutiram o que fariam. “Vamos esperar ou vamos matar eles?”.
Nessa época, os Panará migraram para uma aldeia mais distante com o intuito de fugir dos brancos. Mas os irmãos Villas-Bôas os seguiram na tentativa de aproximação. Um dia, em 1973, eles se depararam com os sertanistas descendo o rio em duas canoas grandes, e resolveram tentar falar com eles. Cláudio se aproximou, e um Panará pegou o facão da mão dele. Estava feito o contato.
“O pessoal desesquentou, pararam de brigar e começaram a aceitar as coisas. Os jovens falaram ‘Eles vieram aqui para amansar a gente, não é para matar’, e o resto do pessoal concordou”, conta Akâ.
O contato, porém, trouxe a morte. “Era morte de manhã, de tarde, e de noite”, lembra Kreton. A gripe e o sarampo assolaram os Panará. “Sobrou pouca gente”, diz Akâ.
Ao menos 176 Panará morreram em decorrência de doenças contraídas após o contato, entre 1973 e 1975. Quando a rodovia começou a ser construída e centenas de trabalhadores se deslocaram para a região, as consequências foram ainda piores. Kreton conta como foi a primeira vez em que os brancos ofereceram cachaça para ele e outros Panará. “Os Panará não sabiam da bebida e começaram a passar mal de bêbado”, lembra.
Nesse cenário, em 1974, os irmãos Villas-Bôas decidiram transferir os Panará para o Parque Indígena do Xingu. Segundo Akâ, eles foram enganados, pois achavam que haveria outros Panará vivendo lá. Foi um tempo de exílio. A floresta ali era muito diferente da que estavam acostumados. O Parque era pior para a caça e para encontrar os frutos que eram base de sua alimentação.
Sofia Mendonça, coordenadora do projeto Xingu, da Unifesp, conta de um episódio em que os Panará quase morreram intoxicados pelo consumo de mandioca brava, uma variedade consumida pelos indígenas do Parque, mas que os Panará não sabiam como neutralizar o veneno antes do consumo. Essa é só uma das muitas histórias de desamparo.
Nos 20 anos que ficaram no Parque Indígena do Xingu, os Panará viveram primeiro com os Kawaiwete. Depois, com os Kaiapó, e depois, ainda, com os Khisetjê. Nos últimos anos de morada no Parque, foram viver em aldeias próprias. Mas nunca se sentiram em casa.
No início da década de 1990, eles tomaram a decisão de lutar para retornar ao seu território. Toda essa saga está descrita em detalhes no livro Panará – A Volta dos Índios Gigantes e neste site, feito na ocasião dos 20 anos do retorno, que também reúne depoimentos importantes sobre a saga. O arquivo virtual Armazém Memória também guarda documentos da volta dos Panará no início dos anos 1990
O BRANCO COMEU NOSSA TERRA
Lideranças Panará como Akâ e Kreton se articularam para empreender a jornada de retorno. A Funai, segundo eles, não ajudava. Então encontraram os parceiros Steve Schwartzman, que já havia feito seu doutorado junto aos Panará e falava a língua, e o indigenista André Villas-Bôas – que alguns anos depois fundaria o Instituto Socioambiental (ISA).
O primeiro passo foi fazer uma missão de reconhecimento. Seis Panará viajaram de ônibus junto a Steve e André para o município de Peixoto de Azevedo (MT), onde antes era aldeia e floresta, mas que havia se transformado em cidade, pasto, soja e campos de terra arrasada pelo garimpo. “Os brancos comeram nossa terra”, afirmou Akâ.
Ali mesmo, manifestaram o desejo de se encontrar com as autoridades responsáveis. Ficaram indignados e exigiram satisfação. Então, os Panará resolveram sobrevoar o território. Das oito principais aldeias antigas de seu povo, seis haviam sido destruídas. Mas uma porção de floresta mais ao norte ainda estava preservada.
“Eu fiquei muito feliz”, diz Akâ. A partir daí, se iniciou uma intensa luta pela demarcação de uma parcela ainda preservada da Terra Indígena Panará e um longo processo dentro da Funai. Entre 1994 e 1997, os Panará começaram a jornada de retorno. Em 1997, eles comemoraram na aldeia Nãsepotiti a sua volta definitiva e o fim dos dias de exílio, doenças e sofrimento. Em 2001, o território foi demarcado fisicamente e finalmente homologado pelo presidente da República.
O RETORNO DA VIDA
Quando saíram de seu território e foram para o Parque Indígena do Xingu, os Panará eram apenas 74 dos mais de 700 de antes do contato. Chegaram ao Parque combalidos. Durante os anos de exílio, a população cresceu pouco, chegou a pouco mais de 180 em 1994. Desde que voltaram à sua terra, a população ressurgiu: hoje são 704, número similar à população antes do contato.
Kunity Panará, uma liderança de 38 anos que cresceu junto aos Kayapó e chegou na TI Panará aos 16 anos, fala da bonança do retorno. “A pescaria é fácil. A caça é fácil. Muita fruta comestível que é nossa alimentação tradicional. Tem muito açaí, cacau, yapanitu, sotiv, pakÿ. Os mais velhos falam que lá no Xingu a terra e o mato eram diferentes, muito fraco para alimentação. Pessoal morreu muito no Xingu”, conta ele.
Além de liderança, Kunity é comunicador da Rede Xingu +. Ele conversou com a InfoAmazonia em uma das salas da escola da aldeia Nasepotiti, um dos locais onde a conexão do wi-fi é melhor. Sobretudo os mais jovens se reúnem ali para se conectarem na internet.
Terra Indígena Panará foram resguardados. Não há sinal de invasão de garimpeiros, grileiros ou madeireiros, como ocorre em outros territórios. Mesmo assim, os Panará temem pelo seu pedaço de floresta.
Kunity fala da aproximação das fazendas do agronegócio, e da contaminação das cabeceiras dos rios pelos agrotóxicos. “Estamos preocupados com os animais do mato e os peixes do rio. Vamos continuar lutando para manter a nossa vida do jeito que está, pra nenhum garimpeiro ou madeireiro entrar na nossa terra”.
“Esse tipo de kuben (não indígena, em Kayapó) estraga a nossa natureza. Seres humanos que vivem na cidade e precisam de natureza. O mundo precisa de natureza para sobreviver”, conclui o jovem Panará.
Esta reportagem faz parte da série ‘Memória Interétnica’, com conteúdos que retomam casos de violações contra indígenas documentados por Centro de Referência Virtual Indígena e Cartografia de Ataques contra Indígenas, conectando-os aos temas da atualidade. O projeto é uma realização do Instituto de Políticas Relacionais em parceria com o Armazém Memória e tem apoio da Embaixada Real da Noruega em Brasília.