Quem visita Manaus pela primeira vez tem dois pontos turísticos certos para conhecer: o Teatro Amazonas e o Encontro das Águas. O primeiro foi tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 1966 e recebe todos os dias centenas de visitantes. O segundo se trata de um fenômeno natural. As águas do rio Solimões e do rio Negro vivem lado a lado, em um percurso de 6 km, mas não se misturam. O contraste é maior porque as cores são diferentes. O rio Negro é composto por matéria orgânica e tem a cor mais escura, enquanto o rio Solimões tem um aspecto barrento, devido a quantidade de sedimento com origem de solo vulcânico. A visão é retratada em cartões postais, fotografias, quadros, músicas e poemas.
A beleza do lugar deixa de lado uma disputa longínqua, que há 12 anos se estende em tribunais e coloca o fenômeno natural em posição de ser explorado. O Encontro das Águas ainda não é um patrimônio histórico e cultural do Brasil. O tombamento feito pelo Iphan ocorreu em novembro de 2010, mas nunca foi homologado.
A interrupção desse processo se deu no ano seguinte, quando o então governador do estado, agora senador, Omar Aziz (PSD), pediu que o tombamento fosse cancelado. A justificativa era a construção de um porto projetado pela empresa Lajes Logística, que faz parte do Grupo Simões, representante da Coca-Cola na região.
Em 2014 a disputa chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) e de lá nunca saiu. A ministra Cármen Lúcia é a relatora do caso. Desde então, já passaram pelo estado cinco governadores: Omar Aziz, José Melo, David Almeida, Amazonino Mendes e Wilson Lima. A Procuradoria Geral do Estado (PGE), cuja influência é do governador em exercício, nunca mudou de posição e continuou reivindicando que a União e o Iphan anulassem o tombamento em favor da empresa. A PGE foi procurada pela reportagem, mas não respondeu nenhuma das perguntas.
Em entrevista ao InfoAmazonia, a Lajes Logística, por meio de seu diretor Rodrigo Pinheiro, explicou que a implementação do porto, que antes era sonho da empresa, agora ficou em segundo plano e que os investimentos estão sendo focados em outro lugar. A empresa está desenvolvendo outro porto em Itacoatiara, município que faz parte da Região Metropolitana de Manaus. No momento, eles aguardam licença ambiental para iniciar os trabalhos. Enquanto isso, o processo de homologação do tombamento do Encontro das Águas segue parado.
“O processo do Terminal Portuário das Lajes continua no STF. Enquanto isso nós tiramos do radar como empresa do Grupo Simões e investimos em outro terminal portuário no município de Itacoatiara. Não é mais a prioridade pra gente (o porto no Encontro das Águas), afinal de contas já está há muito tempo no STF, não depende da nossa vontade”, avalia Pinheiro.
Questionado se a empresa ainda deve investir no local caso o tombamento seja mesmo suspenso, como pede o processo no STF, Rodrigo afirmou não saber a resposta. “Vamos ter que fazer novamente o plano de negócios para verificar se ainda é um investimento que tem atratividade. Não sabemos se depois disso vamos desistir do projeto”, explicou.
Processo no STF
Em 2011 o então governador Omar Aziz (PSD) solicitou que a homologação do tombamento do Encontro das Águas fosse suspenso. O processo passou para o STF em 2014 e desde lá tem caminhado em curtos passos. Depois da fase de contestações em 2019, são inúmeras prorrogações de prazo para decisão na tentativa de uma conciliação entre entre o governo do Amazonas e a Procuradoria Geral da República (PGR).
O último dos pedidos para prorrogação foi feito em novembro de 2021 pela PGR , mas negado pela Ministra Carmen Lúcia em abril de 2022. “Em razão do decurso do tempo, indefiro o novo pedido de prorrogação”. Ela concedeu dez dias para o Iphan se pronunciar sobre o caso, o que não ocorreu. O Iphan foi procurado pelo InfoAmazonia, mas não respondeu.
Desde então, os interessados estão sendo intimados. A última movimentação no processo é de maio de 2022 e aguarda conclusão da ministra Cármen Lúcia.
SOS Encontro das Águas
Há mais de uma década o movimento SOS Encontro das Águas, composto por professores, artistas, ambientalistas e políticos do estado pede que a homologação seja feita e que o Encontro das Águas seja finalmente tombado. O ativista ambiental Valter Calheiros, que acompanha o caso desde o início da sua discussão, afirma que o interesse de um grande grupo empresarial dificulta que os governos consigam independência para discutir esse tombamento.
“A nossa ideia sempre foi dizer que essa questão do tombamento é fundamental para que aquele eixo do Encontro dos rios compreende Manaus, Iranduba e Careiro da Várzea esteja protegido”, defende.
A ecóloga Elisa Wandelli, que também faz parte do movimento e acompanha a situação desde o início, explica que a construção de um porto fluvial de descarga pode prejudicar a vida de peixes, a saúde do rio e o turismo que é explorado. “São grandes as possibilidades de perda da biodiversidade. Nós temos vários exemplos que mostram como intervenções assim podem alterar a vida aquática das regiões. Um porto pode levar a poluição química biológica que esses navios despertam. Ali também é uma região de identificação de aves raras, aves migratórias e a partir dali os rios podem afetar outras bacias”, alerta.
No Eia-Rima (Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental) apresentado pela empresa ao Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), são diversos os impactos citados para a construção e implementação do espaço como: a destruição da vegetação, alteração da temperatura, o incêndio pela exposição de resíduos secos, a destruição de espécies sensíveis, a contaminação de recursos hídricos, a fuga de animais, dentre outros.
O movimento também alega a existência de sítios arqueológicos no lugar. No Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos do Iphan é possível encontrar cadastrado o sítio Lajes, o primeiro sítio arqueológico registrado no município de Manaus. Ele fica à margem esquerda do rio Negro, ele está na categoria de pré-colonial e foi registrado em 1968.
“A arqueologia tem todo um cuidado com aquela área. Existem gravuras rupestres, é um lugar de pesquisa, de estudo. Você chutando areia você encontra material arqueológico ali”, diz Valter Calheiros.
Novo terminal portuário
A empresa Lajes Logística faz parte do Grupo Simões, que há mais de 70 anos atua na Amazônia. Hoje é representante da Coca-cola e da Heineken Brasil, da Fiat e da Honda, além de outras empresas que oferecem serviços ligados a bebidas, veículos e gases. Agora, a empresa está focada em um novo empreendimento.
De acordo com Rodrigo Pinheiro, o porto em Novo Remanso, no município de Itacoatiara, ainda não recebeu todas as licenças, mas a expectativa é de que ele comece a funcionar no próximo ano.“ A expectativa é de inaugurar no primeiro trimestre de 2023 e no momento só falta a licença de operação”, explicou.
O terminal deve ter quatro portos específicos para a movimentação de quatro produtos como combustíveis (óleo diesel, álcool e querosene); minérios; grãos; açúcar; algodão e cimento.
A implementação dele deve ser feita a 30 quilômetros da foz do rio Madeira e deve atender cargas transportadas na hidrovia que também envolve os rios Solimões e Amazonas, em sua parte ocidental. A empresa está investindo meio bilhão de reais. Os impactos também apresentam danos ao meio físico e biótico, como apresentado no Eia-Rima.