Falta de informação e lentidão na investigação da família assassinada em São Félix do Xingu (PA) preocupa organizações que monitoram violência no campo
O silêncio das autoridades paraenses sobre a morte do ambientalista José Gomes, conhecido como Zé do Lago, e sua família, assassinados em janeiro deste ano em uma área disputada por fazendeiros na zona rural de São Félix do Xingu, Pará, completou nove meses sem sinais de respostas.
O crime ocorreu em uma área reivindicada pelo fazendeiro Francisco Torres de Paula Filho, o Torrinho, candidato a deputado estadual no Pará, pelo Podemos, e irmão do prefeito da cidade, João Cleber de Sousa Torres.
A investigação da Polícia Civil ainda não esclarece se Torrinho figura entre suspeito ou testemunha e não informa se alguém já foi ouvido no inquérito. O Ministério Público Estadual também não fala sobre o caso. E o Ministério Público Federal, que chegou a pedir cópia da investigação, após denúncias de omissão das autoridades locais, nunca recebeu respostas.
A falta de informação e lentidão na investigação do assassinato de Zé do Lago e sua família preocupa as organizações que monitoram a violência no campo. “Não há informação nenhuma, até hoje não se sabe qual é a linha de investigação nem o que já foi feito no caso. Por que tanto mistério?”, questiona José Batista Afonso, advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
José Gomes, 61 anos, a mulher, Márcia Nunes Lisboa, 39, e a filha dela, Joane Lisboa, 17, foram assassinados entre 7 e 9 de janeiro em Cachoeira do Mucura, onde viviam há mais de 20 anos e realizavam o projeto de repovoamento de tracajás e tartaruga nas águas do rio Xingu.
A casa de madeira e chão batido onde viviam estava cercada pelas fazendas dos irmãos Torres, e ficava ao lado da Fazenda Barra do Baú, uma propriedade de 2.604 hectares de Torrinho. O pecuarista tinha planos de ampliar a fazenda para 7,6 mil hectares, chegando até a margem do rio onde Zé e família moravam. Toda essa área de conflito está inserida na APA do Triunfo do Xingu, uma unidade de conservação de uso sustentável.
Em fevereiro, Torrinho disse à Folha que Zé do Lago vivia na sua fazenda com seu consentimento. Nessa área, havia um requerimento de Cadastro Ambiental Rural em nome de Torrinho, mas que acabou recusado pela área técnica do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Do outro lado do rio, está a Fazenda Bom Jardim, com uma área de 12,5 mil hectares com pedido de Cadastro Rural e nome do prefeito João Cleber Torres, um aliado do governador do Pará, Helder Barbalho (MDB). Essa área acumula infrações ambientais por desmatamento ilegal.
Ao longo dos últimos anos, os irmãos Torres construíram fortuna e conquistaram poder. Em 2020, João Cleber Torres declarou um patrimônio de R$ 15,2 milhões, mais de 119% do que havia declarado na eleição de 2018 (R$6,9 milhões). Na Justiça, os Torres tentam se livrar de antigos problemas. O nome de João Cleber já figurou na lista suja do trabalho escravo, em decorrência das péssimas condições de trabalho na fazenda Bom Jardim.
A Fazenda Barra do Baú já foi autuada pelo menos 10 vezes por crimes ambientais e acumula R$ 18,8 milhões em multas ambientais. A fazenda fica na APA Triunfo do Rio Xingu, que desde 2013 é a unidade de conservação mais desmatada no país.
Morte sob sigilo
A investigação foi iniciada em Marabá, a 500 quilômetros de onde a família foi assassinada e hoje é conduzida pela Divisão de Homicídios de Belém. Nossa reportagem tentou contato com o delegado titular do caso para esclarecer o andamento do caso, mas ele não respondeu os pedidos de entrevista.
A assessoria da Polícia Civil do Pará diz que o caso está “sob sigilo”, com acompanhamento do Ministério Público e demais órgãos, mas não responde sobre a linha de investigação e se já foram colhidos depoimentos, por exemplo. Procurada, a Promotoria de Justiça de São Félix do Xingu não quis se manifestar.
“O sigilo, nesse caso, parece mais uma estratégia que deturpa o uso desse dispositivo que muitas vezes é necessário em alguma fase da investigação. Mas nesse caso, já se passaram meses, não faz sentido”, emenda Batista.
Em 14 de janeiro, uma semana após o crime, o MPF do Pará pediu cópias da investigação e cogitou pedir a federalização da investigação para apurar a falta de resposta aos pedidos de informação feitos por entidades defensoras dos direitos humanos.
Procurado, o MPF-PA informou que não levou o caso à Justiça federal, procedimento que deve atender requisitos específicos do chamado Incidente de Deslocamento de Competência (IDC), entre eles provar incapacidade das autoridades locais e risco de impunidade.
Ao InfoAmazonia, o advogado Walteir Gomes Rezende, disse que Torrinho não tem envolvimento com o caso, mas que só aceita conceder entrevista sobre o assunto após a eleição.
“Ele não foi indiciado e nem ouvido no caso porque a autoridade policial achou que não era necessário. Ele não tem nada a ver com isso”, afirmou Rezende
“Neste momento não queremos falar sobre esse assunto porque estamos a uma semana da eleição. Se você puder esperar, depois da eleição ele responde todas as perguntas, antes não vamos nos manifestar porque isso é coisa que vem dos adversários para atingir a campanha”, alegou o advogado.
A Assessoria do prefeito João Cleber Torres disse que o prefeito não tem nada a comentar sobre o assunto e nos enviou a seguinte mensagem:
“Está com a Justiça, em investigação, e temos a certeza que conhecendo a seriedade e comprometimento com a população do Pará! Logo a Justiça terá a solução deste crime bárbaro.”
Segundo dados da CPT, em 40 anos, foram registrados 62 assassinatos no campo em São Félix do Xingu, mas em nenhum caso houve condenação dos culpados.
Da pistolagem à ALEPA
Essa é a primeira vez que Torrinho enfrenta as urnas, em busca de uma das 41 vagas na Assembleia Legislativa do Pará (ALEPA). Tendo o irmão e prefeito como cabo eleitoral, ele desponta como um dos candidatos preferidos na sua região. Uma pesquisa local divulgada na última semana de agosto mostra Torrinho Torres (Podemos) em primeiro nas intenções de votos em São Félix do Xingu.
Torrinho declarou um patrimônio de R$ 8,7 milhões, incluindo helicóptero, 1.500 cabeças de gado, uma propriedade com mais de 6 mil hectares em Altamira (PA) e cotas na Agropecuária Barra do Baú, dona da fazenda que pretendia expandir sobre a área ocupada por Zé do Lago.
Em 2016, Torrinho e o irmão João Cleber de Sousa Torres foram alvos de condução coercitiva na Operação Reis do Gado. Torinho acabou preso em flagrante por porte ilegal de armas. A operação investigou um esquema de fraudes e lavagem de dinheiro envolvendo o ex-governador de Tocantins Marcelo Carvalho de Miranda.
A investigação da Operação Reis do Gado revelou que mais mortes ocorreram em outra propriedade relacionada aos irmãos Torres, em 2012. Segundo trecho da investigação, três pessoas foram assassinadas e duas torturadas na Fazenda Ouro Verde, que na época era negociada pelo prefeito João Cleber Torres com o então governador do Tocantins, Marcelo Miranda.
Segundo o inquérito, o informante do Ministério Público disse em depoimento ter sido ameaçado pelos Torres para ficar longe da fazenda. Já Torrinho, teria ameaçado de morte um procurador federal.
Em 2018, Marcelo Miranda teve seu mandato como governador do Tocantins cassado por caixa dois na campanha anterior (de 2014). Eleito três vezes para o cargo, Miranda foi cassado e afastado do cargo duas vezes.
Em 2003, Torrinho e o irmão foram apontados como “mandantes do crime organizado na região de São Félix do Xingu”, em um relatório do Ministério Público do estado.
“Invasão, ocupação e grilagem de terras públicas; são donos da madeireira Impanguçu Madeira e Maginga. Pelo perigo que representam são muito temidos na região”, dizia trecho do documento que, na época, foi destacado em reportagem na Folha de São Paulo.
Não há julgamento ou condenações contra os irmãos Torres nos casos citados.
Torrinho garimpeiro
No TSE, Torrinho se declara como pecuarista, mas desde 2020 ele também investe em mineração.
O candidato tem pelo menos 18 requerimentos de Permissão de Lavra Garimpeira (PLG) ativos para explorar ouro e cassiterita em São Félix do Xingu. Alguns deles já com licenciamento ambiental aprovado pelo órgão ambiental da prefeitura de São Félix do Xingu, comandada pelo seu irmão. Torrinho é o candidato com maior número de pedidos de mineração na Amazônia nas eleições de 2022. (Bancada do Ouro: candidatos querem explorar minério na Amazônia).
A área técnica da Agência Nacional de Mineração (ANM) chegou a alertar que Torrinho não poderia ter mais de uma PLG ativa, já que esta categoria de exploração é um tipo de lavra rudimentar, de caráter individual. E pediu o cancelamento dos demais requerimentos, no entanto, os processos seguem ativos no sistema da ANM (até 21/09/2022).
Pelo menos 10 desses projetos estão na Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu, em regiões que foram desmatadas e incendiadas entre 2019 e 2021, segundo dados do INPE. Nesse período, mais de 500 hectares foram desmatados na área dos projetos de mineração de Torrinho. Outros quatro pedidos estão a cerca de 5 quilômetros da Terra Indígena Apyterewa e mais quatro a 20 quilômetros do território indígena.
Muito boa a matéria. Nos atualize desse caso por favor, não pode cair no esquecimento.