Dados sobre desmatamento revelam a derrubada de mais de 3,3 milhões de árvores dentro da TI de povos em isolamento; portaria que impedia exploração da área venceu em dezembro de 2021. Organizações alertam para riscos efetivos de genocídio
Os indígenas em isolamento voluntário conhecidos como Katawixi estão cercados por invasores e sofrendo pressão de madeireiros e fazendeiros em uma das áreas mais desmatadas da Amazônia Legal. O grupo está sem a proteção legal que proibia qualquer tipo de exploração na Terra Indígena Jacareúba/Katawixi desde dezembro de 2021.
A área de 647,3 mil hectares, localizada no Sul do Amazonas entre os municípios de Lábrea, Canutama e Humaitá, na bacia do rio Purus, se tornou alvo de invasões e de grilagem de terras. O Ministério Público Federal (MPF) e organizações de proteção ambiental alertam para a possibilidade de extinção do grupo “com riscos efetivos de genocídio”.
Já a Fundação Nacional do Índio (Funai), que desde 2007 manteve portarias de restrição de uso na terra indígena e tem o dever legal de proteger esses povos, não comenta o assunto e não revela se pretende renovar a portaria de restrição para continuar os estudos para demarcação do território dos isolados Katawixi.
Enquanto isso, estima-se que desde 2008 mais de 3,3 milhões de árvores já foram derrubadas dentro da terra indígena, em uma área de 5,8 mil hectares desmatados, segundo dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em 2021, o desmatamento aumentou 60% no interior da TI.
Em março deste ano, o MPF cobrou da presidência da Funai a renovação da portaria para proteger o território com urgência. O órgão destacou que o desmatamento e as invasões se intensificaram quando a restrição de uso estava próximo de expirar. “Fruto da ausência de operações de fiscalização, bem como da expectativa e especulação dos invasores sobre a não renovação da portaria”, destacou o procurador Fernando Merloto Soave na recomendação, que segue ignorada pelo órgão de proteção indígena do governo federal.
O InfoAmazonia encontrou 111 cadastros de imóveis rurais no Sistema de Cadastro Ambiental Rural (SICAR) do Serviço Florestal Brasileiro, que indica a intenção de ocupação da área. Até uma estrada, com cerca de 40 quilômetros de extensão, foi identificado nas regiões Sul e Sudeste da Terra Indígena, segundo Nota Técnica do Observatório da BR-319.
“O que nós percebemos é que existe uma omissão completa da Funai. Os povos isolados estão abandonados e correndo risco de desaparecerem. Tem muita pressão, muita gente comprando terras na região sem saber se está ou não em terra indígena”, afirma Zé Bajaga, cacique Apurinã e presidente da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp).
Os isolados do sul do Amazonas estão na área de influência das rodovias Transamazônica e BR-319, essa última em fase de licenciamento para construção da pavimentação de asfalto. Para o MPF, as intenções do governo federal de integrar as rodovias à malha viária nessa região da Amazônia —que inclui ainda a construção de novas vias projetadas— já provoca impactos significativos, como a derrubada da floresta para aberturas de novas propriedades agrícolas.
Um estudo realizado pelo Instituto Socioambiental e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)aponta que se nada for feito, o desmatamento na TI poderá acumular 269.974 hectares devastados entre 2022 a 2039.
Recordes de desmatamento
A Rodovia Transamazônica, no trecho entre Humaitá (margem esquerda do rio Madeira) e Lábrea (beira do rio Purus) corta territórios de povos isolados desde o início dos anos 1970. É por essa região que o chamado arco do desmatamento avança na direção de áreas ainda preservadas. Só no ano passado, sete municípios do Sul do Amazonas, onde estão os Katawixi, concentraram 83% de todo o desmatamento do estado. Esse índice, colocou o Amazonas pela primeira vez como segundo mais desmatado na Amazônia Legal —posição historicamente ocupada pelo Mato Grosso. O Pará segue em primeiro como o que mais desmata.
Parte da TI está em Lábrea, que é o 4º município mais desmatado da Amazônia Legal, e que já perdeu mais de 300 mil hectares para abertura de plantações de soja e criação de gado. Entre 2020 e 2021, o desmatamento aumentou 40% em Lábrea. Outra parte da área ocupada pelos isolados está em Canutama. Lá, o desmatamento aumentou mais de 80% nesse período. E a mesma tendência se repete nas demais cidades do entorno, como Humaitá, onde a área desmatada por ano quase dobrou, e em Porto Velho.
“Essa realidade exige, como medidas urgentes, ações de fiscalização e controle que sejam capazes de fazer cessar os ilícitos”, destacaram a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI), em relatório produzido em março deste ano e enviado às autoridades.
Novos grupos de isolados ignorados pela Funai
Os relatos de isolados na bacia do Purus são da década de 1970. Mas foi só em 2007 que a Funai abriu o registro de estudo da área para demarcação. No mesmo ano foi publicada a primeira portaria de restrição de uso, renovada sucessivas vezes até o ano passado.
Expedições na área já confirmaram a ocupação dos isolados em acampamentos abandonados, florestas “antrópicas”, pães-de-índio , varadouros entre outras marcas próprias desse grupo. Em 2011, uma equipe da Frente de Proteção Etnoambiental do rio Madeira avistou os isolados durante uma expedição.Além dos Katawixi, a Funai também tem ignorado a existência de um novo grupo de isolados vivendo nas proximidades do rio Purus, em Lábrea, segundo revelou o site O Joio e o Trigo, em fevereiro deste ano. O relatório de expedição que identificou o possível novo grupo pedia a restrição de uso em uma nova área próxima a TI Jacareúba-Katawixi, que segue sem manifestação do órgão indigenista.