Mestra em botânica e doutoranda em antropologia, coordenadora geral dos Tupinambá da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns pesquisa disputa por território entre seu povo e madeireiras.
Raquel Tupinambá prefere o termo “coordenadora geral” ao termo “cacica geral” para se referir ao cargo de liderança que ocupa frente ao Conselho Tupinambá no movimento indígena do oeste do Pará. Ela justifica a escolha a partir da dicotomia entre o saber ocidental e o saber tradicional de seu povo. Enquanto o cacicado das aldeias é ocupado por lideranças mais inseridas no território, o Conselho Tupinambá seria um CNPJ que utiliza o acúmulo da experiência acadêmica da juventude indígena na mediação das demandas indígenas com o Estado brasileiro e as organizações não indígenas. É o seu caso.
Com 30 anos, Raquel é doutoranda em antropologia pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em botânica pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e graduada em biologia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Apesar de ter sido criada na aldeia Surucuá, parte da Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns, Raquel conta que, por meio da academia e do contato com outros acadêmicos indígenas, foi aprendendo mais sobre os conhecimentos de seu próprio povo. Com suas pesquisas, a indígena entendeu que os Tupinambá faziam ciência dentro de seu território.
A pesquisa acadêmica da coordenadora dos Tupinambá é intimamente conectada com a cultura e a luta de seu povo, mas também com a sua criação. Cria de uma família de lideranças, Raquel e sua irmã, Mariane, acompanham desde crianças a mãe, Maria do Rosário, tanto em reuniões, manifestações e feiras, quanto no trabalho rural. “Minha história vem desse território e da luta social, vem da minha mãe e dos pais dela”, conta.
A mãe de Raquel coordenava a Casa da Mulher Rural em Santarém e representava a Associação dos Moradores Agroextrativistas Indígenas do Tapajós (Ampravat), organização responsável pelo escoamento dos alimentos produzidos pelos Tupinambá, principalmente a mandioca. Em nossa conversa durante um almoço todo preparado a partir de colheitas e pescas do território tupinambá, como o cará (uma espécie de peixe), tracajá (cágado da região amazônica), farinha de mandioca e tucupi reduzido, Raquel e a irmã lembram quando, depois da escola, passavam horas espantando pássaros do roçado de mandioca.
O alimento foi objeto de pesquisa da coordenadora tupinambá no mestrado. Em sua dissertação, conta que foram identificadas 42 variedades do tubérculo em seis localidades diferentes do território indígena. Diferente dos seus tempos de criança, hoje, a AMPRAVAT comercializa uma variedade muito maior de produtos beneficiados da mandioca, aproveitando todas as partes da planta. A associação se prepara para ampliar a comercialização para supermercados a partir da construção de uma casa de beneficiamento como uma alternativa socioeconômica às atividades predatórias. “Desde sempre a floresta se manteve em pé pela nossa cultura”, afirma.
A luta dos Tupinambá contra o avanço madeireiro em seu território é o tema de pesquisa do doutorado da coordenadora indígena. Após décadas de apagamento étnico e cultural, foi na luta pela expulsão das madeireiras que o povo se organizou em defesa de seu território. Segundo a liderança, a destruição das identidades indígenas foram e são uma estratégia para “romper a relação desses povos com a terra”.
Leia a seguir a entrevista completa.
InfoAmazonia – Como você se inseriu na luta do movimento indígena e como casou isso com a pesquisa acadêmica?
Raquel Tupinambá – Eu nasci na aldeia Surucuá, no território Tupinambá que fica também na Resex Tapajós-Arapiuns, cerca de 100 km em linha reta de Santarém. Um local hoje que tem mais de 100 famílias. Eu cresci e estudei aqui nos anos 1990. Minha história está muito ligada a este lugar e à luta social da minha família. No início dos anos 2000, minha mãe atuava no movimento social, trabalhando com a Casa da Mulher Rural em Santarém e, desde criança, eu e a minha irmã a acompanhávamos. Assim conhecemos várias lideranças e fomos nos inspirando no convívio.
Meu ensino médio foi em Presidente Figueiredo (AM). Migrei para lá porque minha irmã estava lá. Aí eu fiz a graduação na UFAM e o mestrado no INPA. Foi um período em que eu me ausentei daqui, mas muito importante para eu perceber a importância do território. Quando você sai e vive em outro lugar começa a ter outro olhar sobre o território, sua casa e você mesma.
Em 2014, quando iniciei o mestrado, voltei para fazer a pesquisa. Assim comecei a participar mais do movimento social. Naquela época, a pauta mais urgente era contra as barragens no rio Tapajós.
E como você se tornou Coordenadora do Conselho Tupinambá?
Participando das assembleias, protestos e de outras demandas do movimento social local. Tudo isso fez eu me tornar coordenadora do Conselho Tupinambá. Por eu estar muito presente na luta fui escolhida coordenadora. Acho que a gente que tem a oportunidade de estudar deve dar um retorno para nós mesmos, para nossas vidas, para o território. Nesse sentido eu aceitei esse desafio de coordenar o conselho Tupinambá e dar prosseguimento na autodemarcação do nosso território e nas outras lutas.
A retomada da identidade dos Tupinambá da Resex foi a partir dos anos 2000. Como foi sua infância? Você se identificava como indígena ou você resgatou essa identidade nos últimos anos?
É muito importante que a gente entenda a questão da identidade a partir da negação. Existiam políticas do Estado para negar a identidade, apagar a memória e a cultura indígena como um todo. A gente vivenciou processos muito fortes de desindianização, proibição da língua, dos costumes, das comidas. Isso passou para várias gerações. Então o que eu posso falar é do que eu vivenciei. Quando criança a gente sempre fez muita coisa da nossa cultura, mas não se dizia indígena, não tinha orgulho disso. Porque ser indígena era ser atrasado, pobre, feio, algo que remete ao ruim e ao passado.
Então era importante e necessário negar nossa identidade como uma forma de sobrevivência, para continuar vivo no tempo. Eu lembro muito bem que quando a gente entrava no colégio, nos dias comemorativos como o Dia do Índio, 19 de abril, a escola mostrava o índio como em 1500 e ninguém queria ser o índio. Foi passado para nós que a gente era essa mistura do índio, nativo, do negro que veio de fora, e do branco, que era quase um bonzinho da história. A gente era resultado disso, nem um nem outro, era nada, nem branco, nem índio, nem negro. Uma mistura. Isso para nós é muito forte hoje porque representa essa negação da identidade, você é uma história que se apaga.
Apareceram categorias, que são categorias do Estado, da Academia, de se chamar de caboclo, extrativista. Caboclo é um termo pejorativo, mas alguns se afirmavam assim, porque sempre tem que dizer o que você é, então as pessoas diziam que eram ribeirinhas, do Tapajós, caboclas, sindicalistas, agricultoras. Essa identidade indígena, entre nós Tupinambá, não era registrada antes de 1990. A partir da virada do milênio que começou esse orgulho de dizer quem somos e a noção de que precisávamos parar com esse apagamento, com essa morte cultural.
Você acha que hoje esse apagamento faz parte da estratégia mais sutil de avanço sobre os territórios indígenas? Se a terra não é coletiva é mais fácil para as empresas interessadas no território dividirem e cooptarem as pessoas?
Para nós o que é central é o território, o que nos afirma como grupo étnico é a territorialidade, nossa relação com a terra. Isso precisa ser quebrado na colonização. Hoje a gente entende na academia essa estratégia como um genocídio das populações indígenas. É o corte com a cultura que faz com que as pessoas morram por dentro e acaba possibilitando que várias coisas aconteçam no território.
A gente vivenciou um período anterior à criação da Resex de forte invasão do território, principalmente pelas madeireiras. A Amazônia era vista como o grande capital do Brasil. Existiram várias fases, desde as drogas do sertão, o ciclo da borracha, a extração de pau rosa, mas nos anos 1970, no governo militar, isso foi intensificado. Por exemplo, pensaram em fazer várias hidrelétricas no Tapajós, no Madeira, no Xingu, e precisavam fazer isso acontecer. Aqui na nossa região da Resex, o principal foco foi a madeira.
No período da borracha muita gente veio de fora para cá para explorar os nativos. Foi quando as pessoas locais passaram a ter uma necessidade de consumir os produtos dos armazéns de seringalistas. Qual foi a estratégia deles? Eles vendiam os produtos a preços altíssimos e as pessoas ficavam endividadas. Nesse endividamento, eles pegavam as terras como pagamento. Você virava um escravo na sua própria terra. Nessa época, ninguém tinha escritura, mas os seringalistas fizeram escrituras. Quando a borracha não tinha mais valor, venderam as terras para as madeireiras. Quando elas entraram e começaram a exploração, o povo começou a se unir, porque era onde a gente vivia. Passamos a tentar expulsá-los. Mas eles tinham a escritura, passaram a ser donas. O Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) fortaleceu o povo local para se mobilizar. Isso foi na virada dos anos 1970 para os anos 1980.
Foram vários conflitos e enfrentamentos. Pessoas das comunidades foram ameaçadas de morte e viviam com medo. A partir da demarcação da Resex (em 1998) as madeireiras foram expulsas e veio a retomada da identidade indígena.
Depois da demarcação da Resex e expulsão das madeireiras, como é hoje a pressão sobre as cooperativas comunitárias?
Nos anos 1970, o governo desenhou essa região para exploração madeireira. Sabemos que aqui na região têm várias concessionárias de madeira desde esta época. Quando estas madeireiras saíram da Resex foram para as regiões vizinhas.
Em 2007, o governo do Estado possibilitou a exploração madeireira dentro de unidades de conservação e permitiu a exploração comunitária da madeira por meio do Manejo Florestal Madeireiro Comunitário Sustentável. Dando outra roupagem. O próprio nativo faz a exploração. Mas o que muda? Nada, a madeira sai em tora igual.
O que as madeireiras têm feito é: criar uma cooperativa legalmente, registrar, fazer assembleia com o povo e injetar dinheiro. A partir disso, quem vai fazer o estudo e as estradas para escoar para o porto? Alugar as máquinas? Fazer a exploração em si? São as madeireiras, que já têm estrutura e equipe técnica.
Essa região noroeste da Resex, onde ficam as sedes das madeireiras, é a mesma região que o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles visitou em 2021, quando liberou toras de madeira apreendidas pela Polícia Federal. Como você vê esta relação?
Parece que as coisas estão desconectadas, mas não estão. O interesse hoje na Amazônia é pelo território, pelo espaço para fazer os projetos desenvolvimentistas, a geração de lucro e aumento do PIB. A exploração madeireira é a primeira fase disso tudo. Depois plantam soja. Essa pressão das madeireiras daqui culmina em várias ilegalidades, porque elas não fazem só o que deve ser feito. As concessionárias acabam burlando esse sistema e foi isso que essa apreensão de madeira mostrou. Ela não estava legal, não estava registrada. O governo sabe de tudo isso. Salles estava muito alinhado a esses interesses.
Você enxerga a AMPRAVAT como uma alternativa financeira a esses modelos de exploração?
A gente tem pensado em como podemos ter qualidade de vida no território e ter essa renda. Porque qualidade de vida é algo influenciado pela visão ocidental. Hoje precisamos ter energia elétrica, por exemplo, algo que antes não fazia sentido. E pra isso é preciso ter dinheiro. Precisamos da floresta em pé e para isso nossa cultura é crucial. Nossa associação tem esse olhar e passou a trabalhar com geleias das frutas locais e também o molho de cogumelos. É fundamental manter a floresta em pé para a gente ter esses cogumelos, porque eles precisam crescer em lugares úmidos e escuros. Esta é a forma de mostrarmos que dá para ter essa renda sem destruir a floresta. Nossa vontade é que o jovem não precise sair do território para ter acesso ao dinheiro.
No seu mestrado em botânica você teve esse olhar de pesquisa sobre o que vocês produziam e como isso poderia gerar maior retorno econômico para a comunidade?
Sim, exatamente. Eu pensei que queria pesquisar algo que fazia parte da nossa cultura e pensei na mandioca. Cresci trabalhando com mandioca. Minha família, meus avós, todo mundo trabalha muito bem com isso. Percebi que tinham trabalhos sobre a mandioca, gente estudando a diversidade, além dos usos, a conservação e a biodiversidade. Aí pensei que queria me aproximar da minha cultura, juntar a academia e a minha vida. A partir daí eu comecei a pensar nessa relação. Foi muito legal porque além do contato com o território eu descobri coisas que não sabia, uma quantidade enorme de variedades, catalogamos aqui no território 42 variedades de mandioca em seis localidades. E vimos que existem tipos de mandiocas mais propícios, mais adequados para se plantar em terra preta, solos antropogênicos, e outros mais adequados para solos mais arenosos, outros para terras mais argilosas. Existe toda uma ciência por trás desse manejo e desse conhecimento, além da própria produção dos produtos.
Você avalia que levou para a academia conhecimentos tradicionais da sua comunidade?
Sim, o que foi mais interessante para mim foi ter entendido como a gente é um povo muito rico de conhecimento, como a gente produz conhecimento não valorizado. A gente está fazendo ciência há séculos, tecnologia, mas isso não é olhado dessa forma. É considerado um conhecimento menor, empírico. Esse olhar precisa ser quebrado. É ciência também o que se faz nas comunidades tradicionais, nas populações indígenas.
No doutorado você se volta para a antropologia para entender esse olhar colonizador sobre esse conhecimento?
O doutorado pretende responder por que existe esse olhar para as populações indígenas como pobres. Por que a gente é considerado inferior e o Estado acha que só com esses modelos de exploração vem o desenvolvimento? São angústias que pretendo responder.
Como você posiciona sua militância no movimento indígena contra essas frentes desenvolvimentistas dentro do contexto da sua pesquisa?
Nós já vivenciamos matanças muito grandes dos povos indígenas. Tivemos recentemente, por exemplo, Mariana e Brumadinho, já sabemos qual é o resultado desses modelos de exploração. Por que continuam acontecendo? Por que as pessoas que fazem isso não estão no território, não são atingidas por isso. Estão morando em outro lugar, em outro país, o recurso da exploração do território permite que elas tenham outra vida em outro lugar. A poluição do rio que vivenciamos no Tapajós, a morte pelo mercúrio que estamos vivendo aqui, pessoas morrendo mesmo, vários casos, alto nível de contaminação nas crianças. Quem ganha com a exploração do garimpo não está nem aí. São grandes empresários. Quem consegue comprar 20, 30 dragas? Uma draga é caríssima. É quem tem esse recurso, não estão preocupados nem um pouco com o território. Quem sofre somos nós.
Como você se sente na Academia? Ainda é um ambiente muito hostil para uma mulher indígena?
Quando eu entrei na Academia eu não tinha essa leitura. Você é preparado psicologicamente para sair da roça e estudar é a saída. A gente ouve na fala de muitas famílias que eles querem que o filho faça uma faculdade. Mas a universidade é sim um espaço muito segregador. Eu estava numa instituição dentro da Amazônia que não tinha cota para indígena. Cuja maioria dos professores era gente de fora da Amazônia, pesquisadores estrangeiros. Muitos dos meus colegas são do sul, do sudeste. Nada contra, mas não existe realmente isso de possibilitar o povo local a estudar. Quando eu estava na academia, no INPA, várias vezes eu fui confundida com uma pessoa da limpeza, porque o povo local está ali como trabalhador braçal, limpando, não como pesquisador. Naquela época eu não tinha essa visão, depois que entendi e isso me fez não querer mais estar naquele espaço e sim num espaço mais crítico. Porque a academia é muito cheia de caixinhas, muitas áreas não tem uma relação mais crítica com o que está acontecendo no entorno. Mas é um espaço que está se modificando, hoje vemos vários indígenas se graduando e pós graduando e a ideia é que a gente possa pensar em como sair desse formato de academia.
Entre as lideranças tradicionais no território Tupinambá há muitas mulheres?
Sim, as mulheres sempre foram muito atuantes no movimento social, mas nunca conseguiram assumir muitos cargos devido à falta de tempo e à pressão da família. Porque a mulher é a pessoa que cuida da família e da roça. Infelizmente isso acontece na nossa realidade também. Então uma mãe que assume a responsabilidade de uma organização tem que carregar os filhos juntos, como aconteceu comigo. Isso tem mudado recentemente, muitas mulheres estão tomando a frente das aldeias, são cacicas e fazem muito bem essa função.
Como estão sendo esses primeiros nove meses na coordenação geral?
Tem sido muito gratificante. É muito bom ver as pessoas nas aldeias junto contigo na luta. Ser bem recebido, ter boas conversas, é muito bom porque é uma formação muito forte. É uma academia que não tem igual.