“Eu estava saindo do quarto quando me deparei com eles no corredor. Todos de toucas, luvas e camisas pretas. Apesar da situação, eu tentei manter a calma e fiquei atento a tudo. Da forma como eles me renderam e me levantaram do chão, exatamente como os policiais fazem, eu percebi desde o começo que não se tratava de qualquer tipo de bandido. Tinha certeza que era gente com treinamento militar”, contou Romano dos Anjos em entrevista ao InfoAmazonia.
O jornalista de 40 anos e a esposa foram rendidos e amarrados na noite do dia 26 de outubro de 2020. Ela foi trancada em um quarto, mas conseguiu se desvencilhar das amarras e pulou a janela. Romano dos Anjos foi levado no próprio carro e depois transferido para outro veículo, uma caminhonete. O carro dele foi incendiado. “Eu ainda estou pagando as prestações do carro”, nos contou.
Durante o percurso, os sequestradores desferiram golpes contra Romano dizendo: “Você não é o brabão? O cara que fala tudo dentro do estúdio? Fala agora!”.
O jornalista da afiliada da TV Record em Roraima logo descobriu que o crime tinha cunho de retaliação política por causa dos seus comentários no programa “Mete Bronca”.
Foi a partir do caso Romano que a Polícia Civil de Roraima descobriu que o sequestro não se tratava de algo pontual. O crime, segundo as investigações, foi gestado dentro do Serviço de Inteligência da Assembleia de Roraima, o SISO, a mando do deputado estadual Jalser Renier (Solidariedade). Envolvido em diversos casos de corrupção, Jalser Renier é acusado pelo Ministério Público de Roraima de chefiar uma milícia de Policiais Militares, como publicamos na primeira reportagem da série.
O grupo formado por policiais militares de elite, incluindo três coronéis e um major, teria cometido uma série de crimes entre 2015 e 2020, incluindo espionagem de adversários, sequestro, fornecimento de armas para garimpos ilegais e segurança armada para empresas e políticos com um único objetivo: perpetuar o poder de Jalser em Roraima.
Na época, lembra Romano, o nome do deputado Jalser foi associado a suspeitas de desvios de recursos na Secretaria de Saúde, onde teria o poder de indicações políticas. “Lembro que naquela época nós recebemos muitas mensagens da população cobrando que a imprensa acompanhasse as fraudes na Saúde, nós estávamos em plena pandemia e tinha suspeitas de desvios de dinheiro de respiradores, de médicos que recebiam e não trabalhavam”, lembra o jornalista.
“Eles ainda tentaram simular que as ordens viriam de alguém que fala espanhol, talvez um venezuelano, mas dava pra perceber que era um brasileiro que fala um espanhol bem ruim”, afirma Romano dos Anjos. Durante o sequestro, o grupo se comunicou via rádio, mas falou pouco.
Com o rosto coberto, o jornalista não sabia para onde estava sendo levado, mas lembra que não ficou muito tempo em poder dos sequestradores. Antes de ser abandonado, foi novamente espancado. Os criminosos quebraram os dois braços do jornalista, que ficou com hematomas por todo o corpo, e o abandonaram com os olhos vendados e a boca coberta por fitas. Ele acabou encontrado na manhã de 27 de outubro de 2020 por um funcionário da Roraima Energia, que fazia a medição na região.
Uma nota fiscal apreendida pela polícia civil confirmou que o motorista do coronel Paulo Cézar comprou fitas silver tape dias antes do sequestro. A fita é idêntica a usada para amarrar o jornalista e sua mulher. O motorista de Paulo Cézar confirmou a compra aos investigadores.
A polícia também comparou as pegadas deixadas no local onde Romano dos Anjos foi encontrado, que batem com o solado das botas apreendidas na Operação Pulitzer, assim como as marcas de pneus, que se assemelham aos de uma caminhonete da Assembleia usada pelos policiais do SISO.
A investigação confirmou que horas antes do crime, Paulo Cézar não estava no shopping, como contou em depoimento, mas sim na região onde o carro do jornalista foi incendiado. Ele também esteve próximo do local onde Romano foi encontrado após a sessão de tortura.
A confirmação veio da conexão dos celulares dos investigados com as torres de telefonia. Através desse método, os policiais conseguiram remontar os passos dos demais membros da organização e concluíram que o coronel “fez uma verificação de rotas que seriam usadas pela OrCrim (organização criminosa) para levar a vítima de sua casa até a região da estrada Bom Intento (local em que foi encontrada)”.
Outros detalhes, como a abordagem, o carro usado no sequestro e palavras chaves, próprias do linguajar policial, também permitiram confirmar que a ação foi executada por policiais altamente treinados.
Pelo menos duas testemunhas confirmaram, durante as investigações, terem sido procuradas pelo coronel Paulo Cézar e pelo subtenente Clóvis Romero para participar do sequestro do jornalista. Em depoimento, uma das testemunhas confirmou que “a missão” foi determinada pelo deputado Jalser e que “o recado tem que ser dado”.
Milícia está ligada à financeira ilegal
Os indícios levantados no sequestro do jornalista Romano dos Anjos abriram caminho para a Polícia Civil pedir a quebra do sigilo telefônico e bancário de diversos investigados, o que revelou outras atividades do bando.
Um dos negócios suspeitos está relacionado à By Money, instituição financeira que operava ilegalmente, sem autorização do Banco Central, e prometia retornos de capitais bem acima dos praticados pelo mercado. Segundo a investigação, os principais investidores da By Money estavam ligados à Assembleia de Roraima.
Segundo consta na investigação, os coronéis Paulo Cézar e Natanael Felipe mantinham altos valores investidos na empresa. Eles também seriam responsáveis por estimular outros policiais da organização a investirem no negócio. Natanael Felipe chegou a informar aos demais membros da organização que a By Money tinha comprado um banco digital, o que iria facilitar as movimentações financeiras.
Assim como as milícias que atuam no estado do Rio de Janeiro, a OrCrim ora investigada tem se dedicado também à prestação ilegal de serviço de segurança armada para empresas particulares.
Trecho da denúncia do Ministério Público Federal
Durante as buscas, foram apreendidos quatro contratos de comissões em operações financeiras internacionais relacionadas à By Money em posse do subtenente Clóvis Romero, que apesar de estar lotado no SISO, na época fazia a segurança pessoal do deputado Jalser.
A By Money estava em operação desde 2018, mas logo após as primeiras prisões da Operação Pulitzer, a empresa fechou as portas e reteve o dinheiro investido.
Em abril do ano passado, a By Money foi alvo da Operação Loki, acusada de praticar pirâmide financeira —modelo não sustentável de investimentos. A investigação da Polícia Federal apontou que em menos de um ano a empresa movimentou R$ 90 milhões. Durante a investigação, a PF verificou a realização de saques de quantias milionárias, de forma fracionada para dificultar a ação de órgãos de controle.
Além disso, foram identificados diversos pagamentos aos policiais denunciados realizados por Surama Carvalho Neiva, esposa do coronel Paulo Cézar e também comissionada da Assembleia. Na época, Surama estava lotada na Superintendência Financeira da ALERR.
Em depoimentos, os policiais disseram que os pagamentos eram relativos ao serviço de segurança privada realizado na sede da By Money, e que as escalas de trabalho e o recrutamento de policiais militares para os trabalhos eram realizados pelo coronel Paulo Cézar.
A investigação também confirmou que os policiais do SISO prestaram serviço de segurança privada em bares e nas bancas de vendas da RoraiCap, empresa de capitalização que distribui prêmios. Os serviços eram realizados por policiais militares e com armamento do estado.
Em 2019, o próprio deputado Jalser Renier foi contemplado com prêmio em dinheiro do RoraiCap. Na época, ele gravou vídeo e disse que doou o prêmio para estudantes.
Também chamou a atenção os seguidos depósitos realizados pelo coronel Natanael Felipe à membros da Igreja Batista Regular de Roraima. Os valores foram repassados via PIX, em janeiro de 2021.
Quem também se valeu dos serviços da milícia foi o deputado federal Ottaci Nascimento (Solidariedade), que em 2020 concorreu à prefeitura de Boa Vista. Enquanto esteve em campanha no município, o hoje deputado teria usado policiais militares de forma privada e com armamento do Estado.
A investigação aponta que a segurança do então candidato foi organizada pelo major Vilson Araújo, também lotado no SISO, que recrutou policiais militares para acompanhar o político em comícios e eventos.
Para o Ministério Público, a atuação da organização instalada na Assembleia de Roraima a mando do deputado se compara às milícias cariocas.
“Assim como as milícias que atuam no estado do Rio de Janeiro, a OrCrim ora investigada tem se dedicado também à prestação ilegal de serviço de segurança armada para empresas particulares, como RoraiCap, By Money e Itaipava [distribuidora de bebidas local, que não tem relação com a marca de cerveja]”, segundo consta na denúncia.
A reportagem questionou o comando da PM sobre a situação dos militares presos, mas o órgão não se manifestou. Nós também procuramos o deputado federal Ottaci Nascimento, que teria utilizado serviços da milícia na sua campanha, mas ele não respondeu nosso pedido. O mesmo ocorreu com a empresa RoraiCAP. Não conseguimos contato com a financeira By Money.
O deputado Jalser Renier foi procurado, através de sua assessoria, mas não se manifestou até a publicação desta reportagem.
Na próxima reportagem da série, o InfoAmazonia conta a a trajetória do “Menino de Ouro” da política em Roraima e a relação da milícia de Jalser com o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami.