Cientistas reforçam que reduzir as ameaças de contágio por zoonoses depende da “imunidade paisagística”, mas no Brasil a manutenção de grandes ambientes conservados esbarra em brechas e atrasos na implantação do Código Florestal.
A escalada do desmatamento na Amazônia e em outros ambientes brasileiros foi retomada em 2012 e bate recordes sucessivos no governo de Jair Bolsonaro (PL). No fechamento desta reportagem, o país acumulava mais de 625 mil mortes e 24,7 milhões de contaminações por Covid-19, conforme dados oficiais. Cientistas de instituições estadunidenses e canadenses apontam que conter a destruição ambiental reduz as chances de novas pandemias.
Uma pesquisa publicada na revista Conservation Letters reforça que a eliminação e a degradação de florestas são grandes fontes da transmissão de zoonoses como a Covid-19, que inicialmente chegam às pessoas por insetos ou contato direto com animais selvagens e domésticos. O trabalho traz casos no Maranhão e em outros estados de infectados por febre-amarela e febre-maculosa. Reduzir as ameaças de contágio depende da “imunidade paisagística”, ou seja, da manutenção de grandes ambientes conservados.
A disseminação de zoonoses e outras enfermidades guardadas em ambientes naturais é ligada ao desmatamento, urbanização, obras de infraestrutura e outros impactos. Sem suas moradas e predadores habituais, mosquitos e animais são empurrados para fora das florestas, com vírus e outros parasitas que podem infectar as pessoas em povoamentos rurais e urbanos.
“Os ecossistemas preservados são menos propensos a disseminar patógenos do que os destruídos ou que sofreram invasões biológicas, poluição e outros impactos. Uma biodiversidade rica mantém e fortalece a função imunológica das espécies selvagens e reduz as chances de exposição humana a fontes de enfermidades”, disse Raina Plowright, da Universidade Estadual de Montana, nos Estados Unidos, uma das autoras da investigação científica.
Cientista no Centro para a Conservação de Grandes Paisagens (Estados Unidos), Gary Tabor pede maior atenção aos impactos do desmatamento e da degradação no interior das florestas. “Sem prestar atenção a esse estresse, não perceberemos as condições que estamos criando para desequilibrar processos naturais e aumentar riscos da disseminação de doenças. A imunidade paisagística deveria ser um critério para a manutenção de habitats saudáveis”, ressaltou.
Diante desse cenário, ele espera que países tropicais como o Brasil contenham efetivamente o desmatamento e valorizem benefícios das florestas, como ajudar a barrar doenças e manter o clima global sob controle. A medida foi defendida por ministros ambientais do G7, os países mais ricos do planeta, em maio passado. Tabor lembrou que as 200 maiores multinacionais do mundo estão adotando práticas sustentáveis e regenerativas, para manter resultados econômicos, e aguarda medidas semelhantes do poder público.
“O mundo precisa de líderes corajosos que ajudem os governos a tomarem medidas efetivas para lidar com as questões ambientais e que permitam também esforços comunitários para enfrentar as ameaças combinadas da perda da biodiversidade e da mudança climática”, destacou o pesquisador, que também assina o trabalho publicado na Conservation Letters.
AÇÕES PARA AUMENTAR A IMUNIDADE DAS PAISAGENS
– Usar terras e demais recursos naturais de forma sustentável
– Melhorar a rede e a conectividade entre áreas protegidas
– Aprofundar conhecimentos sobre a saúde dos ambientes naturais
– Reduzir a caça, o comércio e o consumo legais e criminosos de animais selvagens
– Reduzir a criação de grandes rebanhos
– Reduzir o deslocamento de populações humanas
Os cientistas listam ações para que cada país aumente a imunidade de suas paisagens. Usar terras e demais recursos naturais de forma sustentável, melhorar a rede e a conectividade entre áreas protegidas e aprofundar conhecimentos sobre a saúde dos ambientes naturais são políticas estratégicas nesse sentido. Reduzir o comércio e o consumo legais e criminosos de animais selvagens, as caçadas, a criação de grandes rebanhos e o deslocamento de populações humanas são medidas que também reduzem as chances de contaminações.
Os desafios para adotar tais medidas crescem no Brasil pelo desrespeito aos parques nacionais, terras indígenas e outras áreas protegidas. Na Amazônia, o desmatamento nesses territórios cresceu 79% nos três primeiros anos do governo Bolsonaro (2019 a 2021) em relação aos três anos anteriores, mostra análise do Instituto Socioambiental. Além disso, a implantação da legislação nacional que protegeria a vegetação nativa em imóveis privados patina, passada quase uma década desde a sua publicação, em maio de 2012.
Balanço de 2021 do Climate Policy Initiative (CPI), coletivo de especialistas ligado à PUC do Rio de Janeiro que analisa políticas e finanças públicas, mostra avanços no cadastramento de propriedades rurais exigido em lei, mas sérios atrasos na validação dos registros por fraudes e falhas no preenchimento de informações, dificuldades de contato com donos e posseiros de terras. Assim, acordos para a recuperação do verde nativo em inúmeros imóveis rurais seguem emperrados.
“O Código Florestal demorou como um todo a sair do papel. Sua regulamentação foi lenta, governos federal e dos estados não tinham noção exata dos desafios técnicos e financeiros para implantar a lei, ações diretas de inconstitucionalidade demoraram a ser julgadas pelo Supremo Tribunal Federal”, destacou Cristina Leme Lopes, analista em Direito e Governança do Clima no CPI. A Corte Suprema julgou apenas em 2018 processos sobre pontos da legislação florestal que foram instaurados em 2012.
Na Amazônia, a implantação da lei nacional de florestas está adiantada no Acre, Rondônia, Pará e Mato Grosso, mas recuperar a vegetação é mais difícil diante de economias centradas no agronegócio. “Há maior interesse de produtores em compensar a recuperação (da vegetação) em outros locais do que em restaurar as próprias áreas. Falta um planejamento de paisagens para fomentar a conectividade de reservas legais e áreas de preservação permanente”, ressaltou a especialista.
Assim, brechas e atrasos na implantação da lei aumentam as chances de mudanças de prazos legais para a recuperação do verde em imóveis privados e dificultam a manutenção e a recuperação de paisagens conservadas e mais resistentes à propagação de doenças, com florestas e matas nas margens de nascentes e rios e demais áreas com importância social e ambiental.
“Áreas de preservação permanente são corredores ecológicos nas paisagens. A recuperação de reservas legais deveria ser proposta junto a outras áreas naturais. Isso é mais viável na Amazônia do que em outros biomas, mais degradados. É estratégico recuperar a vegetação natural para reconectar áreas protegidas, assegurar a recarga de águas subterrâneas e garantir uma série de outros serviços e ambientais”, completou Cristina Lopes, do CPI.
Reportagem do InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.