Um ano após falta de oxigênio nos hospitais, capital do Amazonas entra na terceira onda da pandemia. Estudo inédito aponta que estratégia para alcançar imunidade de rebanho provocou surgimento da variante Gama, responsável por dois terços das mortes pelo novo coronavírus.
Ritmo lento na vacinação e negligência na adoção de medidas eficazes são apontadas por cientistas como causas de uma nova onda da pandemia de Covid-19 em Manaus: “Podemos atingir mais de mil mortos nos próximos meses”. O alerta é do biólogo Lucas Ferrante, do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA), e está em um estudo inédito que será publicado nos próximos dias pela editora científica Elsevier.
O artigo envolve pesquisadores do INPA e cientistas das universidades federais de Minas Gerais, Amazonas, São João del-Rei e uma pesquisadora aposentada do Instituto Butantan.
Através de modelos epidemiológicos que consideram diferentes cenários de evolução, os cientistas chamam a atenção para as tomadas de decisões na gestão da pandemia com base em opiniões aleatórias e atribuem a chegada de uma nova onda aos erros dos governos.
Lucas Ferrante, que em entrevista ao InfoAmazonia detalhou a investigação do grupo de pesquisadores, indica que a postura do governador Wilson Lima (PSC) e do presidente Jair Bolsonaro (PL) têm papel central nesta terceira onda.
Desde o início da pandemia, o grupo de pesquisadores já publicou mais de uma dezena artigos científicos sobre o assunto. Em agosto de 2020, em artigo na revista Nature Medicine, eles indicaram que Manaus enfrentaria uma segunda onda da pandemia. Os resultados dos estudos foram apresentados aos representantes do poder público que os tacharam de alarmistas. Em janeiro, as previsões se confirmaram.
O estudo que será publicado na próxima semana revisita os diferentes estágios da pandemia em Manaus para entender a dinâmica da infecção, reinfecção e imunidade. Eles afirmam que a variante Gama, identificada no Japão em janeiro de 2021, não foi a causadora da segunda onda, mas sim surgiu em decorrência dela, diferente do que as autoridades locais têm afirmado.
“A variante Gama foi causada por causa do retorno às aulas autorizado pelo governador Wilson Lima, na época, para alcançar a imunidade de rebanho defendida pelo ex-ministro Pazuello”, explica o pesquisador. A imunidade de rebanho não ocorreu e a variante Gama foi responsável pela maior parte das mortes naquele período.
A tragédia anunciada que matou pacientes sufocados por falta de oxigênio nos hospitais provocou 6.600 mortes nos três primeiros meses de 2021, uma das taxas mais elevadas do mundo.
O boletim epidemiológico da Fundação de Vigilância em Saúde estadual de quinta-feira, 20 de janeiro de 2022, registrou a impressionante marca de 8.319 novos casos, superando o número de infectados no pico da segunda onda, em janeiro do ano passado. Até quinta-feira, eram 522 pacientes internados, sendo 423 em leitos clínicos, dos quais 198 não foram vacinados. Os registros ainda revelam que 48 internados são crianças menores de 12 anos. Em apenas 20 dias, o Amazonas registrou 39 mil novos casos da doença, com 34 mortes.
Segundo o novo modelo epidemiológico, seria necessário no mínimo 90% da população vacinada e a adoção de medidas mais rígidas de isolamento para frear a pandemia. E mais uma vez, afirma Lucas, não há sinais de que isso vai ocorrer. O Amazonas vacinou 64,37% da população do estado, abaixo da média nacional (75,5%).
As novas infecções subiram mais de 2.000% em relação à primeira semana de janeiro de 2022, quando a média de novos casos não chegava a 200.
A Vigilância mudou a classificação da pandemia que voltou para a fase laranja (risco moderado), mais restritiva. No entanto, as novas medidas anunciadas diante do rápido crescimento de novos casos, segundo os pesquisadores, não são suficientes para conter o avanço das variantes Delta e Ômicron em Manaus, nas próximas semanas.
Confira a seguir a entrevista completa.
InfoAmazonia – Como vocês chegaram à conclusão de que Manaus vai enfrentar uma terceira onda?
Lucas Ferrante – A terceira onda já está acontecendo. Nós analisamos diferentes cenários que apontam para um crescimento elevado de casos e mortes nos próximos meses devido à forte circulação das variantes Delta e Ômicron. Nós investigamos os casos de reinfecção e já estudamos por diversas vezes a imunidade de rebanho. O que a gente sabe é que ela é impossível da forma como eles estão pregando e só pode ser alcançada pela vacinação. Os estudos descartam por completo a possibilidade de imunidade duradoura após contato natural com o vírus – em média 240 dias depois de contrair a doença, as pessoas podem ser novamente infectadas, algumas pessoas sequer adquirem qualquer tipo de imunidade. Para conquistar a imunidade satisfatória é necessário que no mínimo 90% da população esteja vacinada. Hoje, no país, esse índice é de pouco mais de 70%, o que torna impossível conter o avanço da pandemia, que vai continuar tendo esses picos até que se conquiste nível mínimo de imunidade da população.
Essa conta inclui a vacinação de crianças?
Sim, os cálculos apontam a necessidade de imunização de 90% de toda a população, não só as crianças de 5 a 11 anos, mas de todas as faixas de idade. A fala do presidente Bolsonaro sobre a vacinação infantil é um crime contra as crianças e contra a população brasileira.
O que nossos modelos apontam é que vamos ter pelo menos mais mil mortes [em Manaus] entre dois e quatro meses. É certo que a vacinação está ajudando a conter o avanço dessa nova onda, mas ela ainda é insuficiente. Essa nova onda é causada principalmente por causa do crescente número de infectados com as variantes Delta e Ômicron, situação que é agravada com o surto de gripe. Isso tende a lotar o sistema de saúde, o que potencializa a letalidade dessa nova onda.
Em 2020 vocês alertaram para a chegada da segunda onda da pandemia. O que é diferente desta vez?
Em comparação com a segunda onda, nós teremos menos casos de mortes, isso por conta do avanço da vacinação. Mas o que é interessante é que os estudos apontam que a segunda onda de Manaus foi responsável pelo surgimento da variante gama (também chamada de P.1), diferente do que afirmam os políticos, de que ela seria a causadora da segunda onda. O que gerou a variante gama foi o retorno das aulas presenciais, e isso está provado em nossos artigos. O impacto disso gerou aquela crise, que todos lembram bem, quando faltou até oxigênio nos hospitais. A variante se espalhou rapidamente pelo país. Agora, temos duas novas variantes que se multiplicam rapidamente com novos casos de infectados. Na questão política, os governantes continuam ignorando os alertas da ciência.
É possível quantificar quantas mortes foram causadas por negligência das autoridades?
É possível, sim. O artigo aborda o que ocorreu na segunda onda em Manaus e confirma o que nossos estudos apontavam, que a cidade teria 6 mil mortes se nada fosse feito, foi exatamente o que aconteceu. Em 7 de agosto de 2020, em artigo publicado na Nature Medicine, nosso grupo de estudos identificou e apontou o surgimento da segunda onda. Nós informamos as autoridades, em reunião no mês de outubro de 2020, que negaram essa possibilidade e nos chamaram de alarmistas. Naquela época, com meses de antecedência, se as medidas adequadas fossem tomadas, como a restrição da circulação de pessoas e um isolamento social mais rígido, Manaus teria um pico com até 2 mil mortos. Ocorreu muito lobby político, em boa parte para atender os setores econômicos em curto prazo. Bolsonaro, Wilson Lima e o ex-ministro da Saúde Ricardo Pazuello têm, sim, responsabilidade. Embora não tenham sido eles que geraram a pandemia, suas ações desastrosas deram origem à P1, que matou 6,5 mil pessoas em Manaus. Dois terços das mortes no país ocorreram em decorrência dessa variante surgida em Manaus.
Vocês também já analisaram o uso da BR-319 para o sistema de saúde, qual é a conclusão?
O Ministério da Saúde realizou um lobby muito forte durante a pandemia para acelerar a duplicação da BR-319 [que liga Porto Velho a Manaus]. Mesmo com meses de avisos sobre a elevação no número de mortes em Manaus, quando faltou oxigênio nos hospitais, a estratégia do governo foi mandar cilindros de oxigênio por uma rodovia intrafegável. Tudo isso porque querem avançar com essa obra na Amazônia. A melhor estratégia para atender uma demanda a curto prazo seria por via aérea e a médio e longo prazo pelo Rio Madeira, por ser mais econômico. Mas o ministro Pazuello optou em promover uma promessa de campanha de Bolsonaro, colocando seis carretas num atoleiro, em um cenário de tragédia programada, para chamar atenção para esta bandeira.
Inclusive, durante a pandemia, foi realizada audiência pública sem a presença de representantes dos povos indígenas afetados pelas obras da rodovia. Realizaram consulta sobre o EIA/RIMA, o qual já apontamos que viola o direito de mais de 18 mil indígenas e que tem ajudado a disseminar Covid no interior. Esse estudo foi publicado pela revista científica Die Erd [da Associação Geográfica de Berlin]. O Ministério Público chegou a judicializar a questão, mas uma decisão judicial [do TRF, de setembro de 2021] liberou as audiências. Uma decisão absurda, sem respeitar a convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho] que determina consulta aos impactados pela obra. Ele fala em dar garantia para 319 levar insumos médicos para Manaus. Nosso artigo apontou que a rodovia não é utilizada para enviar insumos médicos e tão pouco influencia na tomada de decisão ou na garantia de suprir Manaus com atendimento médico durante uma pandemia de Covid-19. Uma decisão completamente sem respaldo técnico”.
O que percebemos é que a mesma negligência que ocasionou a segunda onda da pandemia em Manaus ocorre novamente, e ela é a principal causadora do crescimento de novos casos e mortes.