Invasão constante vem sendo denunciada pelos Karipuna. Distritos ao redor do território têm madeireiras com capacidade de produção muito superior à quantidade de madeira legal disponível na região, aponta ex-servidor do Ibama.
Adriano Karipuna, liderança do povo indígena que é um dos mais ameaçados do país, resume as barreiras para proteção de seu território: “Em 2018, a bancada de Rondônia prometeu terras e a legalização da exploração de madeira na nossa região”.
Na semana de 15 de dezembro, os Karipuna denunciaram novos episódios de roubo de madeira e grilagem na região sul da Terra Indígena (TI) Karipuna. Durante uma expedição realizada para coleta de castanhas, os indígenas fotografaram uma ponte de madeira construída por madeireiros para escoar as toras roubadas.
Em vídeo exclusivo enviado ao InfoAmazonia, Adriano anda na ponte construída sobre o rio Formoso, no sudeste da TI, e mostra toras cortadas na estrada aberta por madeireiros.
“Há muito tempo meu povo vem denunciando a invasão de madeireiros, de pecuaristas e de grileiros dentro do nosso território. Porém, o estado brasileiro tem feito muito pouco. Nós pedimos apoio e socorro para proteger nosso território”, diz Adriano em outro vídeo, postado em suas redes sociais.
A denúncia foi encaminhada ao Ministério Público Federal de Rondônia (MPF-RO), à Polícia Federal (PF) e à Fundação Nacional do Índio (Funai). Em outubro, uma nova frente de desmatamento já tinha sido identificada na região. No documento, os Karipuna destacam que na parte sul do território há vestígios de grupos indígenas isolados que têm sua “integridade física, cultural e territorial ameaçada”.
A TI Karipuna, localizada entre a capital Porto Velho e os municípios de Nova Mamoré e Buritis, tem cerca de 153 mil hectares e abriga 55 indígenas sobreviventes de epidemias e conflitos trazidos com a colonização do estado na década de 1970. Até então, os Karipuna não haviam tido contato com não indígenas.
Na última década, eles vêm repetidamente expondo a exploração madeireira e grilagem ilegal dentro de seu território. A TI foi palco de uma série de operações de fiscalização nos últimos anos, mas os criminosos continuam retornando à região.
As invasões em 2021 foram impulsionadas pela Lei Complementar Estadual nº 1089, de autoria do governador Marcos Rocha (PSL). Aprovada em maio, a lei reduziu em 90% a Reserva-Extrativista (Resex) Jaci-Paraná, que margeia a região norte e leste do território Karipuna, e em 22% o Parque Estadual Guajará-Mirim, que faz fronteira com o sul da TI. A Resex e o parque serviam como um “cinturão” que davam proteção à TI.
Em 22 de novembro, a lei foi declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ-RO), mas seus seis meses de vigência fizeram estrago. “Nesses meses em que foram reduzidos, os invasores passaram pelas unidades de conservação (UCs) e entraram na TI Karipuna”, conta Adriano.
Se o norte do território Karipuna já se encontra em grande degradação causada pela extração ilegal de madeira, a região sul e sudeste da TI ainda estavam salvaguardadas, como explica o agrônomo Danicley Aguiar, portavoz do Greenpeace na Amazônia. “Com a decisão do governador de liberar as UCs, o pessoal se animou e foi para dentro dessas outras regiões do território”.
Um monitoramento realizado em 2021 pelo povo Karipuna em parceria com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e o Greenpeace Brasil identificou 850 hectares de desmatamento ilegal em doze meses dentro da terra indígena (entre agosto de 2020 e julho de 2021), um aumento de 44% em relação ao ano anterior. Nesse mesmo período, a região do rio Formoso registrou 510 dos hectares desmatados (60% do total).
Adriano Karipuna conta que seu povo sofreu uma série de ameaças dos invasores entre 2017 e 2020. “Eu já recebi ligações falando que a qualquer hora eu ia me lascar porque estava atrapalhando o trabalho deles. Já ameaçaram o povo da aldeia dizendo que iam pegar a gente na curva do rio ou na bifurcação da estrada”, lembra.
As castanheiras, árvores centenárias, estão servindo para fazer ponte para passagem das madeiras roubadas. Há escassez de pesca, o rio está secando, os animais silvestres que caçamos estão se extinguindo.
Adriano Karipuna
Além da violência explícita, os Karipuna começam a sentir o efeito da devastação da floresta na sua subsistência. “Há uma escassez de alimentos tradicionais. A maioria das árvores nativas, castanha, açaí, que são nossas fontes de economia e subsistência, já foram extintas com o roubo de madeira. As castanheiras, árvores centenárias, estão servindo para fazer ponte para passagem das madeiras roubadas. Há escassez de pesca, o rio está secando, os animais silvestres que caçamos estão se extinguindo”, denuncia.
A decisão do TJ-RO que barrou a redução das UCs incomodou fazendeiros e madeireiros que ocuparam os territórios. Em 20 de dezembro, outra ponte de madeira, esta legal e utilizada para passagem da população em geral e da fiscalização, foi serrada ao meio em uma ação criminosa. A ponte é localizada sobre o rio Horizonte, no “Bico do Parque”, região norte do Parque Guajará-Mirim que faz limite com a TI Karipuna.
De acordo com Laura Vicuña Manso, missionária do Cimi em Rondônia, a derrubada de pontes oficiais é orquestrada pelo crime organizado para impedir a passagem de fiscalização. “Já cortaram ao meio uma ponte dentro da TI Karipuna em retaliação à prisão de alguns deles”, afirma. ” A gente vive governado pelo crime organizado”, completa.
A gente vive governado pelo crime organizado.
Laura Vicuña Manso, missionária do Cimi em Rondônia
Madeira ilegal move economia de distritos da região
Segundo Adriano Karipuna, a indústria madeireira e o agronegócio são os principais motores dos distritos que margeiam o território Karipuna. Distritos como União Bandeirantes (pertencente à capital e próximo ao norte da TI), Nova Dimensão, Jacinópolis e Araras (localizados ao sul da TI, nos municípios Nova Mamoré e Buritis), são o principal destino da madeira ilegal extraída da terra indígena.
De acordo com João Alberto Ribeiro, servidor aposentado do Ibama em Rondônia e ambientalista fundador da ONG Ecoporé, madeireiras de União Bandeirantes fechadas após operações do Ibama, invariavelmente, voltaram a funcionar autorizadas pela Sedam (Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental).
A missionária do Cimi explica que quando as madeireiras são fechadas em um distrito, o fluxo muda para outro. “Uma vez estavam tirando madeira dos Karipuna e levando para Araras. Lá estava bombando porque as operações fecharam as madeireiras de União Bandeirantes, Jacinópolis e Nova Dimensão”, revela.
A reportagem do InfoAmazonia localizou na base de dados da Sedam o licenciamento de 39 madeireiras, serrarias ou empresas que trabalham com o aproveitamento de madeira em Buritis, 16 em Nova Mamoré e 15 apenas no distrito de União Bandeirantes. A base traz dados de madeireiras licenciadas entre 2016 e o presente momento. Do total das 70 madeireiras, segundo os dados da autarquia, foram 13 empresas licenciadas em 2016, 21 em 2017, 12 em 2018, oito em 2019, 11 em 2020 e cinco em 2021.
Em 2019, a Operação Floresta Virtual da PF prendeu uma série de criminosos ligados à extração ilegal de madeira na região. Na época, a operação fechou madeireiras e serrarias nesses distritos. A reportagem localizou um processo resultante da operação que levou à prisão de onze pessoas e à autuação de uma serraria no distrito de União Bandeirantes por crimes como falsidade ideológica, poluição, lavagem e organização criminosa.
João Alberto Ribeiro explica que grande parte das madeireiras frauda os documentos de origem florestal e detalha como acontece o esquentamento das toras ilegais: “Se a madeira vem de terra indígena ela é ilegal, por não haver manejos autorizados em terra indígena na região”. Assim que obtida a madeira ilegal, os madeireiros procuram meios para esquentá-la, seja a partir de créditos virtuais que vêm de planos de manejo ou vendidos entre empresas.
“O cara compra o papel de um plano de manejo afirmando que aquela madeira foi retirada daquela localização e supostamente transportada para a empresa, mas, às vezes, não foi madeira nenhuma. Foi só o papel”, explica. Ribeiro estima que pelo menos 80% das madeireiras na região trabalham com madeira de origem ilegal.
Um dos principais facilitadores do esquentamento de toras ilegais, segundo Ribeiro, é a falta de seriedade na aplicação dos critérios de licenciamento ambiental de indústrias de desdobro de toras (processo de redução da tora em peças menores) e de planos de manejo florestal.
Ribeiro exemplifica que, em 2009, quando participou de fiscalização na região da TI Karipuna, uma madeireira em Rondônia precisava, em média, de 9 mil hectares manejados para se manter ao longo do tempo. Isso porque é previsto no mínimo 25-30 anos para que uma parte de floresta explorada reponha o volume de madeiras e possa ser explorada novamente.
Às vezes, no entorno de terras indígenas não existe plano de manejo nem para sustentar uma única indústria. No entanto, várias estão abarrotadas de madeira.
João Alberto Ribeiro, servidor aposentado do Ibama em Rondônia e fundador da ONG Ecoporé
“Se eu tiver 9 mil hectares manejáveis e 30 madeireiras licenciadas respeitando os critérios de manejo sustentado, todas poderiam trabalhar legalmente por um ano, mas então não teriam mais matéria-prima legal por 30 anos. É isso, mais ou menos, que acontece”, afirma. Segundo Ribeiro, onde poderia ter apenas uma madeireira sustentável, existem várias, que destroem em poucos anos a capacidade de regeneração das florestas pela “exploração predatória dos recursos”. “Às vezes, no entorno de terras indígenas não existe plano de manejo nem para sustentar uma única indústria. No entanto, várias estão abarrotadas de madeira”, completa.
O plano de manejo florestal é o documento específico de exploração de madeiras das unidades de conservação de uso sustentável. Ele estabelece o zoneamento da unidade, autorizando qual área pode ser explorada e quantas toras podem ser retiradas dela. O ex-servidor presume que, na atualidade, não existam florestas manejáveis nem mesmo para manter uma única madeireira funcionando de forma sustentada na região de União Bandeirantes.
“Onde tem uma madeireira, tem dezenas de caminhões que circulam em torno dela. Esse pessoal tem uma turma especializada em saquear áreas protegidas, fraudar documentos, afrontar e sabotar equipes de fiscalização, etc. É uma indústria do crime, a máfia da tora com envolvimento de políticos”, completa Ribeiro.
Essa participação de políticos na economia do crime é destacada por todos os entrevistados. Danicley Aguiar, do Greenpeace, destaca que a aposta, tanto dos madeireiros quanto dos políticos que aprovaram a lei da redução das UCs é, eventualmente, reduzir a própria Terra Indígena Karipuna. “A aposta deles é que os Karipuna não sobrevivem, que não aguentam a pressão, ficar ali. Quando o estado não está presente, pelo contrário, diz ‘pode grilar que vou regularizar’, que foi o recado que o governador deu, é esse o resultado”.
Parabéns pela bela e estratégica reportagem. Continuem cobrindo essa realidade super desafiadora. Viva o povo Karipuna.