Projeto que tramita no Senado Federal pode criar mais um estado brasileiro, no oeste do Pará. Bolsonaristas têm liderado o movimento em instituto ligado ao poder municipal de Santarém.
Entre as memórias que a antropóloga Telma Bemerguy cultiva de sua infância e adolescência no município paraense de Santarém está o esforço dos conterrâneos para, justamente, deixarem de fazer parte do Pará. Carreatas, outdoors e pontos de coletas de assinaturas organizados em prol de uma 28ª unidade federativa, o estado do Tapajós, eram cenas comuns na criação santarena de Telma nos anos 1990. Por esse motivo, ela resolveu pesquisar esse movimento separatista em sua tese de mestrado.
“Era um tema que tinha espaço de debate na cena pública, mas também era mencionado com muita recorrência na rádio, na TV, um tema afetivo que ia criando um clima de que a separação tinha que acontecer”, lembra.
No último 17 de novembro, a agenda foi pautada no Senado por meio de um Projeto de Decreto Legislativo (PDL nº 508 de 2019) que prevê a convocação de um plebiscito regional sobre a separação do estado. Embora a votação prevista para acontecer na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) tenha sido adiada após pedido de vista, a pauta, bem conhecida por todos no oeste do Pará, ganhou maior atenção na última semana. Pouco se falou, no entanto, sobre os interesses por trás do projeto.
A divisão do Pará em três estados já foi objeto de plebiscito estadual em 2011. A separação, que historiadores destacam ter sido originalmente demandada por intelectuais da região no final do século XIX, foi primeiro institucionalizada por um outro PDL nos anos 1990 que previa, além da criação do Tapajós, a divisão do estado de Carajás – que englobaria municípios do sudeste paraense.
Na ocasião, a população de todo o estado do Pará foi consultada e 66,08% dos votos foram contrários à criação de Tapajós e 66,59% contra a criação de Carajás. Mas nos municípios que comporiam o estado do Tapajós, 90% dos votos foram favoráveis à separação. Em Santarém, que seria a capital, 97,78% dos votos foram pela criação do novo estado.
Com valores que beiram a unanimidade e refletem anseios por melhores recursos e políticas públicas em diversas áreas, não é fácil especificar setores que encabeçam o movimento separatista do oeste do Pará. Entretanto, o que chama a atenção de pesquisadores é o protagonismo que o agronegócio e a mineração ocupam nos argumentos da separação.
"Uma das etapas para criação de um estado é provar que ele tem viabilidade econômica, então muito dos materiais construídos para convencimento dos políticos tinham que ter dados que mostrassem o que essa região tinha de produtividade e potencial econômico", explica Bemerguy. "É nesse ponto, especificamente, que sempre aparecem argumentos similares: a potencialidade da BR-163 [conhecida como BR da soja] enquanto corredor estratégico de exportação de grãos, por exemplo".
O professor Manuel Dutra, doutor em Ciências Socioambientais no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará (UFPA), foi o primeiro pesquisador a apontar a presença importante de setores do agronegócio nos movimentos separatistas do Tapajós.
Em 1999 ele publicou o livro "O Pará Dividido: discurso e construção do estado do Tapajós", no qual expõe que, apesar de o movimento separatista ser centenário, migrantes ligados ao agronegócio começaram a protagonizar o movimento a partir do PDL de 1999. Em entrevista ao InfoAmazonia ele questiona que, com o poder cada vez mais forte do agro na região, a atual investida pela criação do estado pode ter partido da bancada do setor. "Quem investe capital nunca fica alheio à questão política", resume.
Em artigo publicado em 2019, Telma destaca que em diversos estudos de viabilidade econômica da criação do estado, elaborados entre 1990 e 2011, há trechos "praticamente idênticos" a um relatório produzido pela Comissão de Estudos Territoriais, instituída durante a Constituinte de 1988 para se debruçar sobre anteprojetos relativos a novas unidades territoriais.
O relatório sobre o estado do Tapajós foi o primeiro publicado pela comissão e defendia a criação do estado por meio de uma ótica integracionista da Amazônia, destacando o potencial de exploração de seus recursos naturais. "Passavam a ressaltar as potencialidades, ou seja, a 'natureza em estado bruto'' que havia para ser explorada", escreve a pesquisadora.
Mais de três décadas depois, o argumento segue em voga no PDL de 2019, estando presente no discurso do relator do projeto, o senador amazonense Plínio Valério (PSDB-AM).
"Eles [a região do Tapajós] têm um agronegócio razoável que pode melhorar muito. Têm um setor graneleiro intenso e a maior produção de cacau do país. Produzem melancia, milho, exploram a bauxita também", lista.
A exploração de bauxita no oeste do Pará, a que Valério se refere, é comandada pela estadunidense Alcoa no município de Juruti, fronteira com o Amazonas. A empresa é envolvida em uma série de conflitos com comunidades do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Lago Grande. As comunidades denunciam a empresa por aliciamento e o Ministério Público Federal (MPF) chegou a proibir a entrada da empresa no PAE em 2018.
A assessoria do senador apresentou números que indicam que os 23 municípios que comporiam o Tapajós arrecadaram em 2020 o equivalente a R$1,656 bilhões e receberam da receita do Pará apenas R$274 milhões. O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) referente a esses municípios foi de R$5 para R$18 bilhões nos últimos dez anos. O número reflete principalmente o crescimento do agronegócio e da extração mineral e tem como ápice a conclusão do asfaltamento da BR-163, em 2020.
Os dados foram disponibilizados ao senador pelo Instituto Cidadão Pró Estado do Tapajós (ICPET), que desde 2011 representa institucionalmente os movimentos separatistas da região.
O ICPET é sediado no prédio da Câmara Municipal de Santarém e seu atual presidente, o militar da reserva e teólogo Jean Carlos Leitão, é assessor especial para Políticas de Integração e Apoio à Criação do Estado do Tapajós na Prefeitura de Santarém desde o início deste ano, com salário de R$3 mil. Entre 2018 e 2021, Leitão já recebia esse valor pela Prefeitura, sendo contratado como chefe de divisão do ICPET. O envolvimento público no movimento separatista é fundamentado por meio de leis orgânicas do município que preveem cargos e despesas com a causa.
Segundo Leitão, o crescimento financeiro da região deve muito à agropecuária e à extração mineral, e a criação do estado levaria a um crescimento ainda maior dos setores. "Nos reunimos com a Presidência da República e apresentamos dados do Ministério de Minas e Energia que mostram que o país perdeu R$ 70 bilhões nos últimos 40 anos somente com o contrabando de ouro da beira do rio Tapajós", afirma. "Temos um estado [o Tapajós] que consegue explorar de forma consciente e respeitosa nossas riquezas superficiais e ainda tem uma riqueza profunda, muito ouro que podemos dar para o país", continua.
Em sua fala, o presidente do ICPET especificou o potencial de exploração mineral na região dos municípios de Itaituba e Jacareacanga. Os municípios estão no centro das denúncias socioambientais do último ano devido à extração ilegal de ouro por garimpeiros dentro da Terra Indígena Munduruku.
"Nossa região é uma rota de drogas internacional, de extração de madeira ilegal, de garimpagem ilegal. Não que isso seja errado, mas se você legaliza, se traz para dentro da legalidade, aí terá as permissões", afirma.
De acordo com Leitão, com a criação do estado, o governo federal e as futuras instâncias estaduais discutiriam essas questões com maior proximidade. "Aqui historicamente é uma região que a capital não chega e quando chega é de forma precária. Poderíamos ter condições de proteger nossas florestas e trazer um desenvolvimento sustentável. Hoje temos bolsões de pessoas tentando sobreviver", avalia.
A visão de que a região oeste do Pará sofre de um abandono de recursos e negligência por parte do governo estadual motiva o apoio de alas políticas e ideológicas distintas. A vereadora de Santarém Biga Kalahare (PT), representante do movimento LGBTI+, também milita pela separação do estado. "Minha visão é voltada para o desespero. A gente aqui da região oeste, do Baixo Amazonas, padece muito pela falta de políticas públicas", afirma. Biga pondera que com mais recursos a região seria beneficiada com uma maior fiscalização ambiental. "A ausência de políticas públicas impacta inclusive nessa proteção".
A vereadora participou de uma caravana para defender a pauta em Brasília, na primeira semana de outubro. Ela visitou a capital acompanhada de outros políticos e lideranças do movimento separatista. "Fui à Brasília junto a políticos de direita. Acho que nesse momento o foco é apartidário", avalia.
As caravanas são organizadas pelo ICPET. As viagens de Leitão são pagas pela Prefeitura de Santarém. Somente neste ano foram cinco viagens, segundo o Portal da Transparência da Prefeitura. O militar da reserva afirma que as viagens são financiadas também com recursos de empresários e representantes da sociedade civil. A prestação de contas disponível no site do instituto só reúne informações de 2018.
Discurso bolsonarista domina atual gestão ICPET
Um dos frequentadores das caravanas do ICPET é o antropólogo Edward Montoanelli Luz, assessor do instituto que ficou conhecido em 2019 como "antropólogo dos ruralistas". No início de 2018, Luz foi contratado por fazendeiros ligados ao Sindicato Rural de Santarém (Sirsan) para contestar laudos antropológicos do processo demarcatório do povo Munduruku no planalto Santareno, região de intenso conflito com sojeiros.
Já em fevereiro de 2020, o antropólogo foi detido ao tentar impedir uma fiscalização do Ibama dentro da Terra Indígena Ituna Itatá, no município de Altamira, afirmando cumprir ordem do então ministro Ricardo Salles. Em 21 de outubro deste ano, uma publicação no site do ICPET mostra Luz ao lado de Jean Leitão e de outros membros do instituto em uma das caravanas.
Outro representante que se envolveu em polêmicas por se aliar ao discurso do governo Bolsonaro foi Malaquias José Mottin, 3º vice-presidente da entidade, empresário do ramo de cartolinas e proprietário de uma empresa de pesquisas de opinião pública. Mottin foi descrito como "macho alfa" de manifestação contrária ao lockdown realizada em Santarém em janeiro deste ano, durante a terceira onda da pandemia de Covid-19.
"Essa ordem do lockdown, da bandeira preta é uma treta. Uma invenção. A ciência não comprova, por mais que envolvam institutos, eu, particularmente, coloco minhas dúvidas quanto a qualquer tipo de informação que venha desse pessoal duvidoso", afirmou o empresário, em vídeo gravado para convocar a população para o ato.
Em suas redes sociais, Mottin tem diversas postagens em apoio a Bolsonaro, algumas das quais aparece usando uma camiseta pela criação do estado do Tapajós. A última postagem do empresário no Instagram mostra um carro que ele chama de "nosso novo brinquedo" adesivado com bandeiras do Brasil, com a frase "garimpeiros, madeireiros e produtores rurais são homens honrados e geradores de empregos!!!", com o slogan bolsonarista "nosso partido é o Brasil", além de uma foto sua e os dizeres "Tapajós é o nosso estado!".
O próprio Jean Leitão se envolveu em uma grande polêmica em novembro de 2019 por ter sido um dos principais depoentes que motivaram a prisão dos quatro brigadistas voluntários acusados de atearem fogo na Área de Proteção Ambiental (APA) Alter do Chão em dois inquéritos posteriormente arquivados por falta de evidências. Após testemunhar, Leitão afirmou à uma rádio de Santarém que a acusação foi "em tom de brincadeira".
A antropóloga Telma Bemerguy alerta para a aproximação entre a extrema direita e a pauta histórica da região. "Você tinha toda uma costura muito fina de difícil amarração que juntava movimentos mais à esquerda e mais à direita, pessoas de expressão políticas diferentes encontrando caminhos para apoiar juntas o projeto. Com essa aproximação do Bolsonarismo, justamente pela linguagem violenta e sem moderação, isso pode estar ameaçado", reflete.
A votação do PDL foi adiada por cinco dias, em 17 de novembro, mas ainda não entrou novamente na pauta da CCJ. Em caso de aprovação do plebiscito, o projeto irá ao plenário para decisão e, caso aprovado, será discutido na Câmara.