Presidente da Associação Nacional do Ouro, entidade que faz lobby pela liberação do garimpo em terras indígenas, é acusado de colocar mineral ilegal no mercado financeiro.
O Ministério Público Federal estima que 17,7 toneladas de ouro ilegal extraídos no Pará foram despejados no mercado financeiro entre 2019 e 2020. Um terço desse minério saiu dos garimpos de Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso, onde estão as terras indígenas dos povos Munduruku e Kayapó. Com o mercado aquecido —o ouro valorizou 56% em 2020—, empresários e políticos pró-garimpo fazem lobby para manter essa engenharia funcionando, o que inclui uma guerra velada contra os povos tradicionais.
Apesar das recentes operações policiais, os garimpeiros desafiam a Justiça, os territórios e as leis do mercado. “A cidade está cheia de garimpeiros”, contou Alessandra Munduruku ao InfoAmazonia, em setembro.
“A gente tem que estar preparado porque a gente está em guerra! Temos esperança que [os ministros] tirem os invasores. Enquanto eles não tiram, a gente tá na luta”, diz a líder Munduruku nesta conversa em vídeo.
Encontramos Alessandra Munduruku numa manhã movimentada em algum ponto da “capital do garimpo”. Sob a alfombra das árvores às margens do Tapajós, onde seu povo historicamente vive, ela lamenta o desmonte das instituições:
“Antes a gente tinha um aparato, tinha leis, Constituição, Funai, ICMBio, Polícia Federal… hoje a gente se sente sozinho. Hoje nós temos que lutar. E jamais vamos recuar para abandonar nosso território”, disse. Alessandra foi uma das que engrossou a frente dos Munduruku contra o Complexo Hidrelétrico do Tapajós, conquistando um recuo histórico do megaprojeto que afetaria diretamente a TI Sawré Muybu, no Médio Tapajós. Ela está diretamente ligada à frente de combate às invasões nas TIs Munduruku e Sai Cinza, muitas vezes atuando como porta-voz da comunidade para retratar o verdadeiro desejo dos indígenas.
“O próprio ouro que sai das terras indígenas ilegal, que agora querem tornar legal, é para entrar mais facilmente nos países desenvolvidos”, denuncia cobrando que a comunidade internacional e o mercado financeiro também têm culpa quando investem no minério extraído ilegalmente.
Maior área minerada do Brasil
No Hotel Riozinho, centro de Itaituba, principal ponto de parada dos garimpeiros, um jovem de 25 anos confirmou que alguns garimpos fecharam, “mas a maioria tá funcionando”. Ele sonha voltar do garimpo com R$ 60 mil no bolso para comprar um terreno. Mas não foi desta vez. Depois de sete meses na selva, incluindo dez longos dias infectado com malária, voltou apenas com o “farelo”, pouco ouro. Em três semanas volta para mais uma temporada na floresta, contou sem revelar a identidade.
“Quem ganha mesmo no garimpo é o dono do maquinário, mas se pegar um garimpo bom consigo tirar esse dinheiro para comprar um terreno na praia”, disse.
A instalação de um garimpo está orçada em mais de R$ 1 milhão. Uma operação que inclui dragas, motores, escavadeiras e apoio aéreo de helicóptero para levar os equipamentos e monomotores para retirada do ouro já fundido. Apesar de defendida como atividade artesanal, os garimpos no Pará fazem lavras em escala industrial, juntando centenas, ou até milhares, de pessoas nas currutelas —como são chamadas as vilas dos garimpos, onde eles encontram mantimentos, bebidas, drogas e prostituição.
Cada quilo de ouro ilegal minerado na floresta custa R$ 2 milhões em prejuízos ambientais e sociais, levando em conta desmatamento, assoreamento dos rios e consequências da contaminação pelo mercúrio na natureza e na saúde humana. Apenas em 2020, segundo os dados da “Calculadora de Impactos do Garimpo Ilegal de Ouro”, lançada pelo MPF em parceria com a organização não-governamental Conservação Estratégica (CSF-Brasil), os danos ambientais na bacia do Tapajós foram de R$ 5,4 bilhões. A atividade colocou em risco 15 mil garimpeiros e 370 mil habitantes.
Joel Gomes Pereira, 61, garimpeiro que começou a carreira em Serra Pelada, nos anos 1970, não vê riscos ambientais na atividade e repete o discurso insistentemente martelado por lobistas e grandes empresários do ouro: “A terra é rica, nós temos que explorar, porque nós somos brasileiros, somos os donos dessas áreas. É [terra] indígena, tudo bem, nós paga (sic) um dinheirinho para os índios. O que a gente quer é trabalhar”, afirmou.
Gomes justifica a necessidade de manter os homens nos garimpos, mesmo ilegalmente, com a segurança nas cidades garimpeiras. “Esse monte de pessoas paradas dá mais trabalho para a polícia do que nós trabalhando. Porque nós trabalhando nós temos como sobreviver”.
Uma das apostas para limpar a barra dos invasores está no PL 191/2020, defendido pelo presidente Bolsonaro e que pretende autorizar garimpo em terras indígenas; a outra é a histórica falta de ação dos órgãos competentes. O poder de troca do ouro financia a reposição do maquinário destruído nas operações, milhões aos garimpeiros, alicia indígenas e elege políticos.
Nos últimos meses, a região de Jacareacanga e Itaituba tem sido palco de conflitos cada vez mais violentos. Os Munduruku experimentam rupturas internas talvez inconciliáveis e que têm como pano de fundo a “omissão do estado” e o deslumbramento com os bens de consumo proporcionados pelo ouro: “tudo alimentado pela possibilidade livre de inserção do ouro ilegalmente extraído nas terras indígenas no mercado nacional”, como apontam procuradores do MPF do Pará, que pedem a condenação de três financeiras que compraram ouro ilegal mascarando sua origem.
No final de agosto, o MPF pediu a suspensão das atividades da FD’Gold, Carol e OM nestas regiões, e cobrou também R$ 10,6 bilhões por danos sociais e ambientais. Essas Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs) autorizadas pelo Banco Central para operar o comércio direto do ouro em Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso são acusadas de “esquentar” 4,3 toneladas do minério extraído ilegalmente.
As três financeiras estão ligadas à Associação Nacional do Ouro (Anoro), que atua forte no lobby pela liberação do garimpo em terras indígenas. O presidente da Anoro, Dirceu Frederico Sobrinho é figura conhecida nos corredores de Brasília, se reuniu com o vice-presidente Hamilton Mourão, em janeiro deste ano, com o ex-ministro Ricardo Salles e outros membros da cúpula do governo.
Os procuradores destacam que Sobrinho opera há mais de 30 anos no mercado brasileiro de ouro, e que “acompanha, também há mais de trinta anos, as tensões e debates envolvendo a presença da extração ilegal de ouro na Amazônia”.
A empresa de Sobrinho, a FD’Gold, comprou 1.370,20 quilos de ouro vinculados, no momento da aquisição, a autorizações legais de áreas que nunca foram exploradas.
As informações foram confirmadas pelos procuradores que cruzaram indícios de irregularidades com um levantamento científico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) a partir de análises de imagens de satélite e registros da Agência Nacional de Mineração (ANM). Estima-se que o ouro adquirido pela FD’Gold possa estar associado ao desmatamento de mais de 9 mil hectares da floresta amazônica.
Sobrinho já foi denunciado por envolvimento na receptação de ouro ilegal ou de modo irregular em ações da Justiça Federal de 2011 e 2017. Ele também figura como réu em ação contra a Mineradora Ouro Roxo por uso de “substância tóxica, perigosa e nociva à saúde humana e ao meio ambiente, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis e regulamentos sem autorização do órgão ambiental competente”.
Os procuradores apontam ainda o que chamam de mecanismo de “esquentamento chapado”, operado pelas três financeiras: embora atrelado formalmente a permissões de lavra garimpeira (PLGs) em Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso, “o ouro pode, na verdade, ser oriundo de qualquer outro ponto do bioma em que existe garimpo ilegal, como as terras indígenas Munduruku, Kayapó, Yanomami, Raposa Serra do Sol, os Rios Madeira, Jutaí, Içá e Japurá, todos no Amazonas”.
Peça chave do lobby
No último 14 de setembro, Dirceu Sobrinho participou da reunião do GT Código de Mineração da Câmara dos Deputados, representando a Anoro, e apresentou como uma de suas propostas a instituição de um TAC para “legalizar o garimpo irregular”.
Dirceu Sobrinho defende publicamente a mineração em terra indígena. “O presidente Bolsonaro tem falado que quer legalizar garimpo em terra indígena, o que eu concordo plenamente. Porque as maiores reservas minerais da Amazônia Legal estão sobre reservas indígenas”, e diz que as unidades de conservação criadas na região de Itaituba e Jacareacanga, em 2006, “invadiram a reserva garimpeira”. Uma das suas propostas é acabar com as restrições nas áreas de conservação.
Sobrinho foi candidato a suplente de senador na chapa do tucano Flexa Ribeiro, em 2018. O empresário que aportou em Itaituba em 1986, no auge da “corrida do ouro”, e logo tornou-se figura poderosa como dono de diversos garimpos, também foi secretário de Minas e Meio Ambiente da prefeitura de Itaituba, e, através da Anoro, endossou discursos contra a demarcação das terras Munduruku.
A pesquisa-denúncia “Cerco do Ouro — Garimpo ilegal, destruição e luta em terras Munduruku”, organizada pelos pesquisadores Luísa Molina e Luiz Jardim Wanderley, narra o ambiente engendrado das cidades-garimpos às margens do Tapajós, onde abandono e omissão com os povos tradicionais imperam.
Entre os atores que orbitam o garimpo, sobretudo a expansão da atividade sobre terras indígenas, Molina e Wanderley citam, além de Sobrinho, o senador Zequinha Marinho (PSC), o deputado federal Joaquim Passarinho (PSD), Flexa Ribeiro (PSDB), Wellington Fagundes (PL/ MT) e o vereador de Itaituba pelo MDB Wescley Tomaz. Aliado do prefeito de Itaituba, cotado para ser seu vice na última eleição, Roberto Katsuda, representante da Hyundai no Brasil, também aparece como o maior revendedor de maquinário para os garimpos da região.
Outra figura recorrente no lobby pela expansão do garimpo sobre áreas protegidas da Amazônia, aliado de Sobrinho, é José Altino Machado. Os dois estiveram no encontro com Mourão em janeiro deste ano. Em 2019, ele já havia se reunido com Mourão para tratar sobre exportações de ouro na Amazônia. Altino é fundador da União Nacional dos Garimpeiros da Amazônia Legal e Presidente da Fundação Instituto de Meio Ambiente e Migração da Amazônia, Finama. Na década de 1980, atuou no movimento garimpeiro em Roraima e é apontado como mandante de uma invasão à TI Yanomami em 1985. Atualmente é dono de garimpos no Tapajós.
O poder do ouro também financia a discórdia nas aldeias aliciando indígenas. Uma das denúncias recebidas pelo MPF aponta “possíveis negociações entre a associação indígena Pussuru, através de seu então coordenador, Adaísio Kirixi Munduruku, e garimpeiros não indígenas (Pariwat), que desenvolvem atividade de mineração ilegal”.
Para se manifestar favorável ao garimpo em terras indígenas, segundo destacam os procuradores na Ação, Adaísio Kirixi teria recebido entre R$ 10 e 20 mil para assinar a carta de repúdio à Operação Verde Brasil 2, deflagrada para combater garimpo ilegal, focos de incêndio e desmatamento na Amazônia Legal. Na época, a carta circulou como se representasse o posicionamento dos Munduruku. Para intimidar os indígenas contrários aos garimpos, os aliciados publicaram fotos portando armas nos grupos de mensagens. Tentamos contato com Adaísio Kirixi, mas ele não atendeu nossas ligações.
“A crescente organização da mineração ilegal dentro da terra indígena tem estimulado a rivalidade entre indígenas. A intrusão de garimpeiros brancos no interior dos territórios conta frequentemente com o apoio de indígenas criminosos que recebem comissão ou que exercem diretamente a atividade e que, para assegurar a percepção do produto do crime, chegam ao ponto de ameaçar parentes compartilhando nas redes sociais fotos em que ostentam armas de fogo”, destacaram os procuradores no pedido de intervenção federal encaminhado ao STF e que desencadeou as operações Mundurukânia I e II, em maio e junho deste ano.
Procuramos Dirceu Sobrinho e a Anoro para comentar as acusações do MPF, mas eles não responderam nossos emails.
Também questionamos o Banco Central sobre as autorizações de operação para as financeiras acusadas de ilegalidades. O BC respondeu que, no mercado do ouro, as fiscalizações são realizadas “com o ouro ativo financeiro ou instrumento cambial” e que o órgão não tem competência para “fiscalização ou supervisão do comércio de ouro nos locais com permissão de garimpo”, somente após aquisição pela instituição financeira é que o metal “adentra a competência do Banco Central”, informou.
Um dos exemplos do poder das organizações pró-garimpo foi a ofensiva contra as Forças de Segurança, entre 25 e 27 de maio deste ano em Jacareacanga, na Operação Mundurukânia I.
O vice-prefeito de Jacareacanga, Valmar Kaba Munduruku, convocou garimpeiros e moradores por mensagens de áudio para um protesto que terminou em quebra-quebra. Valmar foi preso dois meses depois de ficar foragido, acusado de dar apoio ao garimpo ilegal no Pará.
O garimpo também elegeu em primeiro turno o prefeito de Itaituba, Valmir Climaco (MDB), dono declarado de garimpo, além de fazendeiro, empreiteiro e ex-madeireiro. Climaco se orgulha de ser o prefeito que mais regularizou áreas de garimpo no município. Em 21 de julho do ano passado, publicou nas suas redes uma foto com a seguinte mensagem: “garimpeiro não é bandido, é trabalhador”.Um dos organizadores da pesquisa “Cerco ao Ouro”, Luiz Jardim Wanderley, que também é coordenador do Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil, diz que tem desde indígenas cooptados, grandes empresários operando com lobby no Congresso Nacional, e o próprio Executivo federal que defende o garimpo nas terras indígenas.
É uma rede complexa que também impede o maior controle, ou uma política efetiva de retirada dos garimpeiros daquela região. Parece que essa rede tem seu ápice justamente neste momento, com o governo Bolsonaro
Luiz Jardim Wanderley, coordenador do Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil.
Bolsonaro, Mourão e a nova corrida do ouro
O garimpo em terras indígenas tem o apoio declarado do presidente Bolsonaro, que diz que a atividade “precisa ser regularizada”.
“Hoje em dia a mineração [em terras indígenas] é feita de forma clandestina. Não adianta o pessoal falar que tem que ir atrás dos que estão ilegal porque a Amazônia é maior que a Europa ocidental. Nós queremos regularizar isso daí, para o índio até ganhar dinheiro com isso”, defendeu Bolsonaro ao ser questionado pela nossa reportagem sobre o tema, em fevereiro deste ano.
Desde 2018, segundo aponta o MPF, o recrudescimento do garimpo nas terras indígenas Munduruku e Sai Cinza expandiu 363% sobre a floresta. No ano passado, segundo dados do MapBiomas, metade da área nacional do garimpo estava em unidades de conservação (40,7%) ou terras indígenas (9,3%).
Em 2021, o Brasil bateu o recorde histórico de pedidos oficiais para exploração de ouro. Entre janeiro e setembro, foram 2.891 requerimentos protocolados na ANM, quase o dobro dos pedidos realizados em 2019 (1.500), e mais do que os 2.411 requerimentos de 2020 inteiro.
Tal expansão avança também sobre territórios indígenas e unidades de conservação. As maiores áreas de garimpo em terras indígenas estão em território Kayapó (7.602 ha) e Munduruku (1.592 ha).
No dia 24 de maio, o ministro Roberto Barroso, do STF, determinou a adoção de “todas as medidas necessárias à proteção da vida, da saúde e da segurança das populações indígenas que habitam as TIs Yanomami e Munduruku”.A decisão ocorreu após uma série de denúncias do MPF do Pará sobre a falta de atuação dos órgãos competentes, como Funai e Ibama. No caso da Funai, o MPF também ingressou com ação contra o coordenador regional, José Arthur Macedo Leal, por se manifestar publicamente pró-garimpo em terras indígenas. “Em relação à atuação conjunta de vários órgãos da União, há investigação sobre vazamento de informações sobre operação e desde 2020 o MPF tenta, na Justiça, que a União organize combate contínuo, estratégico e efetivo à mineração, e não apenas atuações pontuais e episódicas”, manifestaram os procuradores ao Infoamazonia.
Em maio de 2021, a série de revoltas dos garimpeiros deflagrada com apoio de empresários e políticos locais, como o vice-prefeito de Jacareacanga, terminou com casas incendiadas na aldeia Munduruku, em Jacareacanga. Um dos alvos foi Maria Leusa Kaba, presidente da Associação de Mulheres Munduruku Wakoborun. Os ataques e ameaças às lideranças que denunciam as violações dentro das terras indígenas se tornaram cada vez mais constantes.
O ouro é desgraçado para a nossa vida. Traz divisão, doença, prostituição, drogas… Quem vive na cidade toma banho em uma água limpa, enquanto os povos indígenas da Amazônia estão tomando banho em água contaminada. É muito triste você saber que não pode comer peixe
Alessandra Munduruku.
Seis meses antes, garimpeiros tinham invadido a casa de Alessandra e levado documentos. O episódio ocorreu justamente após ela retornar de Brasília, onde tinha denunciado as invasões dos garimpos nos territórios do seu povo.
“Será que para as pessoas me ouvir, ouvir meu povo, as mulheres, será que um de nós tem que morrer? Maria Leusa precisa morrer como fizeram com Chico Mendes, com a irmã Dorothy? Não, a gente vai lutar”.