Pressão sobre territórios e alimentação tradicional, poluição de rios por agrotóxicos e avanço de doenças crônicas deixam população vulnerável à pandemia

Sob o sol do Planalto Central, corpos pintados de tintas preta e vermelha – feitas de urucum e carvão – e adornados com brincos e pulseiras, indígenas Xavante carregam faixas. “Povo Xavante não é agronegócio. Terra livre”, “Povo Xavante é contra o PL 490 e marco temporal”, são algumas das frases escritas nos cartazes. 

Nem a pandemia de Covid-19, que impactou os Xavante de maneira devastadora, nem os cerca de 800 quilômetros que separam a Terra Indígena (TI) Marãiwatsédé, um dos dez territórios reconhecidos pela União onde vive o povo Xavante, no Mato Grosso, intimidaram os indígenas de irem protestar em agosto, na capital do país. A cacica Carolina Rewaptu, que vive na Marãiwatsédé, e a liderança Xavante Hiparidi Top’tiro, morador da TI Sangradouro, estavam entre os indígenas que participaram do acampamento “Luta Pela Vida”, em Brasília, organizado em oposição à tese do marco temporal – que  tenta condicionar a demarcação das terras indígenas do país ao momento de promulgação da Constituição Federal de 1988.

Eles também foram manifestar oposição ao projeto Agro Xavante, de iniciativa de fazendeiros do Sindicato Rural de Primavera do Leste em parceria com o governo do Mato Grosso e a Fundação Nacional do Índio (Funai). Intitulado de “independência indígena”, o projeto prevê a exploração agrícola nas terras indígenas e afirma que irá “levar desenvolvimento, segurança alimentar e qualidade de vida” aos Xavante. A escolha pelo uso de urucum e carvão para pintar a pele tem um motivo, relata Hiparidi. “Urucum e carvão eram usados para a guerra. Estamos em guerra com o governo. Essa é a explicação”, afirma, referindo-se ao governo de Jair Bolsonaro.

Nas últimas décadas, com o agronegócio cercando as terras Xavante, houve uma diminuição das áreas para cultivo, pesca e caça. Hoje, o território corresponde a pequenas ilhas verdes, rodeadas de soja e gado – em especial, soja. O projeto Agro Xavante representaria uma ameaça a mais à existência destes pequenos pontos verdes. “Com essa entrada do agro no nosso território, piorou de vez. Muita gente fala que é exagero, mas onde tinha refúgio dos animais, está sendo derrubado. E vamos perder os conhecimentos tradicionais milenares das ervas medicinais. Eles vão desaparecer”, preocupa-se Hiparidi. [veja matéria Incentivados pela Funai, projetos de monocultivos avançam sobre territórios indígenas no Mato Grosso e dividem Ministério Público]

Mapa do DSEI Xavante inclui as 10 terras indígenas reconhecidas pela União, embora o distrito sanitário atenda também a população Xavante que vive em terras indígenas ainda pleiteando este reconhecimento. Mova o slider para comparar o uso e cobertura do solo no Mato Grosso em 1985 (esquerda) e 2020 (direita).

De acordo com a cacica Carolina Rewaptu, com a intensificação dos plantios de soja no entorno das terras indígenas, hoje não há mais recursos naturais para se fazer artesanato, tampouco raízes medicinais para tratamentos de saúde. “Antes, a paisagem era mais fechada. Agora mudou muita coisa. Vimos essas mudanças”, explica Carolina, que nasceu em 1960 –  década em que a tomada de terras por fazendeiros se intensifica, no âmbito do projeto de colonização incentivado pelo Estado brasileiro e que recebeu amplo apoio da ditadura militar.

O estrangulamento do território afetou também a alimentação tradicional dos Xavante, que foi sendo substituída por produtos industrializados. A vulnerabilidade alimentar e de saúde causadas pela degradação ambiental que acompanha o agronegócio ficou particularmente visível durante a pandemia de Covid-19. A população Xavante foi uma das etnias que mais sofreu e perdeu vidas para o vírus.

Destruição territorial e alta taxa de mortalidade

Um dado acerca da elevada taxa de mortalidade entre os Xavante chamou a atenção de pesquisadores da área da saúde. O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI): DSEIs são estruturas federais de atenção à saúde indígena vinculadas à Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde Xavante apresentou uma taxa de 341 mortes/cem mil habitantes, entre a 9a e a 40a semana epidemiológica – ou seja, no intervalo entre 23 de fevereiro e 3 de outubro de 2020. 

A título de comparação, neste mesmo período, a taxa de mortalidade para a população geral brasileira foi de 69.5 mortes/cem mil habitantes. Isso significa que a mortalidade do novo coronavírus (Sars-Cov-2) na população Xavante foi quase cinco vezes maior do que na população em geral. Essas informações constam em um estudo publicado por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), entre outras instituições de pesquisa, que utilizou dados compilados pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

Conseguimos mostrar uma associação direta entre a devastação [de determinados territórios indígenas] e as taxas de incidência nos territórios avaliados

Paulo Basta, médico sanitarista, Fiocruz.

O estudo aponta também para uma enorme discrepância entre as mortes registradas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão vinculado ao Ministério da Saúde do governo federal, e os dados compilados pela Coiab, o que indica uma elevada subnotificação nos dados oficiais sobre casos e mortes por Covid-19 entre indígenas. Enquanto a Sesai aponta que 330 indígenas morreram no período analisado, para a Coiab foram 670 mortes. Entre os fatores que explicam essa diferença, o estudo ressalta a negação da identidade dos indígenas mortos por Covid-19, que, principalmente quando se contaminam e vêm a óbito na cidade, são registrados como pardos.

Mas o estudo vai além de indicar as subnotificações dos dados do Ministério da Saúde. Para Paulo Basta, médico sanitarista especializado em epidemiologia e em saúde indígena e um dos responsáveis pelo trabalho, “conseguimos mostrar uma associação direta entre a devastação [de determinados territórios indígenas] e as taxas de incidência nos territórios avaliados”.

Para Basta, um dos pontos centrais do estudo é apontar “como ameaças externas podem contribuir para o espalhamento da pandemia nas terras indígenas”. Por ameaças externas o epidemiologista se refere a atividades madeireiras e garimpeiras ilegais, grilagem de territórios indígenas, mas também aos efeitos de queimadas e do próprio agronegócio. 

Para ilustrar seu ponto, Paulo Basta explica como características específicas vivenciadas pelos territórios indígenas em quatro DSEIs influenciam a alta mortalidade identificada pelo estudo.

Para o médico, no DSEI Alto Solimões, o fator que explica a alta letalidade é a precária infraestrutura hospitalar, que é dependente da cidade de Manaus. De Tabatinga (AM) para a capital do Amazonas, a distância é de 1.100 quilômetros, que levam 1h45 de voo para serem percorridos, ou, com valor muito mais acessível para a população, quatro dias de barco. Já nos DSEIs Xavante, Cuiabá e Kayapó do Pará, Paulo Basta ressalta que, além da também precária infraestrutura, “uma grande presença de comorbidades, como hipertensão e diabetes, estão associadas ao desfecho negativo da contaminação pela Covid-19”.

O médico sanitarista explica que essas comorbidades teriam origem num fenômeno que ele considera chave: transição nutricional. “Essas populações, à medida que foi se estabelecendo o contato com a sociedade não indígena, marcado pela destruição do território e diminuição de disponibilidade de recursos naturais e disponibilidade de alimentos tradicionais (pesca, caça, roça ficam mais escassos), os indígenas passam a comer comida industrializada, de baixo valor nutricional, rica em açúcar, sal e gordura”, explica.

A transição nutricional a que Paulo Basta se refere está relacionada a transformações culturais, nas formas tradicionais de alimentação, um processo algo inevitável, que acompanha a intensificação do contato com a sociedade não indígena. Só que este contato, histórica e atualmente, está longe de ser pacífico. E, como ressalta, é um processo que vem acompanhado de uma série de destruições, que permitem a transformação da floresta e do Cerrado em locais aptos para gado e soja. 

Pela ampla degradação ambiental causada, tanto indígenas que vivem essa situação na pele – e no prato – quanto epidemiologistas especializados em saúde indígena encontram no avanço do agronegócio uma chave de raciocínio para a alta letalidade de indígenas Xavante durante a pandemia de Covid-19. O argumento é que a diminuição das áreas de caça e de roçado, e o impacto dos agrotóxicos nos rios que acompanha a intensificação do plantio de monocultivos nos últimos 36 anos criaram condições ambientais que aumentam a situação de vulnerabilidade dos Xavante.

Com maior insegurança alimentar, alimentação de baixa qualidade e assistência médica precária, doenças circulam mais e têm maior letalidade entre os Xavante. E a Covid-19 seguiu este padrão. Essa é a avaliação de Aline Alves Ferreira, epidemiologista especialista em nutrição, que realizou sua pesquisa de doutorado pela Fiocruz entre os Xavante. “A gente já tem indicadores de saúde e de alimentação que são muito piores quando comparados aos não indígenas no Brasil, e que se acentuaram no cenário da Covid.”

Ferreira coloca menos ênfase na pré-existência de comorbidades, e mais na baixa atenção médica, na falta de saneamento e nas condições ambientais criadas pelo agronegócio, que afetam, diretamente, as formas de alimentação. A descrição que ela faz do território Xavante é avassaladora: “Tem aqueles pastos, ali: soja, soja, soja, soja. Aí, de repente, quando começa a terra indígena, a vegetação muda completamente.”

A epidemiologista explica que, com um ambiente cada vez mais reduzido, com um ecossistema cada vez mais afetado, cresce a busca por alimentos ultraprocessados (o que significa uma piora na qualidade da alimentação). Mas há também uma piora na própria regularidade de acesso ao alimento. 

Comida de ontem, comida de hoje

De sua casa na TI Marãiwatsédé, a cacica Carolina Rewaptu conta que, à época em que era criança, cabia às mulheres a responsabilidade por coletar frutas do Cerrado, como pequi e buritizal. E também raízes, como batata, inhame, batata nativa, abóbora, mandioca.

“Era bom para nós”, diz a indígena, em entrevista por telefone, sobre a alimentação dos Xavante. “Esses alimentos de antigamente eram mais saudáveis. Era comida da roça. Era importante para a saúde das crianças, dos jovens, e das mães jovens na gravidez.” Carolina conta que eram as mais velhas que ensinavam esses costumes de alimentação, de como cuidar das crianças e preparar os alimentos e os rituais.

Nas últimas décadas, no entanto, o cenário mudou. “Hoje, colocam açúcar, sal e óleo em tudo. A gente não comia esses alimentos com açúcar”, explica a cacica da aldeia Madzabdzé. “No meu tempo”, as crianças eram muito sadias, com corpo físico estruturado. “Hoje, a gente vê as crianças muito gordas. Com essas mudanças, muitas pessoas estão com diabetes e obesidade com esse alimento que vem da cidade. Há muita preocupação com o povo Xavante”.

Com essas mudanças, muitas pessoas estão com diabetes e obesidade com esse alimento que vem da cidade. Há muita preocupação com o povo Xavante

cacica Carolina Rewaptu, da TI Marãiwatsédé.

O impacto do aumento dos projetos de agronegócio no entorno do território dos Xavante afetou até o ritual do casamento, fundamental para a organização social dos indígenas e para a própria formação do que consideram ser uma pessoa Xavante. “Com a diminuição da caça, quase perdemos o ritual do casamento, quando é realizada uma refeição com carne de anta, servida para toda a comunidade. Usávamos a anta porque é a principal carne gorda. E não tinha mais porque o território estava cercado e devastado”, relata a cacica Carolina Rewaptu.

Além disso, os animais “começaram a adoecer, porque comiam soja e milho. A gente sabe que os animais estão comendo essa soja, que dá muita gordura. E a gente come a carne muito engordurada. E tem a contaminação de venenos também”. Ela refere-se aos agrotóxicos usados nos projetos do agronegócio, que contaminam a água que vai para a terra indígena. “Ela é mais poluída na época da chuva, mais perigosa, porque os limites da fazenda estão no nosso entorno”, explica a cacica. 

Hiparidi Top’tiro, liderança da TI Sangradouro, enfatiza que “desde que o agro se aproximou do nosso território, eles usam veneno e a comida está contaminada. Mesmo o que a gente planta no nosso território está contaminado”.

Hiparidi Top’tiro, liderança Xavante no acampamento “Luta Pela Vida”, em agosto 2021. Foto: Andressa Zumpano. Credit: Andressa Zumpano Credit: Andressa Zumpano

A relação dos Xavante com a alimentação pode ser descrita por dois conceitos, importantes para eles. Danhiptedezé: comidas e comportamento que fortalecem; e danhip’uwazé: comidas e comportamentos que enfraquecem. “Quando as mulheres fazem uma colheita coletiva de batatas do Cerrado, por exemplo, elas já têm uma ligação com o espírito do alimento. Você extraiu do Cerrado, isso te alimenta e fortalece”, relata Hiparidi. Ao se caçar, a carcaça do animal carrega um espírito. “E é um jeito de contribuir para o nosso espírito, das mulheres. Sem caça, não há alimento para gerar mais crianças. Sem caça, não tem mais gravidez”, complementa Hiparidi.

Também o peixe e frutas, como buriti, jatobá, baru, são consideradas comidas que fortalecem. Já a comida que enfraquece é a industrializada, trazida de fora, sem nenhum espírito. “Isso que a gente classifica que enfraquece nossos espíritos.”

Danhiptedezé: comidas e comportamento que fortalecem; e danhip’uwazé: comidas e comportamentos que enfraquecem

A maior fragilidade do território Xavante, que o deixa mais vulnerável, continua Hiparidi Top’tiro, é o fato de ser fragmentado. “Se fosse continuado, a situação seria mais tranquila. Não estaria acontecendo o que está acontecendo”.

A geógrafa Maria Lúcia Cereda Gomide, professora da Universidade Federal de Rondônia, atribui a fragmentação do território Xavante ao longo processo de demarcação, no qual a disputa com fazendeiros locais, entre as décadas de 1950 e 1970, impediu que fosse estabelecido um território contínuo, a exemplo do que foi realizado no Alto Xingu, também no estado do Mato Grosso.

Essa vulnerabilidade da saúde causada pelo agronegócio pode ser vista pelos mapas. Segundo dados compilados pela Coiab, as quatro terras indígenas Xavante mais afetadas pela pandemia são: São Marcos, Sangradouro, Marãiwatsédé e  Pimentel Barbosa.

De acordo com o site do Instituto Socioambiental (ISA), 70,45% da TI Marãiwatsédé, onde vive a cacica Carolina Rewaptu, está localizada no município de Alto Boa Vista. Dados obtidos junto ao IBGE Cidades apontam que na série histórica que compreende o período entre 2004 e 2019, houve no município um intenso aumento na área destinada ao plantio da soja, e o quase desaparecimento de áreas destinadas ao plantio de macaxeira.

Já o MapBiomas indica que entre 1985 e 2020, a área de floresta, incluindo formação florestal e savanas, no município de Alto Boa vista caiu de 176.705 hectares em 1985 para 99.404 hectares em 2020 – uma redução de 44%

Para se ter uma perspectiva mais ampla do desmatamento na região em que vivem as populações Xavante, fizemos a seguinte visualização: selecionamos as quatro terras indígenas Xavante com maior mortalidade pelo novo coronavírus. E então fizemos um recorte, com os sete municípios nos quais esses territórios estão majoritariamente localizados: Alto Boa Vista, São Félix do Araguaia, Canarana, Ribeirão Cascalheira, Barra do Garças, General Carneiro e Poxoréu – todos no estado do Mato Grosso.

Entre esses sete municípios, havia em 1985, 4.184.575 hectares de floresta. Em 2020, eram 3.012.678 de hectares – ou seja, cerca de 25% a menos em 36 anos.

Em comparação, a área destinada à produção agropecuária passou de 1.050.175 hectares em 1985 para 2.269.552 hectares em 2020 (mais do que dobrou no período). Apenas a área destinada à soja saltou de 17.748 hectares em 1985 para 768.898 hectares em 2020. Ou seja, em 36 anos, a soja passou a ocupar uma área 43 vezes maior do que ocupava nestes sete municípios, em 1985.

Indicadores de saúde são piores entre indígenas

Essa situação em que indígenas apresentam piores indicadores de saúde quando comparados à totalidade da população brasileira não é exclusiva dos Xavante. Outras populações indígenas do país vivenciam um quadro similar, principalmente quando se compara a taxa de mortalidade infantil e na infância, e a taxa de internação por doenças preveníveis.

Para o epidemiologista Paulo Basta, “os indicadores para os indígenas são sempre mais desfavoráveis, comparando com qualquer uma das raças, comparando inclusive com os pretos, que historicamente também são excluídos, marginalizados, etc”.

Doenças infecciosas e parasitárias, tuberculose, malária e hepatite, por exemplo, são indicadores que o médico identifica como mais elevados entre os indígenas do que nos dados observados na população geral. “Há 521 anos esses povos são tratados como empecilhos, como obstáculo ao desenvolvimento econômico do país e por conta disso são discriminados e são vistos como pessoas marginais à sociedade”, afirma Basta.

Este é um padrão que se repete com a pandemia. Pedro Hallal, epidemiologista e professor da Universidade Federal de Pelotas, levanta dados importantes sobre a alta prevalência da Covid entre populações indígenas. Em sua fala em 24 de junho na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada pelo Senado Federal, Hallal apresentou um gráfico, que diz ter sido censurado pelo governo Bolsonaro. O gráfico traz uma visualização do resultado do amplo estudo coordenado por Hallal, que analisa a prevalência de anticorpos de pessoas contaminadas pelo novo coronavírus, separados por raça/etnia. Nas três fases do estudo, indígenas despontam como o grupo com maior percentual de contaminação.

Proporção de pessoas que testaram positivo para o teste de anticorpos do SARS-Cov-2 (a cada cem testes), dentro da população de etnia correspondente. Fonte: Universidade Federal de Pelotas.

A situação dos Xavante, com seus territórios como ilhas verdes estranguladas pelos monocultivos de soja, é uma imagem clara para entender aquilo que Basta considera como um modelo econômico que trata os indígenas como entraves ao desenvolvimento. Para o epidemiologista, essas fazendas que cercam os territórios não trazem benefícios aos indígenas. “Não colocam escolas, não criam oportunidade de emprego, não criam projetos alternativos de desenvolvimento”, pontua ele, que também chama atenção para o risco aos indígenas da exposição ao intenso uso de agrotóxicos nas fazendas que circundam seus territórios.

Na Terra Indígema Sangradouro, por exemplo, “as plantações de soja chegam muito, muito no limite mesmo. Então, às vezes, de dentro da aldeia se sente o cheiro do veneno.  E você vê os aviões passando. É muito invasivo mesmo”, relata a geógrafa Maria Lúcia Gomide. “O rio das Mortes, que é esse rio muito importante pros Xavante, ele é todinho contaminado. Porque as nascentes ficam dentro de fazendas.”

Mas o mais recente passo dado pelo agronegócio vai além. Um novo projeto de produção agrícola em modelo industrial dentro das terras indígenas Xavante.

O rio das Mortes, que é esse rio muito importante pros Xavante, ele é todinho contaminado. Porque as nascentes ficam dentro de fazendas

Lúcia Gomide, geógrafa.

A sanha do Agro por territórios indígenas

A criação do projeto “Agro Xavante” tem o suporte da Funai, do Governo do Estado do Mato Grosso e do Sindicato Rural de Primavera do Leste. O projeto de monocultivo de arroz envolve uma cooperativa agrícola dentro da TI Sangradouro/Volta Grande. A iniciativa é do agronegócio, que já domina a área ao redor da terra indígena e criou uma divisão entre os moradores no interior de Sangradouro, já que uma parte é defensora da iniciativa. 

Um aspecto apontado por Maria Lúcia Gomide é que o projeto Agro Xavante pode aumentar o desmatamento das terras indígenas. “Já é uma área cercada por gado e soja. Lá dentro, o pouco de Cerrado que sobrou vai ser desmatado, vai ter veneno.”

Além disso, explica, como a TI Sangradouro já está demarcada, o projeto “contraria [a Constituição Federal] porque terra indígena não pode ser arrendada. Ela é de usufruto dos indígenas, mas ela é de usufruto comum. Não pode uma parte deles estar arrendando. Então vai contra a legislação”.

Para Paulo Basta, o médico sanitarista especializado em epidemiologia e em saúde indígena, ao contrário do que é propalado por defensores do projeto, a chegada do agro a territórios indígenas e a utilização de mão de obra indígena não tendem a melhorar a segurança alimentar desses povos. Pelo contrário. Comunidades indígenas sem energia elétrica, ou com acesso intermitente à rede elétrica, não possuem geladeiras. E a saída para buscar proteína, seja pela caça ou pela pesca, é comumente uma prática masculina. Se os homens são empregados em atividades agropecuárias, Basta receia que “as famílias fiquem desassistidas, sem acesso, praticamente, a proteínas, porque o pai parou de trazer peixe para casa, caça para casa”. O mesmo vale para abertura de roças, tarefa usualmente atribuída aos homens.

O receio de parte dos indígenas Xavante e dos epidemiologistas que acompanham o impacto do agronegócio na saúde dos indígenas é que a situação tende a piorar com a entrada dos campos de monocultivo de arroz nas terras indígenas. 

Nesse sentido, lutar pela alimentação tradicional, fortalecer as formas de cultivo tradicional, se torna não somente um ato de resistência, mas a busca pela cura de doenças que acompanham a colonização: “Queremos cultivar as nossas terras, queremos fazer, voltar com a comida tradicional. Eu faço parte de um grupo, que estamos usando a roça agroflorestal, tradicional, para alimentar os nossos filhos, e combater a diabetes e outros tipos de doença que afetam o nosso povo”, conclui Hiparidi.


Esta reportagem foi produzida pelo InfoAmazonia em parceria com O Joio e O Trigo.

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