Na área rural, desafio dos moradores atingidos pela fumaça é conseguir atendimento médico
Incêndio em poconé, pantanal mato-grossense, em 2020
Foto: Juliana Arini
“Paciente gravíssima. Intubada ontem devido insuficiência respiratória, está respirando por aparelho (ventilador mecânico), sedada, necessitando de medicação endovenosa para sustentar pressão arterial, segue sob cuidados intensivos”, informa um prontuário médico registrado em Cuiabá.
Desde 5 de agosto de 2020, a vida de Tânia Silva Moreira, 33 anos, estava em risco. A ex-atendente de supermercado chegou ao Hospital Universitário Júlio Muller, na capital de Mato Grosso, com dores e dificuldade para respirar. Grávida de nove meses, teve que fazer uma cesárea de emergência para que a vida do bebê não corresse risco. Após o parto, ela retornou para a comunidade quilombola de Mata Cavalo, no Pantanal mato-grossense, entre Nossa Senhora do Livramento e Poconé, a 50 quilômetros da capital Cuiabá.
tânia silva moreira
33 anos, quilombola da comunidade mata cavalo
As queimadas que atingiram todo o Mato Grosso também não deram trégua aos moradores de Mata Cavalo. Todo o pasto do pequeno sítio onde a família de Tânia vive foi tomado pelo fogo e os poucos animais da propriedade ficaram sem comida. Sem ar novamente, ela teve que ser levada mais uma vez ao pronto socorro. Na unidade de saúde, onde o prontuário que abre esse texto foi escrito, foi intubada em regime de urgência.
“Dois exames detectaram a Covid-19. Eu tive Síndrome Respiratória Aguda Grave e fiquei com 100% do pulmão comprometido, até hoje tenho dificuldade para respirar. Precisei fazer fisioterapia e ainda sinto muita fraqueza. Demorei seis meses para conseguir dar um banho na minha filha, hoje com dez meses. Eu estava tão fraca que ao pegar ela no colo pela primeira vez quase a deixei cair”, diz Tânia, que também sofre sequelas neurológicas por causa do vírus contraído há um ano.
Fiquei com 100% do pulmão comprometido, até hoje tenho dificuldade para respirar. Demorei seis meses para conseguir dar um banho na minha filha. Eu estava tão fraca que ao pegar ela no colo pela primeira vez quase a deixei cair.
Tânia Silva Moreira
hospitalizada na capital Cuiabá, teve que fazer cesárea de emergência
Em agosto de 2020, mês em que a moradora do Mata Cavalo foi internada em estado grave, Mato Grosso era o terceiro estado em número de queimadas no Brasil. Entre o início de agosto e começo de setembro, mais de 88 mil focos de calor foram detectados pelas imagens do satélite S-NPP/VIIRS, monitorado pelo Inpe e também usadas na análise do InfoAmazonia. Nos 30 dias anteriores, os sensores no espaço haviam detectado pouco mais de 10 mil focos.
A grande quantidade de fogo lançou muito material particulado tóxico na atmosfera, processo que fez aumentar em 62% os casos de internação por síndrome respiratória e 46% os casos de Covid-19 que deram entrada nos hospitais do estado em setembro. Na média entre julho e outubro, as mesmas taxas ficaram em 32% e 24% respectivamente.
Poluição do ar e aumento de internações por Covid em Mato Grosso, de julho a outubro de 2020
No mapa, passe o mouse sobre os círculos para dados sobre material particulado, aumento de internações por Covid-19 e SRAG nos municípios de Mato Grosso.
poconé teve o maior aumento nas taxas de internação
Fonte: análise do InfoAmazonia
Poconé, revela a análise do InfoAmazonia, é o líder do ranking de municípios mais afetados pelo aumento das internações relacionadas a material particulado em todo o período de queimadas. Em setembro, mês em que a situação esteve mais grave, os moradores de Poconé e da vizinha Cáceres viveram com 82% mais de chances de dar entrada no hospital por complicações da Covid-19 e 115% considerando todas as síndromes respiratórias atribuíveis a queimadas. O ar das duas localidades ficou todos os 30 dias do mês saturado de material particulado.
A secretária municipal de meio ambiente da cidade, Danielle de Assis Carvalho, 31, é uma das vidas que revelam a tragédia das estatísticas. Além de ficar internada com problemas respiratórios, perdeu um filho ainda no início da gestação em 2020. Na linha de frente do combate às queimadas, ela passou mal no trabalho. “Foi em setembro, no auge de tudo. Fogo, calor, seca e fumaça. Um dia desmaiei e fui parar no hospital. Foi quando descobri que estava grávida e, pior, já havia perdido o bebê. Tive que ficar sete dias internada sem conseguir respirar direito”, relembra Danielle com lágrimas nos olhos.
danielle de assis carvalho
31 anos, secretária municipal de meio ambiente de poconé
Foi em setembro, no auge de tudo. Fogo, calor, seca e fumaça. Um dia desmaiei e fui parar no hospital. Foi quando descobri que estava grávida e, pior, já havia perdido o bebê. Tive que ficar sete dias internada sem conseguir respirar direito.
danielle de assis carvalho
secretária de meio ambiente, que atuava no combate ao fogo que destruiu o pantanal
Segundo a secretária de Poconé, os graves incêndios que assolaram o Pantanal em 2020 mudaram a rotina da cidade. “ Eu viajava o tempo todo para Porto Jofre [distrito de Poconé, onde termina a Rodovia Transpantaneira], onde a fumaça era mais intensa e o calor também – o Parque Estadual do Encontro das Águas, que concentra a maior população de onças-pintadas do mundo, perdeu 82% de sua área original –, para prestar apoio ao combate, ajudar a resolver problemas de carros quebrados e até levar brigadistas à regiões remotas. No final, meu corpo e meu filho não suportaram”, conta Danielle, que hoje está no início de uma nova gestação e teme que as queimadas atinjam a região de Poconé, novamente, em 2021.
Fogo em agosto de 2020 na Transpantaneira (MT-060), Poconé, Mato Grosso
Foto: Juliana Arini
A situação em Mato Grosso em 2020, segundo a sanitarista Tatiane Moraes, pesquisadora do Observatório Clima e Saúde da Fiocruz e uma das consultoras científicas do InfoAmazonia na análise dos dados, ilustra um quadro grave que a pandemia ajudou a deixar muito mais nítido. “São regiões onde as populações têm demandas históricas por serviços de saúde. Como também, a qualidade dos sistemas de vigilância ambiental, com alertas e monitoramento, é baixa. Do ponto de vista macro, a presença da Covid tornou a situação mais complexa ainda”, diz a pesquisadora.
São regiões onde as populações têm demandas históricas por serviços de saúde. Do ponto de vista macro, a presença da Covid tornou a situação mais complexa ainda.
Tatiane Moraes
sanitarista e pesquisadora do Observatório Clima e Saúde, da Fiocruz
Se as consequências são as mesmas, e o raciocínio vale para as áreas da Amazônia mais impactadas pela sinergia negativa entre fogo e aumento de internações, as causas, segundo Tatiane, podem até diferir. “Nem sempre é o mesmo processo que explica as queimadas em toda a Amazônia. São diferentes cenários ambientais, existe a agropecuária, a mineração e outros agentes”, afirma a cientista da Fiocruz.
O caso de 2020 do Pantanal mostra bem isso. O bioma foi atingido pela pior temporada de queimadas da história da região. O fogo atingiu 26% do bioma, segundo estudo do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (LASA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o que representa uma área um pouco maior do que a da Suíça. De acordo com inquéritos e dados oficiais, os incêndios tiveram origem nas atividades humanas, em fazendas de pecuaristas. Segundo dados do Instituto Centro de Vida (ICV), 55% dos focos de calor detectados em agosto de 2020 estavam em propriedades rurais autodeclaradas no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Grande parte da origem das queimadas que atingiram 82% do Parque Estadual do Encontro das Águas e da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) do Sesc Pantanal, segundo o LASA-UFRJ, vieram dessas propriedades particulares. Dentro de Mato Grosso, estado que faz parte da Amazônia Legal, os incêndios também destruíram o bioma amazônico.
Parque Estadual Encontro das Águas teve 82% da sua área queimada em 2020
Fonte: composição colorida de imagens do satélite Sentinel-2 da Agência Espacial Europeia (ESA)
A crise ambiental aguda, como a de 2020, leva a outro problema. As redes de saúde, principalmente no interior dos estados amazônicos, são frágeis. No caso das cidades como Poconé, Nossa Senhora do Livramento e Barão de Melgaço, onde a população rural é superior à urbana, a dificuldade em buscar tratamento de saúde adequado é uma realidade bastante cotidiana.
sônia maria
53 anos, comunidade jejum
Sônia Maria, 53, que vive na comunidade do Jejum, em Poconé, perdeu a cunhada e vizinha de 78 anos por causa da Covid-19. A casa de Sônia está a mais de 40 quilômetros da sede do município. A unidade de saúde mais próxima do sítio onde ela vive com o marido de 72 anos e um filho portador de deficiência mental é um Posto de Saúde da Família, no distrito de Cangas. Mesmo assim, são 25 quilômetros de distância.
“A gente economiza e vai de táxi quando pode. São R$ 50 pra ir e outros R$ 50 pra voltar. Quando um vizinho quer rachar, sai por R$30 para cada um. Temos que levar sempre o menino até Poconé. Sobrevivemos com uma aposentadoria de um salário e com a venda dos tapetes de cordão que faço. Não tem como ir pra cidade duas vezes no mesmo mês”, conta a dona de casa. Ela diz que chegou a pegar Covid em 2020, mas se tratou em casa. “Ano passado passamos muito mal por causa da saúde, mas ficamos aqui tentando melhorar com remédios caseiros. Temos muito medo da Covid, muita gente já morreu por aqui com essa doença, mas não tem o que fazer”, afirma, de forma resignada.
A gente economiza e vai de táxi quando pode. São R$ 50 pra ir e outros R$ 50 pra voltar. Não tem como ir pra cidade duas vezes no mesmo mês.
sônia maria
dona de casa na comunidade quilombola jejum, em poconé, a 25km do posto de saúde mais próximo
O problema de locomoção até os centros de saúde mais próximos, além de ser crônico, é generalizado, afirma Edson Batista da Silva, agente de saúde local. Apesar de todos os quilombolas já terem recebido as duas doses da vacina contra o novo coronavírus, explica Silva, a pandemia ainda faz vítimas em 2021. “Antes da segunda dose, dois quilombolas muito saudáveis faleceram de Covid, não podemos arriscar, mas a falta de transporte deixa tudo muito complicado”, conta.
No município de Nossa Senhora do Livramento, a ambulância só leva pacientes da cidade até a capital. “Nem os médicos querem atender as comunidades mais distantes, estamos sem médico agora, a última pediu demissão. Em 2020, muita gente se refugiou em casa doente, por não ter como procurar auxílio. Com essa seca e as queimadas vindo mais cedo, não sei como o povo do Pantanal fará para lutar contra a Covid este ano”, afirma o agente de saúde.
Nem os médicos querem atender as comunidades mais distantes, estamos sem médico agora, a última pediu demissão. Em 2020, muita gente se refugiou em casa doente, por não ter como procurar auxílio.
edson batista da silva
agente de saúde de nossa senhora do livramento
A luta pela sobrevivência, muitas vezes, só tem saída se o paciente consegue chegar no antigo Pronto Socorro Municipal de Cuiabá, hoje Hospital de Referência da Covid-19 no estado. De acordo com o enfermeiro Ademilson Pereira da Silva, o período entre julho e agosto sempre é o mais preocupante. No ano passado, a situação ficou mais tensa ainda porque com muitos casos chegando ficava até difícil separar quem estava sofrendo por causa da infecção do novo coronavírus ou por outros tipos de problemas respiratórios, o que também pode levar à morte. “Nós recebemos pacientes de outras cidades de Mato Grosso, principalmente da região da Baixada Cuiabana, o Pantanal [onde está Poconé]. Tínhamos uma sala de triagem onde tínhamos que separar quem estava com problemas respiratórios causados muitas vezes por outros vírus de quem estava com Covid”, relembra Ademilson.
Os meses de falta de chuva e queimadas são sempre os mais difíceis. As unidades básicas de saúde das várias regiões recebem os doentes. Começa tudo por lá: coriza, asma e bronquite. Quando a pessoa fica mais fraca e se contamina com a Covid-19, vem para cá”, diz o enfermeiro. A longa saga atrás de tratamento, segundo Ademilson, principalmente a partir das áreas mais remotas, prejudica demais as chances de sobrevivência. “A demora faz a pessoa chegar muito debilitada a um hospital de referência”, diz.
seo josé palma
57 anos, COMUNIDADE SANTA LUZIA
A falta de chuvas continua assustando a região pantaneira em 2021. O produtor rural Seo José Palma, 57, precisou “afundar” seu poço para conseguir ter água para a família e para salvar a horta de bananas, típica da região. “Cavamos mais para baixo e deu água, mas não sabemos até quando, pois não era pra estar tão seco”, conta o agricultor que diz não ter superado as lembranças de 2020. “Nunca tinha visto o Pantanal arder daquele jeito. Todo mundo ficou doente aqui em casa. Meu neto, de dez anos (Christopher de Souza), tossia. A pior foi a minha sobrinha, Carmem Palma, que, depois, ainda pegou a Covid. Ela ficou 15 dias internada com essa doença, foi muito difícil. A gente sofria com a fumaça, via os bichos sofrer e não podia fazer nada”.
Rio Bento Gomes, em Poconé, interrompido em várias de suas porções, nascentes e corixos secos, em julho de 2021
Esta reportagem faz parte do Engolindo Fumaça, projeto especial do InfoAmazonia produzido com apoio da bolsa de jornalismo John S. Knight e do programa Big Local News da Universidade de Stanford.