Em Manaus, indígenas urbanos são excluídos dos planos de vacinação contra a Covid-19. Falta de assistência do governo e dificuldades no acesso à saúde mobilizaram indígenas da Zona Oeste de Manaus a criar hospital de campanha.

Vanda Ortega, 35,  indígena da etnia witoto, é técnica de enfermagem indígena e agente de saúde voluntária na comunidade Parque das Tribos, maior comunidade indígena de Manaus (AM), que reúne mais de 700 famílias de 35 etnias diferentes na Zona Oeste da cidade. Devido ao fechamento ou mudanças no perfil de unidades de saúde, que passaram a receber apenas casos de Covid-19, e à ausência de um plano específico para a saúde básica da população indígena urbana, Ortega e  outros voluntários resolveram agir e passaram a  andar de casa em casa visitando pacientes com sintomas, fazendo orientações e aplicando medicações. Quem apresentava estado mais grave era encaminhado para uma unidade de saúde. “Foi assim até o fim de 2020, quando não tínhamos mais nenhum caso na comunidade há quase três meses”, lembrou. 

Em janeiro, os casos começaram a reaparecer e aumentaram em um ritmo tão intenso que se tornou impossível visitar todos os pacientes. Os sintomas também eram outros e mais graves: em duas semanas de janeiro, os casos de baixa saturação, que demandam uso de oxigênio, já correspondiam ao dobro de todos os pacientes que precisaram de suporte respiratório no Parque das Tribos em todo o ano de 2020. 

Fora da comunidade, Manaus estava com os sistemas de saúde público e privado colapsados, taxa de ocupação acima de 100% nas unidades de saúde públicas e fila de espera por leitos. No interior do estado, pessoas morriam sem assistência. Foi quando surgiu a ideia de ampliar a campanha para a doação de medicamentos, oxigênio medicinal e a construção de um hospital de campanha indígena no Parque das Tribos, tudo feito por voluntários. 

“O terreno foi cedido pela igreja e já tinha uma cobertura, mas molhava muito. Precisávamos de lona e estrutura para o redário [que substitui as macas], remédios, oxigênio e EPIs [equipamentos de proteção individual] para os profissionais voluntários. Fomos para as redes sociais e, através dessa campanha, conseguimos tudo que precisávamos para começar os atendimentos. Começamos a atender dia 8 de janeiro e, em um mês, fizemos mais de 300 atendimentos, o que nos mostrou que havia uma demanda represada. Atendemos indígenas de outras comunidades e até não-indígenas de outros bairros, que não encontraram vaga em nenhum hospital da cidade”, destaca a técnica de enfermagem.

A iniciativa e o trabalho coletivo em prol do hospital, para Vanda Ortega, fazem parte da rotina de luta dos indígenas, acostumados a terem que, eles mesmos, brigar por seus direitos. Antes da pandemia, essa falta de assistência já fazia parte da rotina dos indígenas urbanos, principalmente das mulheres indígenas, que têm na falta de acolhimento um dos maiores obstáculos no acesso à saúde, aponta a técnica de enfermagem. 

No Brasil, são 896,9 mil indígenas, sendo 36% em áreas urbanas. O Amazonas é o estado com a maior população indígena no país, sendo que na capital são 168.680 indígenas, segundo Censo do IBGE de 2010. De acordo com organizações indígenas da região, o número atualmente já passa de 200 mil. A taxa de letalidade de indígenas em Manaus (7,3)  é maior do que a taxa geral na capital (5,3), segundo a Fundação de Vigilância em Saúde – Governo do Estado do Amazonas, atualizada em 22 de março. A taxa de letalidade é a proporção entre pessoas contaminadas e o número de mortes. A taxa da capital é a segunda maior do estado, só ficando atrás do município de Maués, que tem taxa de letalidade de 8,1, o que mostra como a pandemia afetou de forma diferente a população indígena.

Segundo dados da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), o Amazonas é o estado com mais registros e óbitos de indígenas por Covid-19 dos nove estados da Amazônia Legal. Foram confirmados 9.029 casos da doença e 304 óbitos, atingindo 38 povos do estado. Os dados contabilizados até 22 de março revelam que o Amazonas concentra mais de 1 ⁄ 3 das mortes de indígenas da Amazônia Legal e inclui os indígenas que vivem em terras demarcadas e os que vivem nas cidades. Por isso, os dados divergem das informações da  Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e do Governo Federal, que só contabilizam os casos entre indígenas aldeados. 

Parentes foram enterrados em valas, não pudemos nos despedir. As pessoas que perderam seus entes queridos não tiveram o choro, o canto. Há um ritual para essa passagem, e não ter isso significa que a gente não consegue liberar esse corpo para outras galáxias. Não tem essa passagem porque não teve o lamento daquela morte. Isso é uma tradição que em algumas comunidades dura dias, e que a pandemia impediu que acontecesse.

conta Vanda Ortega.

“Se para nós que vivemos na cidade é doloroso, imagina para os povos que têm isso ainda muito preservado, como os yanomami, que foram impedidos de enterrar seus bebês. É cruel demais. Não estamos preparados para uma terceira onda disso”, completa Ortega. 

Para Marcivana Sateré Mawé, da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e do Entorno (Copime), a letalidade de indígenas na capital do Amazonas só não foi maior porque já existia, antes da pandemia, um processo de organização dos indígenas urbanos. 

“O município tem algumas ações voltadas para indígenas na cidade, mas na saúde ainda falta acesso a atendimento de alta complexidade. Dentro do hospital de campanha de Manaus, que foi criado pelo governo, tinha uma ala destinada à população indígena, mas na verdade essa ala não garantia o atendimento e muitos indígenas não conseguiram acesso. O SUS não tem sido suficiente para atender a população indígena urbana e não temos nenhum apoio da Sesai”, alerta. As pautas da Copime são: direito à saúde e educação diferenciada, economia indígena e direito à terra.

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Dificuldade no acesso à saúde  para além da Covid

Hipertensa e portadora de diabetes há 15 anos, a líder indígena Lutana Ribeiro, 46, da etnia kokama, precisou interromper o acompanhamento médico em 2020, por conta da pandemia. Ela contou que, pela primeira vez em mais de dez anos, não conseguiu fazer os exames necessários para monitorar a diabetes, a hipertensão, o colesterol e nem mesmo o preventivo contra o câncer.  

“O médico pediu que eu me prevenisse porque sou do grupo de risco, mas, por mais que eu soubesse que os exames são importantes, meu medo era de me contaminar na fila, até porque a gente sabe que para essas gripes e vírus o indígena tem mais predisposição. Então me cuidei muito com chá caseiro, usando as plantas da floresta e nosso conhecimento tradicional para aumentar a imunidade. Foi assim que todo mundo aqui se cuidou”, contou Lutana, uma das lideranças da comunidade indígena Parque das Tribos. 

Ao contrário dos indígenas que vivem em terras demarcadas, que contam com a assistência e atendimento da Sesai, os indígenas urbanos são atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e são de responsabilidade dos municípios e estados.  A  distância da unidade de saúde, superlotação no transporte público e a transformação do perfil de algumas unidades de média complexidade para atendimento exclusivo a pacientes com sintomas do novo coronavírus, afunilando o atendimento já precário da saúde básica para pacientes não-Covid, também contribuíram para afastar a família de Lutana dos médicos durante a pandemia. 

Segundo Lutana, líder indígena da etnia kokama que não fez acompanhamento das doenças crônicas na pandemia, só depois da construção do hospital de campanha do Parque das Tribos, a assistência para os indígenas com o novo coronavírus começou a melhorar. A reportagem entrou em contato com a Secretária Municipal de Saúde de Manaus, mas não obteve retorno. 

Indígenas urbanos excluídos do plano de vacinação

O Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus (Covid-19) em Povos Indígenas, o Plano Nacional de Vacinação contra Covid-19  e a Lei 14.021/2020, que dispõem sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas, excluem os indígenas urbanos. 

Por isso, o Supremo Tribunal Federal determinou, no último dia 16, que seja assegurada prioridade na vacinação contra a covid-19 dos povos indígenas de terras não homologadas e urbanos sem acesso ao SUS, em condições de igualdade com os demais povos indígenas. Segundo o ministro Luís Roberto Barroso, “não há providência mais essencial e inerente” do que a vacinação.

“Os indígenas urbanos nunca foram os grupos prioritários das campanhas de vacinação até mesmo antes da pandemia. Essa discussão e disputa já vêm de muito tempo. Estamos há um ano lutando pelo acesso à vacinação da Covid-19 para indígenas na cidade e até agora não avançou nada. Mesmo com a decisão do Supremo, não houve nenhum movimento do governo para garantir isso. É lamentável. Não estamos travando essa disputa só por Manaus, mas para todo o estado e o país”, disse Marcivana Sateré Mawé. 

Alex Pazuello / Secom com arte gráfica da Gênero e Número
Parque das Tribos, maior comunidade indígena em Manaus, recebeu vacinação.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) critica, em nota, a redução da vacinação prioritária apenas ao que se definiu arbitrariamente como “indígenas aldeados”, que leva à exclusão dos indígenas que vivem nas cidades. “Nessa situação grave de pandemia sanitária, excluir grupos indígenas do acesso à política de saúde pública é um contrassenso político e humanitário. É importante salientar que vários grupos indígenas que estão nos centros urbanos têm como um dos motivos para estarem nestes locais a expulsão dos seus territórios por invasores, portanto, um ato de violência que não justifica sua exclusão. O fato do indígena estar fora da aldeia não faz com que ele deixe de ser indígena.”

Das mulheres indígenas entrevistadas para essa reportagem, apenas Vanda Ortega foi imunizada, mas não por ser indígena, e sim por ser profissional da saúde. Enquanto na cidade, os indígenas esperam que os municípios e estados cumpram a decisão do Supremo, nas terras demarcadas, indígenas aldeados que estão entre os grupos prioritários ainda sofrem dificuldades para o acesso à vacina. Apenas 34,8% dos indígenas aldeados da Amazônia Legal foram imunizados, sendo que no Amazonas esse número é um pouco maior, 42%, segundo dados da Sesai. 

Além disso, a pesquisa “Vacinação contra Covid-19 é mais lenta para indígenas da Amazônia”, da Open Knowledge, divulgada na terça-feira, dia 23, revela que apenas um terço dos indígenas vacinados estão na região (apesar de 60% dessa população viver ali) e que  a velocidade de aplicação nos indígenas é menor que em outros grupos; entre os profissionais de saúde, por exemplo, é 13 vezes maior; 67% já receberam a primeira dose contra 55% dos indígenas. A pesquisa mostra também a ausência de registros de raça/cor em unidades da federação e alerta para o fato de que o não detalhamento das etnias indígenas de pessoas vacinadas impossibilita o acompanhamento efetivo da imunização.

Para Ortega, técnica de enfermagem que se formou em 2012 mas só conseguiu entrar no mercado de trabalho em 2018, a inclusão dos profissionais de saúde indígenas no sistema de saúde pode ajudar a transformar esse cenário, além de criar oportunidades para essa população nos centros urbanos. “Nós temos enfermeiros, médicos, técnicos, assistentes sociais, psicólogos que conhecem e respeitam nossa cultura, que podem dar esse acolhimento que falta para o paciente indígena, especialmente as mulheres gestantes, sem esquecer do espaço importante que nossa cultura ocupa em nosso cotidiano. Precisamos que essas pessoas que fazem parte de nossas vidas estejam presente nesses espaços”, finaliza.

“Eu pensava que estava numa guerra”

Minha equipe toda está bastante desgastada, até porque antes a gente trabalhava dois [dias de descanso] por um [plantão] e hoje, por causa da alta demanda e da falta de profissionais, é um por um. Vários profissionais adoeceram, mas continuaram trabalhando mesmo assim, seja porque sabiam que a equipe precisava deles, seja porque precisavam do dinheiro, pois muitos são de cooperativas: para receber precisam trabalhar. E alguns deles até foram a óbito, perdemos colegas.

Em outubro de 2019 estava mergulhada em uma depressão profunda, você nem me reconhecia. Em janeiro de 2020 consegui um trabalho e comecei a retomar minha vida. Mas dois meses depois veio a pandemia e isso me afetou de tal forma que eu não podia mais ver as pessoas morrendo nos hospitais e eu, enfermeira intensivista, em casa. Foi quando surgiu a oportunidade de atuar pelo programa emergencial do Ministério da Saúde e eu entrei. Ainda faço tratamento para depressão e posso estar cansada e tudo, mas quando eu chego lá e vejo que tem gente que precisa de mim, aquilo é como se fosse um remédio, uma adrenalina que eu não preciso nem de medicação. Eu esqueço meus problemas, meu cansaço e vou cuidar dos problemas dos pacientes, que são muito maiores.

Em 31 de dezembro eu pensava que estava numa guerra. Entrei na sala de emergência e ali eu chorei. Eu não tinha como ajudar aquelas pessoas, muita gente nos corredores, na ala de saída, em todos os espaços, tinha pessoas internadas em cadeiras, e a gente querendo acomodar todo mundo de alguma forma. Hoje cada enfermaria tem oito camas, mas no pico chegamos a colocar dez, algumas alas tinham 46 pacientes, e eu trabalhava em cinco alas. Era cansativo, mas o que mais me marcou foi a falta de oxigênio. Teve momentos em que nos diziam: ‘controlem o oxigênio porque só tem esse cilindro. Acabou, acabou’. E aquele desespero entre os colegas, eu tentando manter a calma para não desestruturar minha equipe e os pacientes. Foi a cena mais impactante que vi na vida.

As pessoas não veem o outro lado da moeda. Lembro de um dia que estava no plantão e chamei uma técnica, que estava sentada num canto durante o plantão dela. Aí uma colega se apresentou para cobrir a escala dela, porque ela tinha perdido o pai e a mãe no dia anterior e estava abatida. Ela perdeu o pai e a mãe para Covid e foi trabalhar porque precisava, mas que condição psicológica ela tem? E ainda sofre pressão dos superiores, dos pacientes, familiares…

Ao longo desse um ano de pandemia não houve valorização dos profissionais de saúde. Não resolveram os problemas dos hospitais nem da falta de médicos. Os técnicos não têm cama para descanso, brigam por colchão no chão para dormir e muitos dormem direto no chão. Não houve valorização e nem investimento efetivo e permanente na saúde, para que o caos da primeira onda não se repetisse. Entre a primeira e a segunda onda pararam os investimentos, até fecharam leitos. Tivemos a segunda onda em janeiro e agora, de novo, começam a fechar leitos. Aí vem a terceira e o que vai acontecer? A mesma coisa. Isso tudo é revoltante para quem trabalha arriscando a vida na linha de frente todos os dias, com medo de pegar o vírus e transmitir para sua família.

Eu sempre falo que, quando o paciente fica doente, uma família inteira adoece junto. E, quando ele agrava, a equipe médica sofre junto com ele e a família. Também é muito impactante para a gente ver aquele paciente com quem temos um contato diário, acompanhando cada melhora, ver um quadro se agravar. Com a pandemia, comecei a olhar para as pequenas coisas da vida, como o oxigênio ou a presença de alguém que a gente ama. Por isso, procuro ser essa pessoa para os pacientes que estão em seus últimos momentos, porque, claro, tem casos em que a gente não pode fazer mais nada, a não ser dar a ele uma morfina para que ele não sinta dor, e estar ao lado deles. Semana retrasada um paciente faleceu e ele estava sozinho, porque não podia receber visitas. Nos últimos momentos eu segurei na mão dele, fiquei passando a mão na cabeça dele e dizendo que estava tudo bem, que ele poderia fazer a passagem, porque até a palavra morte a gente evita, ela machuca muito nessa hora. Me emocionei e, nessas horas, os outros pacientes veem: ‘nossa, eles não são máquinas’.”

Glenda Soares, enfermeira intensivista do HPS 28 de Agosto, um dos maiores hospitais de pronto-socorro de Manaus, em depoimento à repórter Monica Prestes

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