Modelo que alia segurança alimentar, renda e respeito ao ambiente é adotado em diversas categorias fundiárias de uso comunitário no Acre. Práticas agroecológicas são alternativas às monoculturas que promovem desmatamento e queimadas nas florestas do estado.

Por Leandro Chaves, de Rio Branco (AC)

Vem da área protegida mais queimada no Acre um exemplo de sustentabilidade para toda a Amazônia. Localizado no quilômetro 75 da BR-317, no município de Brasiléia, dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes, o Seringal Etelve não vê fogo em suas atividades produtivas há mais de 15 anos. Seu proprietário, Edimar Paulino Ferreira, mora no local desde antes da criação da Resex, em 1990, e tira da própria terra o sustento da família sem degradar o ambiente.

Dimas, como é conhecido, é adepto da agroecologia, um modelo de agricultura que alia segurança alimentar, renda e respeito à natureza. Lá, ele planta milho, feijão, mandioca e banana por meio de sistemas rotativos.

Após a colheita, os roçados ficam de um a dois anos “descansando” para serem novamente utilizados. Nesse intervalo, outras áreas de terra já “descansadas” recebem o plantio e depois passam pelo mesmo processo, mantendo a continuidade da produção.

arquivo pessoal.
arquivo pessoal.

Filha de Dimas, a servidora pública Leila da Silva Ferreira nasceu e cresceu no Seringal Etelve. Ela explica que o pai sempre foi contrário ao uso do fogo nos cerca de 100 hectares de terra pertencentes à família.

As práticas adotadas por outros proprietários de terra e comunidades tradicionais da região, incluem a queima controlada de vegetação desbastada, conhecida como coivara, além da queima para limpeza de pasto e outras finalidades que, mal conduzidas, podem gerar incêndios florestais de grandes proporções. 

“Ele diz que precisamos ter consciência ambiental e pensar nas gerações futuras. Além disso, é um grande incentivador da agroecologia para outras propriedades rurais da reserva, mostrando que é possível viver da terra e da floresta sem agredi-las”, diz Leila, que hoje mora na capital, Rio Branco, e visita a terra natal com frequência.

A produção da família, que vive na região onde o próprio Chico Mendes cunhou o termo ‘florestania’, vai além do que podem consumir. Os excedentes de milho, farinha e banana são vendidos para complementar a renda, que é incrementada ainda pela comercialização da borracha extraída das seringueiras. A coleta de mel a partir da criação de abelhas também faz parte da rotina produtiva no seringal.

Boa parte da produção no local se dá em forma de sistemas agroflorestais, com plantio de espécies típicas de agricultura combinadas com a floresta. A agrofloresta tem na recuperação de áreas degradadas e na reutilização da terra dois de seus pilares.

“Meu pai sempre atuou em associações e participou de atividades que proporcionaram o conhecimento adquirido e que há anos é praticado pela nossa família”, completa Leila.

Arquivo pessoal.
Arquivo pessoal.

Nos últimos anos, Dimas tem apostado ainda no turismo ambiental. Sua propriedade marca o início da Trilha Chico Mendes, que corta outros nove seringais da região. O percurso tem 90 quilômetros de extensão e é um atrativo para mochileiros e adeptos do trekking – caminhadas de longa duração na natureza, incentivando o turismo comunitário, outra potência dos arranjos de desenvolvimento sustentável da Amazônia. 

Chamas de esperança

As práticas sustentáveis de Dimas são ‘chamas’ de esperança em meio à degradação da Reserva Extrativista Chico Mendes. O território de quase 10 mil km² sofre há anos com desmatamento, queimadas, invasões e avanço da pecuária.

Em 2020, segundo o satélite S-NPP/VIIRS monitorado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foram 4.360 focos de incêndio no local, que concentrou 71,1% das queimadas entre as dez unidades de conservação federais existentes no Acre. O número é 31,7% superior ao registrado no ano passado.

Em área queimada, a Resex contribuiu com 27.763 hectares atingidos pelo fogo, o que equivale a 63% do total em todas as unidades de conservação no estado, entre reservas, florestas e parques estaduais e nacionais, áreas de proteção ambiental e áreas de relevante interesse ecológico.

A agroecologia e a agroflorestania têm se consolidado como soluções viáveis para reversão do cenário de degradação que avança em estados antes preservados, como Acre e Amazonas. Os modelos são difundidos em diversas categorias fundiárias por entidades como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), que atua junto a organizações locais para promover a produção sustentável de alimentos saudáveis. Eduardo Borges, articulador da ANA no Acre, explica que o modelo vai muito além da geração de renda e do respeito ao meio ambiente.

“A agroecologia vem com uma proposta de equilíbrio social, ambiental e econômico. Defende, por exemplo, o empoderamento das mulheres, a reforma agrária, o respeito às culturas das populações tradicionais, o não uso de agrotóxicos, uma alternativa às monoculturas, entre outros pontos”, comenta Borges.

A convivência entre espécies arbóreas e de agricultura garante às famílias diversidade na produção de legumes, frutas e verduras, além da manutenção de áreas verdes, o que possibilita atividade extrativista.

Como forma de popularizar o modelo agroecológico e fomentar a adoção de políticas públicas municipais de incentivo, a ANA realizou este ano o levantamento ‘Municípios Agroecológicos’, que identificou mais de 700 práticas municipais de apoio ao setor, com destaque para as desenvolvidas em Rio Branco. Em 1993, a prefeitura da capital destinou pequenos lotes para famílias que migraram dos seringais e ficaram sem ocupação, criando os Polos Agroflorestais e formando um cinturão verde na cidade, o que aumentou a oferta e diversidade de alimentos na região.

“Plante o máximo que puder”

A 500 quilômetros da capital acriana fica o município isolado de Marechal Thaumaturgo, cujo acesso só é possível pelos rios e ar. As matas da região são o lar do povo Ashaninka, originário do Peru, porém também com aldeias no lado brasileiro da fronteira. Demarcada em 1992, a Terra Indígena Kampa do Rio Amônea, onde vivem, é hoje um dos maiores laboratórios sustentáveis da Amazônia.

Desde 1989 eles desenvolvem, no lado acriano, ações que são espelho para outros povos tradicionais e para comunidades não indígenas. De lá pra cá, 1 milhão de árvores frutíferas de mais de 150 espécies e de madeira de lei foram plantadas na aldeia Apiwtxa, onde antes ficava uma grande área de pasto.

Atualmente, de acordo com um dos líderes espirituais e políticos dos Ashaninka, Benki Piyãko, não há mais o que reflorestar na aldeia, apenas manter. Nesse tempo, também foram desenvolvidos projetos-modelo de piscicultura em açudes e de manejo de espécies de animais como os quelônios, proporcionando segurança alimentar para o povo.

Arquivo pessoal.
Arquivo pessoal.

Além de terem transformado a terra indígena em uma referência de sustentabilidade, os Ashaninka adquiriram uma área na cidade para difundir o conhecimento acumulado para a população da região e das unidades de conservação do entorno, que inclui a Reserva Extrativista do Alto Juruá, ao sul, e o Parque Nacional da Serra do Divisor, ao norte.

Nascia, assim, em 2007, o Centro de Formação Yorenka Ãtame (Saber da Floresta), que teve Benki Piyãko como uma das principais lideranças. O espaço é utilizado para intercâmbio e difusão das práticas de manejo sustentável dos recursos naturais.

“O Yorenka é fruto da rica experiência do nosso povo com a sustentabilidade. É a continuação, fortalecimento e ampliação da longa luta para a proteção do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. Com ele, quisemos mostrar que existem outras opções de produzir sem degradar”, explica Benki.

Movido pela filosofia do “plante o máximo que puder”, Benki ajudou a levantar quase 2 milhões de árvores no território e entorno, em um trabalho em parceria com os ribeirinhos dos rios que correm pela região, a população da cidade e intercambistas.

Em 2020, Piyãko foi além e criou o Instituto Yorenka Tasorentsi, “um projeto particular, porém alinhado com tudo o que a comunidade fez e faz”. Ele adquiriu na zona rural uma área de mais de mil hectares onde antes era pasto e deu início ao reflorestamento com sistemas agroflorestais. Lá, ele planta banana, mandioca, milho, inhame, arroz, cana, abóbora, abacaxi, buriti, graviola, cupuaçu e outras espécies essenciais para a soberania alimentar das comunidades.

Arquivo pessoal
Arquivo pessoal.

A meta de Benki para o novo projeto é ainda mais ambiciosa: plantar 10 milhões de árvores em toda Marechal Thaumaturgo e implantar 300 açudes para piscicultura na região. Além disso, quer transformar o município em um polo de produção rural capaz de abastecer a população da cidade e do entorno. E tudo isso sem o uso do fogo.

“Não queimamos nada, desde que começamos a trabalhar com agrofloresta. Nosso foco é reutilizar terra degradada por meio de sistemas rotativos e do uso de mucuna [uma espécie leguminosa nativa de alto potencial econômico] para repor nutrientes na terra e assim ajudar a recuperá-la para o plantio”.


Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.

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