Em 2020, o estado responde por mais de 46% do desmatamento e 41% dos focos de calor na Amazônia. Estão no Pará os municípios e unidades de conservação mais queimados e as terras indígenas mais desmatadas. O desmatamento e o fogo têm relação sequencial e vêm sendo usados para zonear o território e expandir áreas de produção.
Por Guilherme Guerreiro Neto, de Belém (PA)
O Pará completa 15 anos consecutivos como o estado que lidera o desmatamento na Amazônia, de acordo com o Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes). O estado também ocupa o topo do ranking em toda a série histórica de queimadas, desde 2002. São pelo menos 19 anos com a maior quantidade de focos de calor da região, segundo o satélite AQUA-tarde, utilizado como referência pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
No menu superior à direita, selecione as camadas de áreas protegidas ou municípios e clique sobre as áreas no mapa para ver janela de informações com a quantidade de focos de calor nas últimas 24h, última semana e em 2020 todo em cada uma das áreas.Quase metade do desmatamento na Amazônia Legal, entre agosto de 2019 e julho de 2020, vem do Pará. São 5.192 km2 desmatados, 46.8% da estimativa para toda a região. Enquanto a perda de floresta na Amazônia brasileira aumentou 9.5%, a área desmatada só no estado cresceu 24.4%, em relação a 2018/2019. O anúncio da taxa anual preliminar de desmatamento foi feito esta semana, pelo INPE, com base nos dados gerados pelo Prodes. A taxa consolidada será apresentada no primeiro semestre do ano que vem.
“Desde a década de 1970, quando foram abertas estradas como a Transamazônica, o Pará sempre tem uma fronteira do desmatamento. Pela dimensão e pela proximidade dessas áreas de infra-estrutura, o estado ocupa lugar de destaque. Tem algumas regiões que preocupam: a região da BR-163, que é um foco muito grande de desmatamento, ocupação ilegal, ocupação de áreas protegidas; a região da Terra do Meio, perto de Belo Monte, e a região de São Félix do Xingu, que também são focos bastante expressivos de desmatamento”, pontua Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).
No caso das queimadas, de janeiro a novembro deste ano, 41,1% dos focos de calor registrados via satélite no bioma Amazônia, pelo sensor VIIRS/S-NPP, foram no Pará.
Os dois municípios (Altamira e São Félix do Xingu) e as duas unidades de conservação (Área de Proteção Ambiental Triunfo do Xingu e Floresta Nacional do Jamanxim) que mais queimaram no bioma ficam no estado. Em 2019, também foi no Pará que ocorreu o chamado ‘dia do fogo’, quando ruralistas fizeram uma ação coordenada e criminosa de atear fogo à floresta em Novo Progresso, região da BR-163.
“A gente tem que pensar para além dos dados brutos de quantos hectares e de quantas toneladas de carbono estão sendo emitidas na atmosfera”, considera a professora Marcela Vecchione, do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido, vinculado ao Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (PPGDSTU/NAEA/UFPA), que mantém um projeto de pesquisa sobre a relação entre desmatamento, queimadas, destinação de terras e reprodução de desigualdades sociais.
“O fogo, quando se espalha da maneira violenta como está se espalhando, acaba inviabilizando a vida nas coisas mais sutis, mas, ao mesmo tempo, mais fundamentais, como a soberania alimentar, a água de qualidade, a terra boa para plantar. As pessoas são despossuídas das suas formas de habitar e de viver no território. Por isso que, quando tudo queima, a gente tem que olhar quem está queimando. São muitas vidas que ficam inviabilizadas. No caso do Pará, os exemplos bem claros desse processo são as terras indígenas”, completa Vecchione.
Invasão e desmatamento em TIs no Xingu
As seis terras indígenas (TIs) mais desmatadas em 2020 na Amazônia Legal, de acordo com os dados do Prodes, estão no Pará. A primeira delas, com 72,44 km2 de floresta suprimida, é a TI Cachoeira Seca, do povo Arara. “É muita pressão dos madeireiros. Garimpo ilegal e também grileiros de terra. Com a chegada de Belo Monte, ficou pior, aumentou mais. A gente tá procurando autoridades pra ao menos diminuir essa retirada de madeira. Por causa disso, eu tô sendo ameaçado”, conta o cacique Mobu Odo, Arara da aldeia Iriri.
A TI Apiterewa, do povo Parakanã, é a segunda com mais área desmatada, 63,27 km2. No último domingo, a Associação Indígena Tato’a, que representa os Parakanã, lançou manifestação de repúdio contra tentativa do governo federal de forçar uma conciliação entre o povo e os invasores, com intenção de reduzir o território tradicional. O documento denuncia a realização de reunião para pressionar lideranças, numa fazenda irregular dentro da TI, com representantes dos invasores, da prefeitura de São Félix do Xingu e do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
“Não esquecemos nunca que o nosso território já foi reduzido no passado com essa mesma conversa de agora do Governo, que esse seria o caminho para trazer paz para o nosso povo. A terra foi reduzida, antes de sua homologação, e a questão da invasão do nosso território não foi resolvida. Ao contrário, mais invasores entraram no nosso território e hoje a terra indígena Apyterewa está como uma das mais desmatadas do Brasil pela atuação de fazendeiros, garimpeiros, madeireiros e colonos. Esse é o jeito do toria [não indígenas], sempre querem mais, destroem tudo e nunca pensam no futuro”, diz o documento.
A retirada de ocupantes não indígenas da TI Apyterewa, até hoje por ser cumprida, assim como a homologação da TI Cachoeira Seca, publicada em 2016, eram condicionantes para o licenciamento da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu. Marcela Vecchione considera que empreendimentos de infra-estrutura tendem a estimular o desmatamento, o fogo e o processo de captura da terra. Os territórios dos Parakanã e dos Arara, além dos altos índices de desmatamento, estão entre as terras indígenas com mais queimadas no Pará.
Essa lógica de destruição e especulação, segundo a professora da UFPA, foi intensificada na Amazônia com o governo Jair Bolsonaro. “Nesse governo agora, que desde o início deixou bem claro que ia afrouxar as regras ambientais, que ia ter menos recursos orçamentários para o exercício da fiscalização e do monitoramento ambiental in loco, que ia reconhecer terras ilegalmente ocupadas no passado como terras legalizadas – por serem terras que contribuem para a economia do país -, tudo isso foi aumentando loucamente”, avalia.
Para a pesquisadora Ane Alencar, a nova alta na taxa oficial de desmatamento indica desgoverno e descontrole na forma como vem se dando a ocupação da Amazônia. “Num ambiente de desgovernança muito grande, tem aumento dos conflitos, aumento dos casos de doença respiratória – porque vão ter mais queimadas -, mudança no microclima da região – por conta do desmatamento extenso em algumas áreas da Amazônia -, poluição de rios. São vários pontos que impactam diretamente nossa vida”, explica a diretora do Ipam.
Desmate e fogo para expandir terras
Há uma relação, e até um caráter sequencial, entre as práticas de desmatamento e queimadas.
“O desmatamento é a origem do fogo na Amazônia, porque o fogo é a última etapa no processo de desmatamento. Um produtor que vai desmatar uma área, ele desmata, espera secar e, quando seca, vem o fogo para liquidar aquela biomassa que foi derrubada. Mais tarde, quando o pasto for implementado nessa área, possivelmente esse pasto também vai ser limpo com fogo”, explica Ane Alencar.
“O fogo na Amazônia tem origem produtiva, seja para converter a floresta em área de uso – pasto, agricultura -, seja para manejar uma área de pastagem. Por isso, ele está totalmente associado ao desmatamento. Uma vez que o fogo de desmatamento ou o fogo em área de pastagem escapa para a mata, aí gera os incêndios florestais, que envolvem uma outra relação”, complementa.
Tanto o desmatamento quanto as queimadas, para Marcela Vecchione, têm sido usados na região como estratégias de ocupação e zoneamento de territórios, para abrir novas áreas.
“O pessoal desmata e taca fogo já pensando em como ocupar e regularizar o território depois, já pensando em fazer o registro ambiental da área, o CAR [Cadastro Ambiental Rural]. Desde um pouco antes e consolidado depois de 2012, com o Código Florestal, isso vem sendo usado como forma de lidar com o limiar entre o legal e o ilegal e ir expandindo, regularizando e legitimando ações”, aponta a professora.
Vecchione indica diferenças entre o uso tradicional do fogo e o uso pelo agronegócio: “O fogo, que pros povos originários era e é uma estratégia de conservação da biodiversidade – de preservar para ficar [viver na área] -, para o agronegócio, é uma estratégia de matar a biodiversidade com as monoculturas – não para ficar, mas para expandir. É uma forma de ocupação e zoneamento para expansão, não ocupação e zoneamento para viver. Aí o fogo acaba assumindo essa dimensão destrutiva, sendo a linha de frente do processo de ocupação pelo agronegócio e de uma posterior legitimação do reconhecimento fundiário.”
O que dizem os governos?
Questionada sobre a recorrência e previsibilidade do ciclo de desmatamento e queimadas no Pará e por que não há um combate efetivo para impedir a destruição da floresta, a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) do estado informou, em nota, que mantém operações constantes de combate a crimes ambientais, como a Amazônia Viva, que em novembro teria reduzido o desmatamento em 60%, comparado ao mesmo mês do ano passado.
A Semas ressaltou ainda que o Pará tem 65% do território composto por áreas federais, onde ações de combate a crimes ambientais são responsabilidade do governo federal.
O Ministério da Defesa, também em nota, lembrou que, desde maio, o governo federal autorizou o emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem Ambiental na Amazônia, com a Operação Verde Brasil 2. Segundo o Ministério, até o momento foram aplicados 3,5 mil termos de infração, resultando em multas de R$ 1,79 bilhão, dos quais R$ 443,8 milhões foram de multas aplicadas no Pará. Dos mais de 178 mil metros cúbicos de madeira ilegal apreendida, 13,5 mil teriam sido no estado. Dos 104 mil hectares embargados, 60 mil hectares estariam no Pará.
Os militares, diz a nota, atuaram no combate a mais de 400 focos de incêndio no estado, orientados por informações de meteorologistas e especialistas em sensoriamento remoto que analisam os focos de calor e apontam áreas prioritárias para as equipes de campo.
O Ministério informou ainda que o valor total da Operação Verde Brasil 2 é de R$ 410 milhões, dos quais já foram investidos R$ 230 milhões.
Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.
Veja também:
Degradação e ilegalidade acompanham rastro da soja em rodovia no oeste do Pará
Fogo, grileiros e gado ameaçam terra de indígenas isolados que liderou desmatamento
Pecuária torna área protegida no Xingu campeã das queimadas