Pesquisador da Fiocruz, Christovam Barcellos detalha cenário de desassistência que maior parte dos municípios da região passa durante esta temporadas de queimadas. A exposição à fumaça gerada pelas queimadas pode gerar doenças respiratórias, processos inflamatórios e agravar os casos de Covid-19.
Por Izabel Santos, de Manaus (AM)
A associação de queimadas e Covid-19 deve agravar, ainda mais, o impacto da pandemia em hospitais já sobrecarregados da Amazônia Legal e do Pantanal. Isso pode acontecer porque a queima de biomassa da floresta produz material particulado fino que, assim como o novo coronavírus, tem potencial para desencadear processos inflamatórios no organismo de pessoas expostas à fumaça. O aumento do número de internações pode chegar a 30% entre crianças que vivem em áreas afetadas pelo fogo. A previsão é da pesquisa intitulada “Covid-19 e queimadas na Amazônia Legal e no Pantanal: aspectos cumulativos e vulnerabilidades”, produzida pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
“A Covid-19 complica bastante as coisas, pois pode dar o azar de uma pessoa ter a doença e ficar exposta à fumaça. Isso vai agravar o estado de saúde do paciente. Além do mais, pode provocar uma confusão de diagnóstico, pois os sintomas de doenças respiratórias comuns e do novo coronavírus são muito parecidos. Para piorar, o Brasil faz poucos testes para detecção de Covid-19”, alerta o especialista em saúde pública Christovam Barcellos, que é vice-presidente do Icict e coordenou a equipe que realizou a pesquisa.
Geógrafo formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Christovam se dedica há 35 anos à pesquisa sobre o impacto das deficiências do sistema de saúde pública em populações vulneráveis. Ao longo desse período, acumulou experiência como sanitarista das secretarias estaduais de saúde do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Hoje atua na área de geografia da saúde com ênfase em vigilância.
Em entrevista ao InfoAmazonia, ele aprofunda pontos da pesquisa realizada pela Fiocruz que aponta o arco do desmatamento (no sudeste do Pará e norte do Mato Grosso), a porção ocidental da Amazônia Legal e o bioma Pantanal como áreas críticas para a combinação de Covid-19 e queimadas.
“O sudeste do Pará e o norte do Mato Grosso (que engloba unidades de conservação ambiental e terras indígenas, incluindo o Parque do Xingu) têm elevado número de desmatamentos, além das queimadas. E a porção ocidental da Amazônia Legal apresenta alta incidência de casos e de óbitos por Covid-19 numa região que historicamente apresenta escassez de serviços de saúde e de estradas”, diz um trecho da nota técnica que resultou da pesquisa.
A preocupação da Fiocruz tem precedentes em estudos realizados em anos anteriores, antes da existência de Covid-19, pelo Observatório de Clima e Saúde. “Mesmo que não haja a infecção pelo vírus Sars-CoV-2, as pessoas afetadas pela fumaça derivada de queimadas poderão enfrentar sérios problemas de atendimento na rede de saúde, que já se encontra comprometida com a atenção aos doentes graves de Covid-19, principalmente em leitos hospitalares”, destaca.
Barcellos alerta que esse comprometimento da rede de saúde já está evidente.
“A combinação de queimadas e Covid-19 provoca uma competição por leitos. Os leitos que deveriam ser ocupados pelas doenças típicas dessa época do ano na Amazônia já estão lotados por casos de Covid-19. Isso é muito preocupante. É um alerta para o sistema de saúde, gestores, prefeitos e população, pois é muito perigoso o que pode acontecer”.
A conversa com o pesquisador faz parte da série Amazônia Sufocada, que vem mostrando o impacto das queimadas na região amazônica, uma das mais afetadas pelo novo coronavírus no Brasil.
Confira abaixo a entrevista completa.
Qual a relação de toxicidade entre a poluição provocada pelas queimadas e a Covid-19?
Christovam Barcellos – A fumaça das queimadas é muita mais tóxica do que a fumaça urbana, pois tem compostos orgânicos que provocam inflamação e diminuição da capacidade respiratória. A Covid-19 por si só já afeta a capacidade respiratória da pessoa contaminada, em um processo inflamatório que vai dos pulmões à corrente sanguínea. A interação entre a fumaça das queimadas e a Covid é perigosíssima, pois a pessoa que poderia ter um quadro leve de Covid-19 pode chegar a um estado grave. As duas provocam inflamações e um processo alérgico.
Qual é a parcela da população mais afetada na Amazônia?
CB – A população de Rondônia, Acre, norte do Mato Grosso e sul do Pará. Neste ano, os criminosos estão mais atrevidos. As queimadas estão indo além do, digamos, arco do desmatamento tradicional e estão durando mais do que o de costume. As rodovias Transamazônica, BR-163 e Belém-Brasília sofreram queimadas intensas.
É bom lembrar que a fumaça, mesmo de queimadas que ocorrem em locais distantes e com baixa densidade populacional, pode chegar a outras cidades levada pelo vento a centenas de quilômetros. A gente vê isso em Porto Velho (RO) e Cuiabá (MT). Até mesmo grupos indígenas que vivem em pontos mais isolados são atingidos.
As consequências da combinação de queimadas e Covid-19 podem se estender por um longo prazo na Amazônia?
CB – Sim, pois muitos casos de Covid-19 não têm uma recuperação plena imediata. Algumas pessoas vão conviver com as sequelas ou com problemas ocasionados pela doença durante muito tempo e até anos. Além disso, a Amazônia tem uma diversidade de vírus muito grande, além da Covid-19, temos outros vírus respiratórios, identificados e não identificados pela Ciência, circulando na região. É comum em determinada época do ano surgirem gripes sazonais, ninguém identifica o tipo de vírus e ficar por isso mesmo. Até agora, entre esses vírus, só tivemos os menos graves. Quando eles se manifestam, sabemos que é uma virose respiratória pelos sintomas. Mas e se surgir um outro vírus mais letal? Agora, nós precisamos de mais investimentos em pesquisa de saúde na Amazônia para identificar esses vírus.
O aparecimento de doenças respiratórias, mais as queimadas cada vez mais intensas e numerosas podem provocar um caos permanente no sistema de saúde na Amazônia?
CB – A Amazônia tem um problema permanente de dificuldade de acesso à saúde. Os leitos de hospital normalmente se concentram nas capitais ou cidades médias do interior. Há uma demanda de serviço de saúde e, infelizmente, o atendimento descentralizado que chegava às comunidades mais distantes teve uma perda muito grande com a extinção do programa Mais Médicos. A própria relação médico – habitante na região é a pior do Brasil, tem poucos profissionais para o tamanho da necessidade da população. E a Amazônia é um lugar que chamamos de caldo de cultura, qualquer alteração no sistema de vigilância de doenças, da malária, por exemplo, pode provocar um descontrole e elevação do número de casos. A malária vinha sendo controlada nos últimos anos, mas falhas nas compras de medicamentos e a demissão de agentes de saúde, elevaram o número de casos. A tuberculose também é outra doença ainda presente e sem a devida atenção na Amazônia.
Isso é um risco, porque há um equilíbrio muito delicado entre doenças que podem interagir. Uma pessoa que tenha tuberculose e pegue Covid-19 corre risco de morte. Mas isso pode acontecer também com pacientes de malária, febre amarela, dengue, que são doenças que, de alguma maneira, prejudicam e exigem muito do sistema imunológico.
Por que produzir esta nota técnica?
CB – O Brasil tem um sistema de saúde descentralizado, mas em muitos locais ele é precário. Existem municípios que não têm sanitaristas e médicos o suficiente, mas que precisam desse tipo de informação. A Fiocruz tem um papel de assessoria ao SUS para criar alertas e ajudar na tomada de decisões. Por isso, nessa pandemia intensificamos a atuação do Observatório de Clima e Saúde. Uma das principais recomendações desta nota é testar todas as pessoas com problemas respiratórios para garantir que elas tenham atendimento e tratamento adequados, pois essas medidas podem ajudar a salvar muita gente. Outra coisa é a atenção às crianças. Criou-se o mito de que em crianças não ocorrem casos graves de Covid-19, mas, nesse contexto, nós orientamos a também prestar atenção às crianças, pois elas geralmente têm mais problemas respiratórios do que adultos – como asma, bronquite e mais propensão à pneumonia.
Qual alerta essa nota técnica envia para a população e para as autoridades em saúde?
CB – Além de estarmos em uma pandemia provocada por uma doença sistêmica, o momento que a Amazônia e o Pantanal vivem é crítico. Estamos tendo recordes de queimadas e essa temporada está durando mais do que deveria. Com as chuvas, que já começaram em alguns locais, elas já deveriam ter acabado, mas não foi isso que aconteceu. Nós já fizemos estudos anteriores mostrando a correlação entre o aumento de doenças respiratórias e queimadas, toda vez aumenta muito o número desse tipo de doença em idosos e crianças. A Covid-19 complica bastante as coisas, pois pode dar o azar de uma pessoa ter a doença e estar respirando fumaça. Isso vai agravar o estado de saúde do paciente. Além disso, pode provocar uma confusão de diagnóstico, pois os sintomas são muito parecidos. E o Brasil testa pouco. Em todos os locais que tivermos essa concomitância de fatores, é necessário aumentar a testagem. Por fim, a combinação queimadas e Covid-19 provoca uma competição por leitos. Os leitos que deveriam ser ocupados pelas doenças típicas dessa época do ano já estão lotados por casos de Covid-19. Isso é muito preocupante. É um alerta para o sistema de saúde, gestores, prefeitos e população, pois é muito perigoso o que pode acontecer, uma sobrecarga do sistema de saúde ainda maior do que agora.
O que as autoridades podem fazer para minimizar a situação?
CB – Primeiro de tudo: evitar as queimadas e os desmatamentos, que são ilegais. Segundo, um reforço no que a gente chama de atenção primária em saúde. Terceiro, é muito importante fazer a triagem dos casos. Para saber se sintomas como insuficiência respiratória, tosse e sinais de inflamação são Covid-19 ou outro tipo de processo inflamatório pulmonar, precisa testar. Além disso tudo, é preciso atendimento ágil. Imagina uma pessoa em uma comunidade isolada que começa a apresentar sintomas de Covid-19? Ela precisa imediatamente ser levada para um hospital. Mas como fazer isso em locais de difícil acesso onde é preciso se deslocar por rios ou estradas precárias?
Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.
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