Na aldeia, quando as pessoas ficaram sabendo, as mulheres, que chamamos de “as curandeiras”, se reuniram para retirar as medicinas da floresta para fazer um banho para todos. São os remédios para afastar as doenças que estavam vindo, afastar os maus espíritos.
por Rita Sales Huni Kuin (texto e fotos), da aldeia Chico Curumim do alto rio Jordão/Acre.*
Sou do Acre, sou uma jovem indígena, artista, artesã e mãe. Atualmente estou trabalhando com minha irmã que também é artista, artesã, pois faz pintura em telas. Somos jovens mulheres que estamos trabalhando com a comunidade da aldeia, desenvolvendo trabalhos voluntários entre mulheres durante a pandemia, com a tecelagem, com a palha, reuniões entre mulheres em que, juntas, aprendemos a liderar. A minha irmã mais velha é liderança mulher da aldeia onde nasci, Chico Curumim. Lá, ela faz reuniões, desenvolve trabalhos com a comunidade em geral. Durante esse tempo de pandemia que passei na aldeia, quatro meses, fizemos alguns trabalhos conjuntos, sempre com uma nova forma de desenvolver esse trabalho, pois não faço só para mim ou para ela, mas para todas as mulheres. Antes disso, já fui candidata a vereadora do município de Jordão, onde consegui várias amizades, novos conhecimentos, apesar de não ter conseguido uma vaga na câmara. E também temos o grupo chamado Kayatibu, um grupo de jovens músicos onde realizamos projetos, desenvolvemos oficinas de música, vivências e vários tipos de trabalho.
Eu moro na cidade também, no Jordão, que é uma cidade pequena no interior do Acre. Foi, se não me engano, o ultimo município do Acre a ter casos de coronavírus. E assim que apareceu o primeiro caso, nós fomos para a aldeia. Na aldeia, quando as pessoas ficaram sabendo, as mulheres, que chamamos de “as curandeiras”, se reuniram para retirar as medicinas da floresta para fazer um banho para todos. São os remédios para afastar as doenças que estavam vindo, afastar os maus espíritos. Com essas medicinas, as pessoas podem até pegar o vírus, mas ele não é fatal. Eu peguei, minha filha de 6 meses pegou, meu companheiro pegou, minhã mãe e minhas irmãs pegaram. Quando isso aconteceu, vários pajés e curandeiras fizeram esses banhos, mas estou contando aqui sobre a minha aldeia. Creio que nas outras também fizeram o banho de medicinas, consagraram as medicinas, como nixi pae, que é a ayahuasca, e o rapé. Tudo isso foi usado junto com as rezas tradicionais como uma forma de proteção espiritual.
Todos tomaram banho com as várias medicinas que as curandeiras prepararam em um panelão. Foi organizado por uma liderança indígena mulher, Tamani, minha irmã. Ela comunicou uma reunião para que todas as mulheres pudessem participar da caminhada na floresta em busca das ervas medicinais para fazer o banho. Nós fomos caminhando pela floresta, entrando onde dava para entrar, até encontrar as medicinas. Aliás, na aldeia Chico Curumim, já tem alguns parques que algumas curandeiras estão organizando, para quando precisarem de banho ou defumar, já não ser necessário irem tão longe para buscar as medicinas. Após a caminhada na floresta, todas colheram as medicinas e trouxeram para casa. É um trabalho coletivo que fazemos. Na sequência, buscamos água no rio e colocamos em uma panela bem grande para ferver. E todos combinam um horário para tomar banho juntos, homens e mulheres. Usamos no máximo três dias para que todos da aldeia tomassem o banho preparado.
Essas medicinas chamam Kutã Rau, Kutã significa desviar. Rau é medicina. Temos que tomar o banho para que essas doenças não causem coisas piores. Antigamente, quando aconteciam doenças assim, para além do banho, meu povo também queimava as ervas para que a fumaça espantasse os espíritos maus, as doenças que estavam chegando. O Kutã Rau foi feito com essas mesmas medicinas. Teve participação desde as crianças pequenas até as mais velhas da aldeia. Poderia ser até uma organização coletiva junto com os homens, mas como os homens tem seus afazeres, preferimos fazer só com as mulheres. Porque nós, mulheres, nos entendemos. Os homens têm o trabalho deles, têm um novo ritmo e nós, mulheres, somos mais cautelosas, mais organizadas. Então achamos melhor fazer nosso próprio trabalho com as mulheres.
Foi importante a união nesse momento. A união entre as crianças, as mulheres, os homens, de fazer essa troca de saberes. É um momento onde as mais velhas ensinam as mais jovens, e as mais jovens estão aprendendo com as mais velhas, interagindo com elas. Nesse momento, nos reunimos mais ainda em prol da saúde da aldeia, da população indígena do município de Jordão, das aldeias vizinhas, das famílias. É um momento importante de trabalhar a energia positiva para os lugares que nós não conseguimos estar. Quando fazemos essa medicina e a defumação não estamos fazendo apenas para a aldeia Chico Curumim, mas pensando no mundo inteiro.
Fazemos o rezo e mandamos energia positiva para o mundo inteiro, para todas as terras indígenas, principalmente para os lugares mais afetados. Para que essa medicina possa chegar espiritualmente nesses lugares. É assim que acreditamos.
Afinal, foi um momento de pânico quando ficamos sabendo das coisas que estavam acontecendo pelo mundo, com as pessoas morrendo. Nós, na aldeia, tentando ter muito cuidado, mas de qualquer forma, sem perceber, o coronavírus chegou na gente. Depois disso, não foi mais surpresa para ninguém quando as pessoas começaram com os sintomas, já sabíamos o que era. Tivemos cuidado e acreditamos, é claro, na força da medicina do grande Yuxibu que seriam apenas os sintomas e depois começaria a melhorar. Graças ao grande Yuxibu só teve um caso de morte. Um senhor cuja morte não foi só por causa da pandemia, pois ele já tinha doenças mais graves. Porém, essas doenças se agravaram com o coronavírus.
A pandemia foi difícil na aldeia pela questão dos trabalhos desenvolvidos. Alguns trabalhos foram cancelados, mas os homens continuaram fazendo seus roçados, plantando os legumes, fazendo a pescaria, utilizando a medicina com muito cuidado para que o vírus não se espalhasse. Ficamos tranquilos porque na aldeia não temos comunicação via internet, não temos TV, não temos nenhum tipo de rede social que pudesse nos amedrontar mais do que estávamos. Estávamos tranquilos, somente ligados com a floresta, com a família, fazendo nossos rituais, nossa dança, tomando a medicina de ayahuasca, rapé, conversando com a comunidade a respeito dessa doença. E tudo isso foi bom, longe de todas essas novidades, longe de tudo da cidade.
De vez em quando aparecia um ou outro que descia para a cidade e trazia noticia. Passava por aqui e falava: “a noticia é tal coisa, a noticia é isso”. Ficávamos sabendo através deles que iam para a cidade. Isso acontecia porque o rio é um só, que liga o município de Jordão às diversas aldeias do Rio Jordão. O município de Jordão fica localizado entre o Rio Jordão e o Rio Tarauacá. O Rio Jordão tem 34 aldeias, e foram abertas mais duas novas recentemente. A aldeia Chico Curumim, onde nasci e onde minha família mora, é a vigésima oitava aldeia. Então, as pessoas que vinham de uma aldeia mais acima e iam para a cidade, quando voltavam para a sua aldeia, passavam as novidades para outras aldeias que encontravam no caminho. E assim foi indo. Agora, as aldeias estão voltando as suas rotinas, já voltando ao funcionamento normal, com os trabalhos na comunidade, trabalhos no roçado. Está indo aos poucos, mas está indo…
*Colaboração de Daniel Revillion Dinato e Luiza Dias Flores
Pandemias na Amazônia é um mapeamento colaborativo das narrativas e relatos sobre os modos de pensamentos e as estratégias dos povos indígenas e comunidades tradicionais em torno das crises epidêmicas e ambientais na Amazônia.
O projeto desenvolvido pelo NEAI/UFAM (Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena) com o InfoAmazonia permite às comunidades e/ou seus mediadores inserir em uma plataforma digital conteúdo de texto, áudio e vídeo