Minha experiência em ter contraído a Covid-19: de como cuidei de pessoas e como fui infectado.
por Justino Sarmento Rezende
Quem sou eu?
Eu sou membro do povo Tuyuka, nascido em Onça-igarapé, no distrito de Pari-Cachoeira, município de São Gabriel da Cachoeira–AM. Nesse ano completei 59 anos de idade. Sou padre Salesiano há 26 anos. Desde o ano de 2017 estou cursando o doutorado em Antropologia Social no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/UFAM), e participo como pesquisador do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI/UFAM). Sou também membro do Colegiado Indígena do PPGAS. No momento encontro-me no município de Santa Isabel do Rio Negro – AM.
Meus sonhos com meus pais falecidos
Meus avós diziam que quando se sonha continuamente com parentes falecidos significa algo muito importante. Eles diziam: algum membro da família ou você mesmo ficará doente. Eu sonhava continuamente com o meu avô, meu pai e com a minha mãe. Meus avós diziam também: “quando é assim, precisa fazer o “benzimento” da sua alma para a imunização das doenças”. Como eu sei a fórmula, eu fiz o “benzimento” e melhorei bastante, parei de sonhar.
Contribuição com a conscientização sobre a pandemia Covid-19
Desde o mês de março deste ano, quando surgiu a Covid-19 em Manaus, eu ajudei na conscientização dos povos originários do Rio Negro sobre a doença. Junto a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e o Instituto Socioambiental (ISA), que atua em São Gabriel da Cachoeira, ajudei na elaboração de folhetos em língua Tukano e fiz áudios de conscientização, também em língua Tukano. Diversos jornais realizaram entrevistas comigo, sobre como eu via a ameaça da Covid-19 aos povos indígenas.
“Benzimentos” de proteção
Aqui em Santa Isabel do Rio Negro, a partir do dia 21 de março, diversas vezes eu fiz a cerimônia de proteção de Covid-19 com o breu branco, sikanta. Várias pessoas traziam os materiais para eu “benzer”… também para outras doenças, como tosses crônicas, dores de cabeça, reumatismo etc.
Meus descuidos com a prevenção à Covid-19
Desde o dia 21 de março eu fiquei direto em casa. O Comitê de Combate de Covid-19 local estabeleceu diversas regras de prevenção e combate, como o uso de máscaras. Eu tive a dificuldade de utilizá-las… usava somente quando alguém chegava para falar comigo e mantinha a distância entorno dos dois metros. As pessoas continuavam trazendo material para o “benzimento”. Eu comecei a desconfiar que essas garrafas de xaropes e chás pudessem ser de uso dos pacientes infectados pela Covid-19. Comecei, então, a usar o álcool em gel 70º.
Sintomas da Covid-19
Por volta do dia 5 de junho comecei a sentir alguns sintomas: dores de cabeça e tosse. Eu brincava dizendo que eu devo estar com Covid-19. Outras pessoas diziam: “existe muita virose na cidade”. Eu comprei o medicamento Paracetamol na farmácia para combater a febre e a tosse. Tomei, porém os sintomas continuaram. A partir dessa constatação eu não aceitei mais “benzer” os materiais que traziam para mim. Eu pedi para que algumas pessoas da paróquia preparassem xarope ou chá para eu tomar. Trouxeram, então: xarope preparado com jambu, mastruz, corama, mangarataia, limão e mel; chá preparado com limão, alho, jambu, gengibre, cebola e mel; um xarope preparado com andiroba e mel (pingar na garganta). Embora eu estivesse tomando esses chás e xaropes, novos sintomas apareceram: dores no corpo, tosse seca, febre, perda de apetite, dificuldade na respiração e insônia. Como eu conhecia os relatos de quem havia sido infectado convenci-me que estava com a Covid-19.
Atendimento médico
No dia 18 de junho, às 14h eu fui ao médico. As enfermeiras mediram minha pressão arterial, aferiram a febre, a batida cardíaca e a respiração. O médico conversou comigo por 15 minutos. Depois ele refez o exame da minha respiração e disse carinhosamente: “o senhor veio aqui no limite, pois dessa fase em diante sua situação de respiração iria piorar cada vez mais”. Ele me receitou diversos medicamentos: Azitromicina: tomar 1 comprimido por dia, durante 5 dias; Ivermectina: 3 comprimidos por dia, durante 2 dias; Paracetamol: 1 comprimido a cada 8 horas durante 5 dias, Desxclorfeniramina suspensão: durante 5 dias; Ciprofloxacino (500mg): 1 comprimido cada, de 12 em 12 horas, durante 7 dias; Belcomplex – complexo B: 1 vez ao dia. Segui rigorosamente as orientações e horários para tomar os medicamentos.
No dia 23 pela manhã a equipe de saúde veio coletar os exame e de tarde trouxeram o resultado: testou positivo.
Eu continuei tomando os xaropes e os chás. Uma professora de São Gabriel da Cachoeira me disse que, para falta de ar, o chá preparado com cebola cortada em rodelas, alho amassado e limão ajuda a melhorar a respiração, e eu fiz isso mesmo. Um colega indígena do NEAI me disse que o mingau sustenta bem o corpo na fase em que não sentimos o apetite. Eu preparava o mingau de farinha bem cedo e tomava bem grande e no final do dia também. Outros tipos de alimentos eu não sentia muito o gosto. Eu tinha uma garrafa de água preparada com limão espremido. Assim fui melhorando, recobrei o apetite, alimentei-me bem, dormia melhor. Eu fiz o “benzimento” da alma. Todas essas práticas eu já conhecia de narrativas de quem já havia passado por essa doença.
A morte do meu “irmão maior”, consideração tradicional tuyuka, Higino Pimentel Tenório me abateu muito, pois ele tinha uma ligação muito forte com o meu pai. Meu pai considerava os irmãos Guilherme e Higino como seus filhos. Creio que como eu não me tornei um mestre de cantos/danças devido ao caminho que eu segui para ser padre, meu pai teria projetado neles esse carinho paternal. Higino, como criador da Escola Tuyuka, ajudou-me muito nas pesquisas para a elaboração da dissertação de mestrado (2005-2006). O falecimento do Higino fez-me reagir diante da doença que estava me abatendo bastante. Eu comecei pensar naquilo que o meu avô falava sobre sonhar com os falecidos. Eu disse para mim mesmo: “os meus sonhos não estavam totalmente equivocados, pois faleceu uma pessoa muito ligada à nossa família, um mestre de cantos/danças (baya) como o meu avô e meu pai”. Ainda brinquei comigo mesmo também: “não era a minha vez, ainda”. Por outra parte eu disse e escrevi: “agora eu tenho que ser e fazer melhor as coisas como um Tuyuka”.
Momento de respiração profunda!
No dia 6 de julho, pela manhã,aconteceu a visita de retorno ao médico, após eu cumprido a quarentena. Eu já me sentia bem, dormia bem, alimentava-me bem, tomava banho cedo, comia o mingau e trabalhava na elaboração da minha tese. A conversa com o médico foi bastante satisfatória, ele disse: “outra vez você chegou muito mal aqui; agora está muito bem. Está liberado de sua quarentena”. Eu me senti muito feliz e o agradeci. Foi muito bom voltar a conviver com os meus irmãos salesianos, almoçar juntos, rezar e celebrar a missa juntos. O médico recomendou: “eu quero que você continue se cuidando; evite pegar o sol e chuvisco, pois não sabemos ao certo como doença funciona”, e me receitou os medicamentos completares: Enalapril e AAS. Estou seguindo essas orientações médicas.