Esta onda de pandemia fará repensar (assim esperamos) a importância do trabalho conjunto entre os conhecimentos do não-indígena e dos povos indígenas.
Esta onda de pandemia fará repensar (assim esperamos) a importância do trabalho conjunto entre os conhecimentos do não-indígena e dos povos indígenas.
“Toho na ukũke meheta niwu a’tea
Peêru sirĩ, murõ uhû, paâtu buaba’â
Werã na ukũseti weke nikaro niwu, nihá”
(Oficina de Paâtu. Ma’mí, Tarcísio Barreto, 2019)
por Dagoberto Lima Azevedo – Yepamasu Ñahuriporũ Suegʉ.
Nasceu e se criou na comunidade Mahawi’í Tuhkuro (Pirarara-Poço), Médio Rio Tiquié, Terra Indígena do Alto Rio Negro, município de São Gabriel da Cachoeira (AM). Atualmente, doutorando em Antropologia Social pelo PPGAS-UFAM. Mestre em Antropologia Social pelo PPGAS-UFAM (2016). Licenciado em Filosofia na Faculdade Salesiana Dom Bosco, Manaus – AM. Pesquisador do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena – NEAI, desde 2014. Autor de “Agenciamento do mundo pelos Kumuã Ye’pamahsã: o conjunto dos Bahsese na organização do espaço Di’ta Nuhku” e co-autor do “Omerõ: constituição e circulação de conhecimentos Yepamahsã (Tukano)”, Manaus: EDUA, 2018 (ambos os livros).
Escrever sobre o conhecimento e o pensamento yepamahsã no papera (papel) é semelhante ao esforço de produzir paâtu pois este requer certos ñanũruse (cuidados), começando com o o’tero (plantio), o suaro (coleta) e o da’re ba’âro (conjunto de processos de transformação do produto). O paâtu novo, que sai fresquinho do pulverizador, de cor verde e misturado com as cinzas da folha de embaúba, com cheiro suave, passa de mão em mão dos paâtu ba’arã (comedores de coca) para ser apreciado como o pó da memoria. Com o tempo, este pó, em contato com saliva, vai se diluindo e desce macio na garganta, tornando aqueles que o consomem, preparados, atentos, concentrados, dispostos a ouvirem as bukurã ukũse (falas dos velhos). Além disso, também estão prontos para interagir e socializarem entre si. Através desta metáfora, quero lembrar que cada nova escuta que tenho dos bukurã (velhos), tento registrar no papera (papel), o que me desafia a explicar as explicações dos velhos, buscando alguma coerência, na maioria das vezes, rememorando ou detectando desvios de fuga que é o desafio da reflexão de qualquer temática. É certo que tudo isso dá ao trabalho um caráter provisório, mas espero que mesmo assim seja uma contribuição válida para explicar um pouco o que ouço e entendo a partir do que me dizem os conhecedores da minha região.
A minha pesquisa de doutorado é voltada à temática do paâtu, um produto elaborado a partir da planta ipadu (coca). Entre final de março e no inicio de abril de 2019 coordenei uma oficina de paâtu com apoio logístico do Instituto Socioambiental-ISA, na comunidade Serra do Mucura, no médio Rio Tiquié, Terra Indígena Alto Rio Negro. Para minha surpresa, no segundo dia da oficina, os kumũa presentes já haviam conversados entre eles de fazer uma noite de bahsenização do a’tipaâti (mundo/universo), di’ta nuhkurirẽ (terra-florestas), waimahsarẽ (humanos invisíveis) e das mahsarẽ (pessoas). Nessa nota pretendo compartilhar uma das formas de “esterilização” que vivenciei desde a minha infância, e que depois de alguns anos longe de minha comunidade, pude retornar como estudante de antropologia.
Para a realização deste ritual de bahsese foi preciso buscar folhas de paâtu e entrar em ação em todo o seu processo. Este tem sua logística que envolve, num primeiro passo, a colheita das folhas da planta de paâtu na roça. Esta deve ser, preferencialmente, da variedade kãrê paâtu (“coca de abiu”), que rende bastante durante o preparo e que tem um sabor e cheiro idêntico ao do fruto de abiu. É preciso, para a coleta, ter paciência para ficar de cócoras ou pé no paâtuka (plantio de coca) e exposto ao sol. Depois, ter habilidade para tostar, pilar e misturar as folhas com as cinzas das folhas de embaúba. Enfim, é necessário, para este trabalho, ter uma sensibilidade apurada para obter a fineza do produto, acompanhado de sua cor, seu sabor e seu cheiro. A pessoa com essas qualidades ganha o prestigio no circulo noturno e nos grandes rituais de paâtu. Tudo isso implica a disciplinar-se na concentração para este serviço.
Se não tiver essas qualidades a pessoa está desconexa ou desconcentrada, e precisa se reorientar, disciplinar-se no pensamento, focar e pensar que este servirá para o bem, para a socialização e interação dos paâtu ba’â naĩñora (participantes do circulo noturno de paâtu).
Naquela ocasião na oficina, os kumũa pediram ao líder da comunidade que providenciasse pimenta, sal, tabaco e breu, veículos fundamentais de esterilização. Em alguns contextos, atualmente, já são introduzidos cosméticos e álcool gel, que, mesmo assim, antes de serem usados, devem ser submetidos à ação do bahsero do kumũ. Ao termino de todo o processo de paâtu houve banho no rio e comida à base de quinhapira, peixe apimentado. Depois disso, o líder da comunidade, junto com o kumũ, anunciou a noite de bahsenização. Nessa circunstancia, já no circulo noturno de paâtu, iniciou-se o murõpu usetise (arte de diálogos). Antes disso, porém, fumou-se tabaco, comeu-se paâtu e em todos os intervalos se intercalaram com esses elementos. Primeiro, fumaram e comeram a dupla de kumũa, depois seguiram-se os participantes. Quando esses elementos retornam às mãos dos kumũa começa-se o murõ bahsero (agenciamento de tabaco) e o’pe bahsero (agenciamento de breu) com seguinte enunciado: to ukũ duhí tuoña we duhí buruoya, a’to murõ bahse o’pe bahse wenirãtirãwe (“A partir desse momento estaremos entrando em ação de agenciamentos do breu e do tabaco. Enquanto isso, sintam-se a vontade para falar e compartilharem entre vocês as questões pertinentes”).
Os kumũa explicaram-me que começaram o ritual com o agenciamento do breu e do tabaco, em seguida, a comunicação/interação de dádivas com os waimahsã, e no final aos mahsãre. Para avançar ação de agenciamento nas particularidades, precisa-se arrumar, ordenar o plano cosmogônico, plano da terra-florestas e as casas dos waimahsa, depois entra-se nas particularidades. Através do pensamento, o kumũ visita esses planos. No final de cada agenciamento efetivado se faz intervalos fumando tabaco e comendo paâtu. Além disso, rolam conversas informais. Antes de prosseguir para outra etapa de agenciamento, os kumũa convidaram-me, junto com outros participantes, para o usetise (discurso) e mostrar o yuhu bahsero (agenciamento musicalizado) efetivado naquela etapa. Esse ritual de agenciamento do breu e do tabaco encerrou-se por volta da meia noite, com usetise acompanhado de yuhu bahsero, pelo líder da comunidade.
Nesse ato de entrega dos veículos de esterilização dos bukûra (virus, bactérias), os kumũa informam os tipos de doença ou enfermidades que estarão, possivelmente, afetando as pessoas. Apresentam o plano de contingência e ações de contenções. No dia seguinte, depois da quinhampira coletiva da manhã, todos os membros da comunidade são informados sobre os cuidados, as restrições, observações, orientações e explicações dados pelos kumũa. Após isso, são convidados a se defumarem sob a fumaça do tabaco e do breu e lamberem pimenta com sal. Essa experiência me ajudou a refletir sobre minhas origens. No entanto, estou no contexto urbano, morando na cidade, longe da comunidade, e há necessidade de conjugar a esterilização yepamahsà com as orientações das autoridades sanitárias dos não indígenas.
Assim, estou em quarentena na metrópole do Amazonas, na cidade de Manaus. Reforça-me cotidianamente a compreensão de como eu me constituo e circulo a partir do bahsenização yepamahsa conjugando as orientações das autoridades sanitárias na cidade.
Importante notar, por fim, que o agenciamento do kumũ começa no macro antes de chegar nas particularidades das categorias humanas. Este envolve o umukoho a’poro (ordenamento da plataforma cosmogônica), waimahsaye wi’íseri a’poro (ordenamento das casas dos humanos invisíveis) e o di’ta a’poro (ordenamento da terra-floresta). Todavia, o atual contexto lança-nos a refletir sobre como conter e lançar plano de contingencia baseando nos conhecimentos dos Pamurimahsã (Gente de Transformação). Creio que esta onda de pandemia fará repensar (assim esperamos) a importância do trabalho conjunto entre os conhecimentos do não-indígena e dos povos indígenas. Pensar ou formatar um Plano de Atenção de Saúde Intercultural. Como articular o sistema de saúde indígena com o sistema do Estado? Há enfermidades/doenças que são passiveis de serem curadas com os conhecimentos dos povos indígenas, mas outras não, assim como os conhecimentos do não-indígena servem para curar umas e outras não.