Levantamento aponta que a Funai passou a atuar contra o interesse dos próprios indígenas. Conselhos ligados à Igreja veem prevaricação judicial.
Levantamento aponta que a Funai passou a atuar contra o interesse dos próprios indígenas. Conselhos ligados à Igreja veem prevaricação judicial.
Foto de abertura: Marcha indígena em Brasília, novembro 2019, cobra proteção e demarcação das terras indígenas e fim dos assassinatos de lideranças. Foto: Thiago Miotto /Cimi
por Aldem Bourscheit
Informações preliminares do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) analisadas pelo InfoAmazonia mostram crescente violência do Estado contra populações indígenas e tradicionais desde janeiro de 2019. O levantamento integra o Terra de Resistentes, investigação sobre ameaças e assassinatos de defensores ambientais que será lançada no próximo dia 22 de abril. O projeto é uma iniciativa de meios de comunicação de 10 países da América Latina.
Notícias destas entidades ligadas à Igreja Católica mostram a participação direta de órgãos e agentes públicos, casos de omissão ou prevaricação em 18 (29,5%) dos 61 registros preliminares de violência em 2019, ano em que Jair Bolsonaro chegou à Presidência. Este percentual é quase o dobro do apontado pelo Terra de Resistentes entre 2009 e 2018, quando 145 (17%) desses episódios foram verificados dentre 855 agressões contra minorias pobres no Brasil.
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Entre os órgãos públicos que vem deixando de atuar em demandas judiciais que beneficiam a posse de terras por populações nativas, destaca-se a Fundação Nacional do Índio – Funai. Com Bolsonaro no poder, o Ministério da Justiça já devolveu à autarquia quase 20 processos para a criação de territórios na Amazônia, Sudeste, Nordeste e Sul. Todos aguardam ações da pasta para sua consolidação. O Cimi vê “prevaricação judicial” nesses atos.
Em artigo, a assessoria jurídica do conselho argumentou que o Estatuto da Funai estabelece como missão “proteger e promover os direitos dos povos indígenas, em nome da União”. E analisa: “Não só a Funai, mas qualquer órgão do governo que fuja às suas responsabilidades estão sujeitos ainda à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). No caso do presidente da Funai, a conduta individual pode ser enquadrada como improbidade administrativa, que é um ato ilegal ou contrário aos princípios básicos da Administração Pública, cometido por agente público, durante o exercício de função pública ou decorrente dela.”
“O governo é inimigo desses povos, congelou a regularização de suas terras e trabalha pela desestruturação das políticas indígenas. Querem forçar os nativos a abdicar de seus direitos e a deixar seus territórios para favorecer o agronegócio. Esses povos estão à própria sorte”, reclamou o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário, Antônio de Oliveira.
Demarcação negada
Em setembro, a Funai jogou a toalha em um processo judicial e abriu alas para que seja anulada a criação da Terra Indígena Palmas, em Abelardo Luz (SC) e Palmas (PR). Desde 2011, uma única fazendeira disputa 70 hectares (menos de 2%) dos 3,8 mil hectares do território Kaingang homologado quatro anos antes, em 2007. Na área vivem quase 800 pessoas.
Um mês depois, em outubro, o futuro da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, em Dourados (MS), ficou em xeque quando o órgão federal desistiu de outra ação na Justiça. A medida beneficia fazendeiros que competem pelo território com 1.200 Guarani-Kaiowá desde a sua homologação, em 2005. Seus 9 mil hectares fazem fronteira com o Paraguai.
Já em março deste ano, o órgão federal anulou a demarcação da Terra Indígena Guasu Guavirá, onde vivem 1.400 Guarani e Guarani Ñandeva. Seus 24 mil hectares estão distribuídos em municípios do oeste do Paraná. A medida foi baseada em uma decisão de primeira instância da Justiça Federal, atendendo prefeituras que contestam a ancestralidade da ocupação da área e se dizem alijadas do processo para sua homologação.
Para expulsar indígenas, a Funai se alia a posseiros e fazendeiros que se dizem donos de terras não ocupadas pelos nativos antes de 1988, quando foi promulgada a Constituição. A tese do “marco temporal” vem de um parecer da Advocacia Geral da União – AGU publicado no governo Michel Temer. À frente do órgão indígena está o delegado da Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier, ex-assessor de parlamentares ruralistas.
O presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Renan Sotto Mayor de Oliveira, avisa que os atos da Funai ameaçam a vida dessas populações e batem de frente com a Constituição, mesmo que o Supremo Tribunal Federal ainda não tenha consolidado uma posição sobre o tema.
“Se isso for mantido, será um banho de sangue. A Funai está municiando posseiros e fazendeiros que querem aquelas terras. Usa o parecer (da AGU) de forma equivocada para desistir de processos judiciais e administrativos pela criação de áreas indígenas. Nossa Constituição não reconhece esse marco temporal”, ressaltou.
Conforme relatório publicado neste dia 17 de abril, a Comissão Pastoral da Terra (CPT)informa que, em 2019, os despejos de famílias tradicionais, indígenas e de trabalhadores rurais por ações judiciais, de governos ou do setor privado explodiram nas regiões Sul (450%), Centro-Oeste (114%) e Norte (55%). Ainda de acordo com a entidade, na Amazônia o número de famílias despejadas saltou 82%, passando de 3.223 (2018) para 5.877 (2019). Confira o box Violência no campo explode com Bolsonaro.
Indíos isolados se tornam alvo
O desmonte de órgãos e políticas públicas também põe em risco a vida de nativos em terras indígenas como a Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas. Naqueles 8,5 mil hectares vivem cerca de sete mil índios de 25 povos – 18 deles com pouco ou nenhum contato com a sociedade moderna. É a área com a maior presença de indígenas isolados do mundo.
Em trecho do Rio Jutaí, os Tyohom-dyapa são ameaçados por caçadores, traficantes de drogas e animais, madeireiros e garimpeiros. Ao menos 10 dragas atuariam na área. Os invasores distribuem bebidas alcóolicas, assediam mulheres e ameaçam de morte quem reage às agressões.
Mapa da terra indígea do Vale do Javari
Ao mesmo tempo, quatro bases da Fundação Nacional do Índio – Funai que deveriam apoiar a proteção do Vale do Javari e de suas populações estão esvaziadas após serem saqueadas e baleadas. Desde novembro, o posto no encontro dos rios Itacoaí e Ituí sofreu oito investidas de criminosos.
Servidores do órgão abandonaram seus postos temendo por suas vidas e de familiares após o assassinato do colaborador do órgão Maxciel Pereira dos Santos, em setembro. Ele foi baleado no centro de Tabatinga (AM), na frente da esposa. O crime teria ocorrido em retaliação a seu trabalho de proteção dos indígenas, afirmam lideranças regionais.
Diante da pandemia de coronavírus que pode causar um genocídio de povos indígenas, o governo de Jair Bolsonaro pode permitir o contato de equipes de saúde com nativos isolados, atropelando a legislação federal e políticas da própria Funai que prevêem não se aproximar desses povos.
Conforme portaria do órgão federal publicada em março, contato poderá se permitido caso “seja essencial à sobrevivência do grupo isolado”. A decisão cabe à coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato, liderada pelo ex-missionário Ricardo Lopes Dias, ligado à Missão Novas Tribos do Brasil. A organização nascida nos EUA promove a evangelização de indígenas desde os anos 1950.
“A medida ameaçaria a sobrevivência dessas comunidades pela possível transmissão de doenças através do contato com não indígenas. O episódio com o coronavírus deixa claro que Bolsonaro retomou a ‘política de atração” da Ditadura Militar. Assim, o governo atua para eliminar disputas por terras promovendo a assimilação de índios pela sociedade moderna”, ressalta Antônio de Oliveira, secretário-executivo do Cimi.
A Fundação Nacional do Índio não respondeu a nosso pedido de entrevista, mas sua Assessoria de Imprensa afirmou que “o envio de processos para o Ministério da Justiça ocorreu em atendimento à solicitação do próprio Ministério”, que “casos de violência contra indígenas são investigados pelo Departamento de Polícia Federal” e que “quando a Funai tem conhecimento de uma determinadas denúncia, ela é enviada para a Polícia Federal”. Informou, ainda que está tomando providências, junto com o Ministério da Saúde, “para prevenir o contágio da Covid-19 pela população indígena”. Confira aqui íntegra da resposta do órgão federal.
Ameaças a extrativistas e brigadistas
Além das evidências de que agentes e órgãos estatais estão lavando as mãos para suas obrigações legais, o “assédio judicial” contra quem defende a natureza também ganha força, mostra a análise do InfoAmazonia.
No Acre, dois jovens são acusados por um fazendeiro de roubo de castanha e de invasão de propriedade privada. Em agosto, haviam sido torturados e ameaçados de morte por agressores fardados; policiais militares que chegaram ao Seringal São Bernardo em uma caminhonete civil e sem ordem judicial, relatou a Comissão Pastoral da Terra – CPT.
Em dezembro, agentes da Polícia Militar dispararam balas de borracha contra trabalhadores sem terra que cruzavam a Fazenda Surubim após coletarem castanhas em uma área pública, no sudeste do Pará. De acordo com a CPT, as agressões contra aquela população são constantes e levaram ao assassinato do agricultor Eudes Veloso Rodrigues, morto por pistoleiros em 2018.
Em outro caso emblemático, quatro ambientalistas da Brigada de Alter do Chão, também no Pará, foram indiciados em dezembro pela Polícia Civil por supostamente terem causado incêndios florestais ocorridos em meses anteriores. O inquérito que levou a suas prisões temporárias não apresenta provas do crime e está recheado de conclusões absurdas. Investigações do Ministério Público Federal apontam que os responsáveis pelo crime são grileiros de terras e madeireiros.
“Os brigadistas não cometeram crime algum. Pelo contrário, sempre atuaram em defesa da floresta. Não acreditamos que o Ministério Público Federal apresente uma denúncia formal contra eles”, avaliou o advogado Fernando Cunha, ligado a um grupo de juristas, promotores e defensores públicos que atua em casos de violação de liberdades e direitos fundamentais.
No fechamento desta reportagem, populações indígenas e tradicionais se tornaram alvo de novas ameaças. Estimativas de entidades não governamentais apontam que um projeto de lei enviado ao Congresso pelo governo pode liberar a mineração em 315 terras indígenas, ou 43% dos 723 territórios no país. A proposta também permite a construção de hidrelétricas e a exploração de petróleo e gás nessas áreas.