Mesmo com sua captura proibida há 15 anos, o raro acari-zebra ainda é traficado através de aeroportos amazônicos. Criminosos aproveitam falhas na fiscalização e usam países vizinhos como trampolim para abastecer lojas e sites em várias regiões do planeta. Procura pela espécie cresceu com ameaça iminente de extinção.
Esta matéria faz parte do projeto Fauna Perdida liderado por Ojo Público. Leia sobre casos no México e Peru
O raio-x do aeroporto internacional Eduardo Gomes, em Manaus (AM), frustrou os planos do amazonense Lucas Silva dos Santos (22) na tarde de 23 de fevereiro deste ano. A vigilância eletrônica impediu que ele chegasse a Tabatinga, na fronteira com a Colômbia e o Peru, com uma mala lotada de sacos plásticos onde nadavam 236 acaris-zebra (Hypancistrus zebra). O peixe é dos mais procurados pelo tráfico de animais selvagens. Santos responde a processo em liberdade. Apreensões como essa são rotina na Amazônia e revelam rotas e métodos usados pelo comércio ilegal de vida silvestre.
O belo e tímido peixinho só pode ser encontrado na natureza da Volta Grande do Rio Xingu, no estado do Pará. Mesmo adulto, cabe na palma da mão. Sua captura foi vetada no Brasil em 2004, justamente pelas pressões do tráfico internacional. Hoje, pode desaparecer também por impactos da mega hidrelétrica de Belo Monte.
O “zebrinha” também está na lista brasileira oficial de fauna ameaçada e sua venda é proibido pela Cites, a convenção internacional que tenta proteger animais e plantas do comércio excessivo. Tráfico de vida selvagem é enquadrado na Lei de Crimes Ambientais, desde 1998. Mas essas medidas não impedem o comércio ilegal da espécie, de acordo com as informações coletadas para o projeto Fauna Perdida, uma investigação regional, feita colaborativamente e coordenada pelo OjoPúblico, e que expõe rotas do tráfico de animais na América Latina.
Documentos de processos judiciais, ações do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e do Ibama, a agência de fiscalização ambiental federal, revelam que mais de 6.800 acaris-zebra foram apreendidos na última década enquanto eram transportados por traficantes.
Dezenas de filhotes de acari-zebra e malas carregadas com peixes apreendidas esta ano com traficantes, em Altamira (PA) e Manaus (AM). Fotos: Ibama e Polícia Federal
Os flagras confirmam que o tráfico flui por aeroportos no Pará e no Amazonas até a tríplice fronteira junto à Tabatinga, no extremo oeste do estado do Amazonas. Dali, se chega a pé até Letícia, na Colômbia, onde há outro aeroporto internacional e inúmeras lojas de peixes ornamentais. Os animais também são comercializados em balsas, às margens do Rio Solimões. Da cidade colombiana, se alcança o Peru através de Santa Rosa, na ilha Rondina.
Outro detido por tráfico de animais na Amazônia é o paraense Raylan Ricardo Soares (25). Foi pego em flagrante pela Polícia Federal tentando voar de Altamira, no Pará, a Tefé, no Amazonas, no início de 2014. Tinha despachado 174 acaris-zebra em sua bagagem. Pela legislação brasileira, foi condenado a pagar R$ 1.000,00, revertidos a uma entidade assistencial.
“A principal rota desse tipo de crime é aérea. Nos aviões, usam ‘mulas’ como no tráfico de drogas. Essas são as mais detidas e, como são apenas transportadoras, não se consegue conectar as redes internacionais de tráfico”, contou Leandro de Melo Souza, pesquisador da Universidade Federal do Pará especializado em peixes amazônicos.
As 30 apreensões listadas pelo projeto Fauna Perdida mostram que o crime segue firme e forte, especialmente com animais nativos de países da região.
Em Outubro, estudo publicado na revista científica Science mostrou que uma em cada 5 espécies de vertebrados é vítima do tráfico global. A investigação revelou que a grande maioria dos animais capturados e vendidos ilegalmente vem regiões tropicais, como a Amazônia.
Crimes Conectados
Quadrilhas de narcotraficantes que atuam na fronteira entre Brasil e países vizinhos estão envolvidas com o mercado ilegal de peixes ornamentais. Na Colômbia e Peru, o desmatamento da Amazônia cresce junto com o cultivo de coca em regiões próximas à fronteira com o Brasil, inclusive pelas mãos de fanáticos religiosos da Missão Israelita do Novo Pacto Universal.
“O capital criminoso orbita entre garimpo, extração ilegal de madeira, tráfico de drogas e de fauna. Para os traficantes, interessa onde está dando lucro e o crime ambiental é muito atrativo, porque as penas (no Brasil) são simbólicas, de pagamento de cesta básica”, ressaltou o superintendente da Polícia Federal no Amazonas, Alexandre Saraiva.
Uma das maiores apreensões de acaris-zebra levantadas pelo reportagem aconteceu este ano, quando 505 peixes foram flagrados no aeroporto de Altamira (PA), maior cidade da bacia do Xingu e onde está localizada a Volta Grande O criminoso foi preso pela Polícia Federal tentando voar a Manaus (AM). Flagras em países vizinhos também ajudam a traçar as rotas do mercado criminoso de animais selvagens.
Entre 2015 e 2019, setenta mil peixes foram apreendidos pela Polícia Nacional da Colômbia no departamento do Amazonas, chegado ao estado brasileiro de mesmo nome. Todavia, não foi “possível discriminar as espécies de peixes, uma vez que a ferramenta de informação (…) não permite capturar nomes científicos (e os) funcionários não são técnicos para a identificação de diferentes espécies”, informou o órgão por email.
Em Agosto deste ano, 22 acaris-zebra foram apreendidos em uma loja da empresa AeroSur, em Bogotá, informou a Autoridade Nacional de Aquicultura e Pesca da Colômbia. Em Abril, um chinês foi detido em Iquitos, no Peru, prestes a embarcar para o Japão com um acari-zebra. Em julho do ano passado, 199 acaris-zebra foram flagrados na mesma cidade.
Em 2015, pelo menos dois passageiros foram detidos no aeroporto internacional de Iquitos tentando despachar “zebrinhas” em vôos da Avianca. Um deles tinha passagens para Manchester, na Inglaterra. O traficante havia trocado o nome da espécie, tentando enganar a fiscalização. As informações são de documentos oficiais do governo peruano.
Os repetidos flagras mostram que o tráfico é abastecido por organizações criminosas, reconhece o superintendente Saraiva, da Polícia Federal no Amazonas. “Mas essas organizações criminosas perderam muito daquele modelo piramidal, com alguém no topo dando ordens. São pequenas células que até colaboram entre si, mas não há mais um ‘grande patrão’. O ‘cara’ faz por conta própria (porque sabe que há mercado)”, disse.
Passe Livre
Durante nossa investigación, em setembro passado detectamos acaris-zebra à venda em páginas web, sites de vendas coletivas e Redes Sociais em vários de países, dos Estados Unidos à Rússia, passando por França, Canadá, Alemanha e China. Um único peixe era vendido pelo equivalente a R$ 2.000,00. Ribeirinhos e indígenas que os capturam na Volta Grande do Rio Xingu recebem até R$ 40,00 por um espécime adulto, contaram fontes que atuam na região e que pediram para não serem identificadas.
Em alguns países, há criações legais com exemplares exportados antes de 2004, por exemplo na Indonésia. Mas a maioria dos comerciantes rastreados pelo projeto Fauna Perdida não detalha a origem dos zebrinhas. Outros, garantem a venda de peixes selvagens, como se vê nas fotos abaixo.
Ao mesmo tempo, fontes atentas ao tráfico internacional de vida selvagem, que pediram para não ser identificadas, apontaram um comerciante na cidade de Gersthofen, no centro-sul da Alemanha, como um “portal da Europa para peixes ilegais”. A empresa importa animais da Colômbia, Malásia e Brasil, pelo menos desde 2011, inclusive acaris-zebra. Em Setembro, o alemão vendia lotes do peixe no eBay, maior site de compras e vendas pela Internet do planeta. Cada filhote custava mais de R$ 700,00.
Já “exportadores” de animais selvagens exibem em suas redes sociais fotos com dezenas de caixas sendo despachadas de aeroportos na Amazônia brasileira rumo a países como China e Alemanha. Nessas vendas, documentos são conferidos pelas autoridades brasileiras, mas as caixas são vistoriadas por amostragem.
“O comércio ilegal de fauna silvestre move centenas de milhares de dólares em muitos países e, por isso, diferentes grupos têm grande interesse em manter esse tráfico. Hoje, tanto a sociedade quanto as autoridades competentes estão cegas para a real situação do tráfico de fauna silvestre no país”, ressaltou Juliana Ferreira, da Freeland Brasil.
A entidade atua na América do Sul pela Freeland Foundation, organização sediada em Bangkok (Tailândia) e dedicada a combater o tráfico internacional de animais e plantas.
Estimativas conservadoras de las Naciones Unidas apontam que o comércio ilegal de vida selvagem movimenta o equivalente a R$ 92 bilhões anuais em todo o mundo. Isso faz do crime o quarto mais lucrativo do planeta, atrás do tráfico de drogas, produtos falsificados e pessoas.
Mãos atadas
Igor de Brito Silva, chefe do Núcleo de Fiscalização e Proteção dos Recursos Pesqueiros do Ibama, reconhece que o tráfico de animais silvestres é um crime frequente e de grande porte, mas avisa que faltam meios para enfrentar tamanho problema. A autarquia fiscaliza o tráfico de animais junto com a Polícia Federal e outros órgãos públicos.
“Estamos usando inteligência para entender como funciona o fluxo desde a captura até os destinos nacionais e internacionais, mas a carência enorme de servidores e brechas de fiscalização são exploradas pelos traficantes. Onde veem que o Ibama está ausente, o tráfico aumenta. Aeroportos na Amazônia merecem maior atenção e fortalecimento (da fiscalização), mas de Guarulhos e Campinas (no estado de São Paulo) também saem peixes ornamentais”, disse.
Em Outubro de 2019, uma quadrilha que enviava ovos de peixes em extinção a 12 países pelo aeroporto internacional de Guarulhos foi desbaratada pela fiscalização federal. Um biólogo que trabalhava na Fundação de Parques Municipais e Zoobotânica de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais, é suspeito de encabeçar o esquema.
O Ibama tem metade dos 5 mil servidores que deveria ter e não há previsão de concurso público para cobrir o rombo. Em Agosto, Brito Silva assinou uma carta conjunta denunciando publicamente a pindaíba do órgão. Com Jair Bolsonaro na presidência, ações de fiscalização na Amazônia caíram 22% e o orçamento anual do Ibama foi cortado em quase R$ 90 milhões, passando de R$ 368,3 milhões para R$ 279,4 milhões.
A extensa clientela é outra pedra no caminho do combate ao tráfico. Conforme Juliana Ferreira, da Freeland Brasil, o comércio ilegal ganha força porque quem compra animais silvestres busca preços baixos e não uma origem legal para os produtos. Segundo a bióloga, o animal fruto do crime será sempre mais barato do que o criado em cativeiro.
“Além disso, é muito difícil rastrear a origem do que é vendido, tornando fácil ‘esquentar’ animais retirados ilegalmente da natureza em criadouros desonestos. Esses locais fraudam documentos sobre a origem dos animais e os vendem como se fossem criados em cativeiro”, ressaltou o chefe do Núcleo de Fiscalização e Proteção dos Recursos Pesqueiros do Ibama.
A Superintendência Regional da Polícia Federal no Pará não concedeu entrevista até o fechamento da reportagem. Mas, por meio de sua assessoria de imprensa, informou que “Não temos nenhum dado sobre tráfico de peixes ornamentais no Pará. Não localizamos nenhum inquérito em andamento ou operação com essa casuística”.
Também não conseguimos contato com Lucas Silva dos Santos, Raylan Soares da Silva ou com seu advogado no processo sobre tráfico na Justiça Federal. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que atende estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, negou acesso aos depoimentos judiciais de Raylan Ricardo Soares.
Uma ameaça de R$ 40 bilhões
Terceira maior hidrelétrica do mundo em capacidade para gerar energia, logo atrás da chinesa Três Gargantas e da brasileira Itaipu, no oeste do estado do Paraná, Belo Monte devorou R$ 40 bilhões para sua construção, equivalentes a 10 bilhões de dólares. Quase todos os recursos foram públicos. Entrou em operação em Abril de 2016, mas não deixa de provocar impactos ambientais e sociais.
Para entregar eletricidade, a usina desviará até oito em cada dez litros da água da Volta Grande do Rio Xingu. Com cerca de 100 quilômetros de comprimento e entremeada de ilhas pedregosas e canais, o trecho é vizinho de comunidades ribeirinhas, de pescadores, extrativistas e agricultores familiares, de terras indígenas Arara e Juruna. Também abriga variados tipos de peixes procurados pelo tráfico internacional.
Conforme o pesquisador da Universidade Federal do Pará em Altamira, Leandro Melo de Souza, estudos científicos publicados mostram que quando uma espécie se torna ameaçada ela ganha ainda mais valor nos mercados de tráfico, gerando um efeito contrário ao esperado por conservacionistas.
“A principal clientela de peixes traficados são aquaristas particulares que querem ter espécies raras e selvagens. Agora, com a notícia da destruição do Rio Xingu por Belo Monte, querem pegar os peixes antes que morram. Ingenuamente acham que salvarão a espécie com ela em suas coleções, fora dos ambientes naturais”, ressaltou.
A lista vermelha de animais ameaçados no Brasil, publicada ano passado, admite que “considerando a construção de Belo Monte, em uma projeção de 10 anos, uma vez que o tempo geracional estimado para a espécie é de 2,5 anos, infere-se que haverá uma redução populacional superior a 80%, com altíssimo risco de extinção” do acari-zebra.
Há mais de uma década, o Ministério Público Federal aponta irregularidades e pede ao Ibama a revisão das licenças de Belo Monte para a redução de impactos sobre povoações humanas e ambientes naturais. Em Outubro, o órgão solicitou ao Governo do Pará que suspendesse todas as licenças “de atividades com significativo potencial de degradação ambiental na Volta Grande do Xingu”.
Um dos empreendimentos citados pelo órgão é o da mineradora canadense Belo Sun, que poderá se tornar a maior mina de ouro do Brasil. Um rompimento de sua barragem de rejeitos da mineração prejudicaria fortemente comunidades e a vida selvagem na Volta Grande do Rio Xingu.
Uma avaliação técnica do Ministério Público Federal afirma que “há risco real de rompimento que exige ‘cautela excepcional’, principalmente pela ‘potencialidade lesiva das substâncias armazenadas que, em contato com o curso d’água de um rio interestadual, pode assumir consequências incalculáveis, em especial no caso de estar o Xingu com a vazão reduzida”.
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