Mais de 2 mil especialistas em conservação e uso sustentável se reúnem até dia 17 no Peru para avaliar e projetar o papel das áreas protegidas no continente
Mais de 2 mil especialistas em conservação e uso sustentável se reúnem até dia 17 no Peru para avaliar e projetar o papel das áreas protegidas no continente
por Thadeu Melo
Começa nesta segunda (14), em Lima, no Peru, o terceiro Congresso de Áreas Protegidas da América Latina e Caribe (CAPLAC), reunindo mais de 2 mil especialistas em conservação da biodiversidade e uso sustentável de recursos naturais de 25 países. A cerimônia de abertura do evento, que ocorre a cada dez anos, contará, pela primeira vez, com representantes de populações tradicionais entre as autoridades convidadas.
A fala da noite de abertura caberá à liderança indígena Jorge Nahuel, coordenador regional da Confederação Mapuche de Neuquén, que tem histórico na luta pelos direitos dos povos indígenas e pela conservação de seus territórios na Argentina e Chile. Referência global, Nahuel já não defende apenas as terras de seus antepassados – localizadas ao largo do cone sul do continente. Ele encabeça, junto de outras lideranças de povos tradicionais, o rol de verdadeiras autoridades honoris causa em conservação da natureza.
Nesta terça (15), quando começam as sessões de trabalho do III CAPLAC, a liderança extrativista Manoel Cunha, representante dos ribeirinhos e ribeirinhas da Amazônia brasileira, dividirá a mesa com outras duas autoridades do conservacionismo. Estarão com ele a reitora de uma universidade colombiana e o diretor de Comunicação e Educação da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), organização que promove o congresso, ao lado de organismos internacionais e do governo peruano.
O protagonismo de lideranças indígenas e de populações tradicionais é uma novidade no congresso de áreas protegidas da IUCN. Tradicionalmente, o evento privilegia cientistas e pesquisadores, com uma programação centrada na apresentação de dados e pesquisas realizadas em reservas no continente. A mudança reflete um movimento que se intensificou nas últimas décadas.
“Pensar no enfrentamento das mudanças climáticas sem incluir as populações da floresta é como fazer um filme sem o ator principal”, dizia a jornalistas, há mais de 10 anos, Manoel Cunha, que hoje é gestor da Reserva Extrativista do Médio Juruá, primeira a ser criada no Brasil, em 1990.
Embora o fenômeno de aproximação entre especialistas e lideranças locais não seja nenhuma novidade, o grau de integração entre os dois universos apenas agora começa a mostrar resultados mais relevantes, como é o caso da presença de Nahuel e Cunha nos principais eventos do CAPLAC. A própria UICN formalizou a entrada de organizações indígenas entre seus associados apenas em 2016, contando, dois anos depois, com 17 representantes desses agentes locais, entre os mais de 1.300 membros da maior e mais diversa rede ambiental do mundo.
Representatividade, respeito e resistência
Entre as iniciativas pioneiras na promoção de ações participativas estão as do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, no médio Solimões, no Amazonas, que acumula 20 anos de experiências bem-sucedidas junto à população local. Com o manejo pesqueiro do pirarucu, o instituto comprovou a viabilidade e a eficácia do engajamento de moradores da floresta na gestão desse recurso natural de relevância ecológica e econômica para comunidades locais.
“Uma das principais características da abordagem adotada em Mamirauá é a representatividade, contar com representantes legítimos das comunidades locais e populações indígenas. Não basta o indivíduo ter nascido numa destas comunidades, ele tem que ser um legítimo representante daquela comunidade”, comenta Hélder Queiroz, ex-diretor geral do Instituto Mamirauá (2010-2018). “Outro aspecto importante é a cautela, a abordagem junto às populações locais com cuidado e respeito, além da persistência ao longo do tempo, respeitando os tempos de cada população, em uma ação bem continuada e paciente”, define Queiroz o princípio do processo que trouxe bons resultados.
Lá se vão duas décadas da parceria entre pesquisadores e pescadores, adotando uma mescla de conhecimentos e métodos conhecida atualmente como “ciência cidadã”, prática que o instituto almeja replicar para outras comunidades do bioma Amazônia.
“Penso que a ciência cidadã vai se consolidar ainda mais como uma das formas eficientes da sociedade participar das discussões relevantes para toda a humanidade”, diz Queiroz.
“Os não-cientistas podem ser também pessoas engajadas, interessadas nos rumos que o mundo está tomando, e essas pessoas estão cada vez mais decididas a ter sua voz ouvida e levada em consideração. A ciência cidadã pode ajudar nisso, e acredito que iremos ver isto mais e mais forte ao longo dos próximos 10 anos”, projeta o panorama que poderá ser vislumbrado no próximo CAPLAC.
Populações tradicionais ganham espaço no evento
Nesta terceira edição, o CAPLAC apresenta um número significativo de sessões relacionadas à participação das populações locais na conservação da biodiversidade
Entre as mais de 230 oficinas, palestras e simpósios que serão conduzidos até o dia 17, há pelo menos 50 que têm como tema central o caráter participativo do conservacionismo. Os participantes irão analisar e projetar aspectos como gestão das áreas protegidas, a fiscalização, o monitoramento da biodiversidade, comunicação e educação, inventários de fauna e flora, mapeamento e manejo de recursos em geral, além das ações diretamente ligadas a pesquisas científicas sobre conservação e uso sustentável.
Realizado pela pesquisadora Carolina Soto, do Instituto Humboldt, órgão oficial de pesquisa de recursos naturais da Colômbia, o levantamento informal do espaço e tempo dedicados ao tema da participação comunitária no congresso indica a tendência de ampliação do papel e, mais que isso, do protagonismo dos cidadãos na conservação ambiental.
“Nós chamamos de ‘diálogo de saberes’, que é um intercâmbio de diferentes tipos de conhecimento, entre pesquisadores e comunitários e, juntos, construímos e implementamos estratégias para saber mais e ajudar na conservação dos recursos que interessam a eles”, conta Carolina, que é bióloga e coordena a linha de pesquisa de Ciência Participativa do Instituto Humboldt há dois anos.
Neste período, apoiou a implantação de iniciativas de ciência participativa por demanda de comunidades colombianas interessadas em melhorar sua interação com o ambiente e planejar suas atividades para o manejo sustentável de recursos que utilizam cotidianamente. “As comunidades indicam, por exemplo, a importância de uma determinada espécie que consomem e nós podemos ajudar a identificar quantos indivíduos dessa espécie existem no território, para que controlem seu consumo e continuem tendo o recurso disponível”, exemplifica.
Cidadãos em rede pela ciência
A abordagem de pesquisa a partir de demandas das próprias comunidades é uma das mudanças de paradigma que se viu nos últimos anos na Conservação. “As perguntas científicas têm que partir deles e nós os assessoramos e indicamos os métodos para responder às perguntas”, explica Carolina, que conduzirá no III CAPLAC uma oficina denominada ‘O papel da ciência cidadã ou participativa na conservação na América Latina e Caribe: oportunidades, desafios e recomendações para o futuro’.
Principal atividade relacionada ao tema no congresso, a oficina pretende reunir na quarta-feira, dia 16, até 30 participantes para recolher experiências práticas realizadas no continente, de modo a dar visibilidade a essa abordagem conservacionista ainda emergente. A atividade contará com transmissão online e também com mesa virtual de trabalho, para quem não pode comparecer presencialmente ao evento.
Organizadora da oficina, Mariana Varese, diretora do projeto Ciência Cidadã para a Amazônia, da WIldlife Conservation Society (WCS), explica que o propósito da iniciativa “é contribuir para repensarmos o relacionamento entre áreas protegidas e o público, incluindo a população local e indígena, a população urbana, mulheres e jovens, de modo a favorecer a cocriação de conhecimento, evidências, decisões e políticas”.
“Nossa expectativa é que abordagens como a de ciência cidadã promovam a apropriação integral das áreas protegidas pela sociedade, contribuindo para o estabelecimento de uma relação mais horizontal entre Estados e cidadãos”, projeta Varese, que atua em iniciativas de conservação na Amazônia há mais de 20 anos.
“As ferramentas tecnológicas, principalmente tablets e celulares, nos colocaram em outro patamar e outra escala nesse esforço de engajamento da população e sua colaboração para, por exemplo, a coleta de dados sobre espécies em regiões remotas”, analisa a diretora, que há três anos implementa o projeto de ciência cidadã, em colaboração com mais de 40 organizações e com o apoio da Fundação Gordon e Betty Moore”.
O desafio de monitorar e, futuramente, manejar essas espécies de importância econômica, que migram por toda bacia amazônica ganha perspectivas de superação com a difusão da tecnologia móvel. Além disso, o arranjo sugere a criação de redes de pessoas espalhadas por milhares de quilômetros de rios que serpenteiam a floresta tropical.
Pelas experiências já comprovadas pelos institutos Mamirauá, Humboldt e outros que atuam na conservação da biodiversidade, ainda que em escalas locais, se fez natural a criação da Rede Iberoamericana de Ciência Aberta e Participativa, que será apresentada no congresso e buscará ampliar a abrangência das iniciativas semelhantes no continente e na península ibérica. O movimento é acompanhado de perto pelo biólogo Robert Wallace, diretor do Programa de Conservação de Paisagens Grande Madidi-Tambopata, também da WCS.
Atuando entre a Bolívia e o Peru há quase 30 anos, Wallace explica de forma simples a importância das populações indígenas e tradicionais para a proteção ambiental.
“Basta você pegar o mapa de áreas protegidas da Amazônia mais recente e vai ver que mais de 45% do bioma está preservado em terras indígenas ou outras áreas protegidas, o que torna evidente a importância dessas pessoas”, diz.
“A estimativa é de que pelo menos 60% a 70% da floresta amazônica precisa estar conservada para que sejam preservados os serviços ambientais que oferece à sociedade, especialmente em relação à mitigação das mudanças climáticas”, lembra o biólogo, que tem dedicado esforços para aproximar das áreas protegidas também as populações das cidades.
Ainda falta protagonismo e poder de decisão
A presença dos homens e mulheres que vivem nas áreas protegidas e territórios indígenas ganha importância nos eventos e congressos do setor, ao mesmo tempo que ocupa espaço nas estruturas e programas das maiores organizações ambientais do planeta. É o caso também do Global Environment Facility (GEF), fundo global que apoia a conservação ambiental, que colocou em seu planejamento 2018-2020, pela primeira vez, o conceito de ‘conservação inclusiva’.
Cunhado nos últimos anos, o termo abrange muitos dos aspectos abordados nas linhas acima, se referindo tanto às populações locais e indígenas, quanto à sociedade em geral, que, mesmo vivendo em áreas urbanas, pode participar da conservação e vivenciar os benefícios das áreas protegidas.
Para as organizações que representam as populações tradicionais e indígenas, no entanto, o conceito de conservação inclusiva corre o risco de reproduzir um ponto de vista que não reflete as prioridades e interesses desses grupos. Por isso, o Consórcio de Territórios de Comunidades Indígenas e Tradicionais Conservadas (TICCA), organização que congrega representantes do setor, recomendou, em novembro do ano passado, que o termo seja entendido como ‘conservação na qual povos indígenas e comunidades locais são os atores-chave da governança, gestão e conservação de suas terras, águas e bens naturais e que, conforme necessitarem e desejarem, convidem outros para colaborar com eles e apoiá-los, nos termos definidos pela comunidade’.
Responsáveis por territórios que abrigam cerca de 80% de toda a biodiversidade terrestre, onde estão armazenadas cerca de 37,7 bilhões de toneladas de carbono fundamentais para o combate às mudanças climáticas, segundo o GEF, povos indígenas e populações tradicionais deverão ocupar mais que um ou dois assentos nas atividades de abertura do próximo CAPLAC.