Seu França e Dona Lucimar encontraram, na criação da unidade de conservação onde fica sua vila, os meios para educar seus 12 filhos
Por Gustavo Faleiros, de Vila Nova do Amanã, Maraã (AM)
Em Vila Nova do Amanã, Dona Lucimar e Seu França são como os ponteiros de uma bússola, o norte e o sul, apontam as direções. Foi o casal que, há 25 anos, construiu as primeiras casas na terra firme das margens do rio Tambaqui, afluente do rio Japurá, no médio Solimões, estado do Amazonas. Pelas mãos dele, Francisco da Silva Vale, 63 anos, surgiram as casas, os roçados. Pelas dela, as crianças. Lucimar Pereira Vale, 55 anos, é parteira desde os 12 anos.
Lucimar nasceu no Tambaqui mesmo, do outro lado, na outra margem. Foi o França quem veio de mais longe, do rio Cubuá. Quando se casaram, há 40 anos, ela tinha 15. Ele, 24. Para que o juiz permitisse o casamento, tiveram que aumentar a idade dela em um ano. “Senão, não seria permitido”, ela conta, com um sorrisão.
Os parentes e os filhos foram povoando a vila. Hoje, vivem ali oito famílias. “Na verdade, a gente costuma dizer que é apenas uma família”, brinca David, um dos parentes. Os 12 filhos ainda vivem na Vila Nova do Amanã. A casa verde de Lucimar e França com uma varanda ampla funciona como o coração da família, com quartos para aqueles que ainda não desgarram e uma vai e vem que dura o dia todo. As filhas mais novas, de 14 e 11 anos de idade, ainda frequentam a escola.
Dedicados à agricultura, o casal semeou algumas roças generosas. Alimentam todo mundo. De estar sentado por ali, jogando conversa fora, o sujeito prova ananás (um tipo de abacaxi) bem doces e um belo caneco de açaí com farinha de tapioca.
Mas nem sempre foi assim. Os tempos eram mais difíceis. O peixe, por exemplo, nem sempre era encontrado em abundância. Sem regras, os barcos de peixeiros entravam pelos rios, pelos paranás, arrastando a rede. Levavam cardumes inteiros. Ainda pior: se topavam com um grupo de peixes de melhor qualidade, descartavam o anterior. Jogavam no rio, mortos. “Precisava ver a fedentina que ficava na água”, faz um biquinho, um muxoxo, a Lucimar. Não denunciavam? “Denunciar para quem, se não existia uma força?”, retruca.
Diante de tamanho descalabro, foi a Vila Nova Amanã que recebeu de braços abertos a moçada liderada pelo biólogo José Márcio Ayres, fundador do Instituto Mamirauá e o principal impulsionador da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Amanã, uma unidade de conservação estadual onde fica a vila. “Era uma movimento muito bonito”, diz Lucimar, saudosa. Entre todos da turma de cientistas, ela parece guardar um na memória, Robin Best, já falecido. Era o braço direito de Márcio Ayres, canadense, pesquisador de peixe-boi.
De cara, a turma do Mamirauá conseguiu mobilizar a comunidade para cobrar dos peixeiros alguma compostura na pescaria. Firmaram um contrato de cinco anos para não entrarem mais ali, nos paranás do Japurá, nos lagos do Amanã. Isso deu tempo para se criar a reserva. “Aí os peixeiros nunca mais voltaram”, conta seu França. Mas ainda tem roubo de peixe, pois é difícil controlar uma área tão grande. “É lago em cima de lago”, diz.
Esta aliança logo na tenra idade do Instituto Mamirauá fez da Vila Nova do Amanã uma das comunidades mais beneficiadas pelos projetos de tecnologia social. Os técnicos do Instituto sabem que ali existe, digamos, uma maturidade comunitária. A gestão é feita por uma associação, que cuida da pesca, do sistema de distribuição de água, do gerador a diesel e dos painéis de energia solar.
Mesmo que tenham ajudado a tornar a vila uma referência, logo que casaram Seu França e Lucimar não moravam na comunidade. Na verdade, a Vila Nova Amanã não existia ainda. Recém-casados, eles se mudaram para uma casa no rio Cubuá até que resolveram formar a nova vila. “Achei que aqui era melhor por causa das terras que não alagam. Porque, você sabe, na várzea alaga tudo e a gente está sempre recomeçando. A água vem, a água vai e leva tudo”, Seu França conta.
Ainda assim, a água prega sustos. No terraço suspenso estão as marcas da cheia de 2015, a mais alta que Seu França jamais teve notícia. “No tempo do meu pai, do meu avô, eles ficam conversando, eu ouvindo. Teve grandes cheias em 1922, em 1953 e nunca teve outra igual. Mas a de 1999 foi mais alta. E aí veio 2015, ainda maior. Não sobrou terra sem água aqui na comunidade”, lembra.
Naquele mesmo ano de 2015, o verão e a seca, trouxeram o outro extremo: “Aqui foi tanto fogo… como nunca se viu”. A notícia das queimadas nas comunidades próximas, em especial Boa Esperança, assustou. Plantações de açaí foram perdidas. Seu França resume bem o que muitos já notaram e o que os pesquisadores já registraram: “A quentura tá ficando mais quente”.
“Quando eu tinha meus 18, 20 anos, a gente trabalhava no terçado, limpando o roçado. A quentura a gente controlava, abanava um pouquinho e ficava legal. Mas agora, meu Pai do Céu, não tem quem suporte. Dá 10, 11 horas e o caboclo já tá achando ruim. Eu não entendo. Eu noto que a quentura ninguém mais controla”, afirma.
Mas, não se engane, ele não reclama. “A vida na comunidade não tem igual. Na cidade, a vida pesa. No interior é assim, todo mundo perto”. Conta que vira e mexe aparece um ou outro para lhe dizer que vai partir da comunidade. A estes rompantes, logo responde: “Você acha que tá ruim, meu irmão? A vida já foi muito mais difícil…”