Desde 1968, quando o CPRM iniciou o monitoramento hidrológico em Porto Velho, nunca havia sido registrado um nível tão baixo da água do Madeira no mês de agosto. A seca trouxe à tona os pedrais e bancos de areia que foram vistos ao longo do manancial, deixando a navegação na hidrovia muito perigosa.

por Ana Aranda

Porto Velho (RO) – A estiagem extrema que reduziu os níveis de chuva e intensificou a vazante dos rios no sul da Amazônia este ano comprometeu o abastecimento de água potável em Porto Velho, capital de Rondônia. Banhada pelo rio Madeira, a cidade enfrentou uma crise hídrica entre os meses de junho a outubro, quando faltou água para 60% dos moradores que utilizam poços artesianos ou cacimbas para o abastecimento.

Maior município de Rondônia – com 34 mil km² de extensão – e área de expansão da fronteira agrícola, Porto Velho também experimentou, no período da seca, altas temperaturas e a fumaça dos incêndios florestais.

As chuvas de novembro já normalizaram o abastecimento na cidade. No entanto, um levantamento das ações dos órgãos ambientais para enfrentar as secas feito pela reportagem da Amazônia Real mostra que Porto Velho, com seus 511,2 mil habitantes, não está preparada para as consequências da mudança do clima.

A Organização das Nações Unidas (ONU) vem alertando reiteradamente, por meio de dados da Organização Meteorológica Mundial (OMM), que o fenômeno climático El Niño (aquecimento das águas do Oceano Pacífico) irá provocar secas e enchentes extremas e recorrentes na Amazônia.

No dia 8 de novembro, a OMM lançou o relatório “O Clima Global em 2011-2015” durante a Conferência da ONU sobre o Clima (COP22), em Marrakech, no Marrocos. O relatório aponta que os eventos extremos registrados entre 2011 e 2015 no mundo, entre eles as estiagens na Amazônia, têm relação parcial com a mudança climática provocada pela emissão de gases de efeito estufa (GGE)

Em outro alerta divulgado no dia 14, a OMM diz que o ano de 2016 deve ser o mais quente da história do monitoramento da temperatura mundial, iniciado no século 19.

Em 2014, Porto Velho foi a cidade que mais sofreu com danos sociais e econômicos por causa da grande enchente daquele ano do rio Madeira, quando também faltou água potável. Doze bairros e 14 distritos localizados na região ribeirinha ficaram inundados, o que provocou a contaminação dos poços artesianos.

Não bastasse o problema da captação de água no rio Madeira, o desmoronamento de um porto clandestino no bairro Triângulo acabou rompendo uma adutora. A Caerd teve que interromper a distribuição na capital.

“A adutora é uma tubulação de grande diâmetro que transporta água do manancial [rio Madeira] até a estação de tratamento. A tubulação rompeu e não deu para recolocar a máquina para saber o tamanho do problema porque a área, além de muito instável, foi interditada. Nós não nem tínhamos como saber se foi um rompimento parcial ou total”, disse Zacarini.

O rompimento da adutora afetou entre 10% e 20% do abastecimento do sistema principal da Caerd na cidade, reduzindo a distribuição em bairros periféricos e regiões mais altas, afirma o superintendente regional.

Faltou água até para o banho em Porto Velho (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
Faltou água até para o banho em Porto Velho (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)

Por causa da estiagem extrema, no dia 30 de setembro deste ano, o rio Madeira atingiu o nível mais baixo do ano: 1,9 metros. Faltou apenas 34 centímetros para o nível do manancial atingir a marca histórica da seca de 2005, que foi de 1,63 m medidos na estação de hidrologia de Porto Velho, segundo dados do monitoramento do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), órgão ligado ao Ministério de Minas e Energia.

A partir de 3,28 metros, o nível do rio Madeira fica restrito para navegação e captação d´água. A Companhia Estadual de Abastecimento e Saneamento Básico de Rondônia (Caerd) diz que a rede pública capta 70% da água distribuída do primeiro lençol freático do rio Madeira, que varia de oito a 12 metros de profundidade.

“O rio secou tanto que danificou o equipamento de captação. Ele começou a fazer a sucção de muito material sólido e tivemos que providenciar a manutenção”, disse o superintendente regional da Caerd, Vagner Marcolino Zacarini.

Na região ribeirinha do rio Madeira, a Prefeitura de Porto Velho distribuiu água potável para 2.589 famílias (12.945 pessoas) em fardos de dez pacotes, cada um com 12 litros de água potável, a cada 90 ou 120 dias. Essa quantidade é determinada por lei.  “É só para beber. A gente sabe que não é suficiente. É só para amenizar a situação”, disse Vicente Bessa, da Secretaria de Projetos Especiais e Defesa Civil (Sempedec).

Comprando Água

O poço secou. População comprou água para o abastecimento em casa (Fotos: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
O poço secou. População comprou água para o abastecimento em casa (Fotos: Marcela Bonfim/Amazônia Real)

O morador do bairro Planalto, o cabeleireiro Nailton Anastácio disse que no mês de julho já começou a faltar água nas torneiras e o poço artesiano “ficou nas últimas”.  O poço tem profundidade de 15 metros. “Há quatro anos o poço abastecia a residência. Vou ter que dar um jeito para aumentar a profundidade. Sem água é que não dá para ficar”, afirmou Anastácio.

Na periferia de Porto Velho, o serviço de limpeza ou aprofundamento dos poços-cacimba custa, em média, R$ 60 a diária do serviço. A moradora Érica da Fonseca Alves tem um poço-cacimba em casa, com 14 metros de profundidade, que precisou de uma limpeza durante a seca. “E ainda tivemos que comprar água mineral”, relata ela.

Mesmo as residências incluídas na rede de abastecimento da Caerd sofreram com a estiagem em Porto Velho. É o caso da família da estudante Amanda Pereira, do bairro Teixeirão. Ela contou que no período da seca a água da rede fica fraca na torneira. “Acaba de manhã e só vai retornar à noite, às vezes de madrugada”, disse a estudante, explicando que como a casa não tem caixa de armazenamento, a família, quando ficou sem água, pediu ajuda  aos vizinhos.

A funcionária pública Marinete Oliveira, moradora do bairro Planalto, em Porto Velho, viu a despesa da família aumentar durante a estiagem na cidade. Ela diz que gastou R$ 6 mil para fazer um novo poço artesiano, pois o que tinha antes secou.  Além do poço, ela passou a comprar água mineral para o consumo. “Quem tem família maior sofreu mais com o problema da falta d´água. Muitas famílias aqui na redondeza ficaram em situação muito mais difícil do que a nossa. Não é todo mundo que tem recursos para comprar água mineral e melhorar as condições dos poços-cacimba”, disse.

O rio é a principal rodovia

O rio Madeira é uma hidrovia importante da Amazônia Ocidental (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
O rio Madeira é uma hidrovia importante da Amazônia Ocidental (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)

Na navegação, a vazante do rio Madeira prejudicou as viagens de embarcação de passageiros e do transporte comercial entre Porto Velho e Manaus, em um percurso de mais de 1.000 quilômetros que revela que sem os rios as cidades são seriamente afetadas.

Pela hidrovia do Madeira é transportado todo o combustível e gás de cozinha que abastecem Rondônia, Acre e noroeste do Mato Grosso. Também é escoado boa parte da produção de grãos do Mato Grosso e de Rondônia. Além do transporte de alimentos, automóveis, ração animal, insumos para a agricultura, máquinas, madeira e outros produtos entre Porto Velho e Manaus.

O Madeira é o único meio de acesso para as comunidades que vivem ao longo do rio e têm a capital como ponto de apoio para tratar da saúde, fazer compras, ir ao banco e resolver outras questões.

Desde 1968, quando o CPRM iniciou o monitoramento hidrológico em Porto Velho, nunca havia sido registrado um nível tão baixo da água do Madeira no mês de agosto, com 2,24 m no dia 16 daquele mês. A marca histórica foi em 10 de setembro de 2005 com 1,63 m. A seca trouxe à tona os pedrais e bancos de areia que foram vistos ao longo do manancial, deixando a navegação na hidrovia muito perigosa.

Leonides da Costa França, 29 anos, relata que há mais de dez anos viaja pelo rio, entre Porto Velho e a cidade amazonense de Humaitá, onde o marido trabalha. “A gente fica com medo de ir pelo rio. Quando viajo à noite, fico acordada, vigiando os meninos. Estou muito acostumada a andar no Madeirão, até gosto, mas agora estou com medo”, afirma ela.

Com a seca extrema na região aumenta a necessidade de dragagem e sinalização da hidrovia, que liga Porto Velho a Itacoatiara, no Amazonas, totalizando 1.086 quilômetros.

Na dragagem são retirados sedimentos do leito do rio, melhorando a segurança da navegação. A demora na realização do serviço já se tornou corriqueira nos últimos anos e é comparada a uma novela por usuários da hidrovia.

A Sociedade de Portos e Hidrovias do Estado de Rondônia (Soph) diz que uma licitação foi feita para a realização da dragagem do rio Madeira, mas a empresa ainda está em fase de certificação de documentos. A expectativa é a de que em 2017 os serviços comecem a ser executados.

Na enchente de 2014, a Defesa Civil de Rondônia fez um relatório apontando os danos sociais e econômicos decorrentes do desastre ambiental em sete municípios, inclusive Porto Velho. O prejuízo foi de R$ 2,8 bilhões (em bens privados) e R$ 620,5 milhões (em bens públicos). A população atingida pelas inundações foi de 153.692 pessoas.

Na ocasião, o governo de Rondônia informou que destinou R$ 22,1 milhões para atendimento às famílias afetadas. Neste valor estavam incluídos R$ 15,4 milhões repassados pela Defesa Civil Nacional.

A Defesa Civil ainda não divulgou um relatório sobre os danos econômicos e sociais causados pela seca de 2016.

O governo federal anunciou investimento. Conforme o Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil, no dia 3 de novembro o ministro Maurício Quintela visitou Porto Velho. Na ocasião, diz uma nota à imprensa, ele assinou um contrato para realização de serviços de dragagem do rio Madeira até a calha do rio Amazonas.

Foi contratado o consórcio formado pelas empresas JEED Engenharia e EPC Construções por R$ 80 milhões. O ministério disse que o serviço de dragagem será realizado nos próximos cinco anos, incluindo o balizamento da via fluvial. “Os trabalhos serão iniciados em 2017, quando a natureza permitir”, disse o ministro.

As terras caídas e barrancos

O barranco na Comunidade de São Carlos, zona rural de Porto Velho. (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
O barranco na Comunidade de São Carlos, zona rural de Porto Velho. (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)

Além dos prejuízos para a navegação e o abastecimento, a seca do rio Madeira potencializou o desmoronamento dos barrancos, fenômeno conhecido como “terras caídas”. Essa erosão é típica da região amazônica, onde, numa sucessão de cheia e estiagem, a água penetra nas laterais das margens. O rio seca mais rápido do que o tempo necessário para que a água possa escoar, os barrancos ficam pesados e caem. A instabilidade das encostas é um perigo para a população ribeirinha que constrói casas e vilas inteiras nestas áreas.

O problema preocupa a Defesa Civil Municipal, que este ano monitorou e alertou a população para o perigo em pelo menos 40 pontos ao longo do Baixo Madeira, onde o fluxo de pessoas é maior. “A nossa maior preocupação é com as crianças que utilizam os barrancos para chegar às escolas”, diz Vicente Bessa, chefe da Defesa Civil.

O fenômeno das “terras caídas” se verifica com menor intensidade no Alto Madeira, onde o rio tem curvas menos acentuadas e as barragens das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio aumentaram o nível da água a montante dos empreendimentos, o que contribuiu para reduzir os desbarrancamentos, de acordo com o geólogo do CPRM, Amilcar Adami.

O órgão tem um mapeamento de áreas mais propícias ao desmoronamento dos barrancos por região. Amilcar Adami cita como “muito grave” a situação do distrito de Calama, onde a localização geográfica propicia a erosão dos barrancos e a água ameaça levar edificações importantes para os moradores, como a igreja da comunidade.

Os distritos de Nazaré e São Carlos, os mais populosos do Baixo Madeira, e o bairro Triângulo, na área urbana da capital, são considerados pontos críticos para as “terras caídas”.

Vivendo a cheia e a seca

Comunidade de São Sebastião na zona rural de Porto Velho. (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
Comunidade de São Sebastião na zona rural de Porto Velho. (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)

Moradores da região ribeirinha do Madeira também sofreram com o problema da falta de água este ano. Em 2014 as famílias enfrentaram a maior enchente já vista em Rondônia, quando o rio chegou a 19,74 metros. Na época, os poços artesianos utilizados nas comunidades foram contaminados.

“Os poços que restaram depois da cheia estão contaminados na seca. Quem está tomando água do rio está tomando água contaminada, mesmo fervida e tratada com hipoclorito e está enfrentando problemas, como a ocorrência de diarreia, dor de barriga e diarreia. Inclusive agentes da Defesa Civil que tomaram água tratada na região de São Carlos foram hospitalizadas, passaram mal”, diz Vicente Bessa, da Defesa Civil de Porto Velho.

No Distrito de Nazaré (distante 150 quilômetros por via fluvial de Porto Velho), a população foi afetada pela maior enchente e agora enfrentou as consequências da estiagem severa de 2016. Dois eventos extremos em menos de dois anos. A seca desse ano atingiu a população formada por 130 famílias.

A Associação de Moradores de Nazaré diz que durante a seca providenciou a limpeza de um poço artesiano da comunidade que foi contaminado por água poluída na cheia. Ao menos 75 famílias receberam cinco galões de água potável, duas vezes por semana, segundo o presidente da entidade, Jéferson Pinto Tavares. Mas a água não é gratuita. Cada família pagou R$ 15 por mês pelo abastecimento com galões.

Vicente Bessa, chefe da Defesa Civil, disse que o órgão selecionou 15 localidades indicadas pela Secretaria Municipal de Agricultura (Semagric) para construir poços artesianos e, assim, evitar a falta d´água durante as secas extremas em Porto Velho. As obras ainda serão licitadas este ano. “Só que, para tirar água dos poços, tem que ter energia elétrica. Estou tratando, junto com a Eletrobras para resolver este problema”, disse Bessa.

Falta de chuva

A estação seca acontece entre os meses de julho, agosto e setembro, quando ocorrem menos chuvas nesta região da Amazônia. Como aconteceu em Rio Branco, no Acre, a seca deste ano em Porto Velho foi agravada pelo fenômeno climático El Niño, que é o aquecimento das águas do Oceano Pacífico.

Esse fenômeno mais intenso, também chamado de Godzilla pelos cientistas, reduziu as chuvas nas cabeceiras das nascentes do rio Madeira, que nasce com o nome de rio Beni na Cordilheira dos Andes, na Bolívia.

O engenheiro Franco Turco Buffon, do Serviço Geológico do Brasil, explica que existe uma relação entre os volumes de chuva que caem sobre a bacia hidrográfica com os níveis que o rio apresenta em seu percurso.

“Quanto maior for o volume de chuva, mais alto o nível do rio irá subir. Da mesma forma, quanto menor o volume de chuva, mais baixo o nível do rio irá descer. Durante o período chuvoso (de outubro de 2015 a julho de 2016) na região sul da Amazônia ocorreram volumes de chuva bastante abaixo dos valores médios esperados. Em consequência disso os níveis do rio Madeira também ficaram bastante abaixo dos valores médios esperados. Durante esse período o fenômeno El Niño agiu com grande intensidade na região da bacia hidrográfica do rio Madeira, reduzindo significativamente os volumes de chuva na região”, disse.

O meteorologista do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) no Amazonas, Gustavo Ribeiro, diz que a estiagem severa na parte sul da Amazônia ocorreu desde o ano de 2015 por efeito do fenômeno El Niño, que dificultou a formação de nuvens, diminuindo as chuvas e aumentando as temperaturas. “E por estes motivos os rios da região não tiveram grandes cheias”, disse.

A previsão para o mês de novembro, diz Gustavo, são de chuvas dentro da normalidade para o período em grande parte da Amazônia, com exceção do norte do Amazonas e em Roraima, onde as chuvas devem ficar abaixo da média.

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