Sem peixes, povos da Volta Grande do Xingu enfrentam a pandemia com insegurança alimentar. Após protesto no final do ano passado exigindo liberação de maior vazão do rio pela usina hidrelétrica, falta de água persiste em 2021.
Sem peixes, povos da Volta Grande do Xingu enfrentam a pandemia com insegurança alimentar. Após protesto no final do ano passado exigindo liberação de maior vazão do rio pela usina hidrelétrica, falta de água persiste em 2021.
A última pesca “boa” foi em meados de agosto de 2020. Os pescadores da comunidade Belo Monte do Pontal, no município de Anapu (PA), passaram sete dias pescando. Eles subiram o rio em canoas, como fazem tradicionalmente, até a Volta Grande do Xingu, área de 100 km no rio Xingu (PA), logo abaixo da usina, que foi barrada para abastecer a hidrelétrica de Belo Monte.
Nessa primeira pescaria, depois de meses do período de interdição para respeitar a reprodução dos peixes, o chamado “defeso”, voltaram da empreitada com 200 quilos de peixes, que abasteceram as necessidades da comunidade e geraram alguma renda para os envolvidos.
Em setembro, com o rio Xingu mais seco, os mesmos esforços e investimentos da comunidade renderam somente 100 quilos de peixe. Nas saídas seguintes, os comunitários tentaram ir de carro até outros locais de pesca, já que o acesso em canoa aos pontos de pesca estava impossibilitado pela seca. O nível das águas já estava tão baixo, que não foi possível manter a pescaria.
“Depois de agosto, foram só tendo prejuízo”, conta Ana Laíde. Ela mesma nasceu em uma comunidade tradicional pesqueira, e trabalha no Movimento Xingu Vivo como articuladora política e na formação de educação social. A tarefa para a qual foi chamada é desafiadora: trabalhar para estreitar os laços entre comunidades ribeirinhas e povos indígenas impactados pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
Ao longo do segundo semestre de 2020, a chamada piracema, período de reprodução dos peixes, não ocorreu na Volta Grande do Xingu, casa de 3 povos indígenas e 25 comunidades ribeirinhas. Segundo os moradores, o motivo é que Belo Monte desvia água demais para o reservatório da usina. Nos três primeiros meses de 2020, 66% da vazão de água recomendada para Volta Grande foram desviados para o funcionamento de Belo Monte, segundo dados da ANA.
“Na ausência da piracema, se perde a vida do rio, e a esperança de povos que vivem dessa cultura, que é a pesca”, desabafa Ana Laíde.
Uma das principais preocupações de Ana Laíde é, justamente, a falta de alimentos de populações dependentes da pesca em meio à pandemia. “O que eles oferecem pra gente é mortadela. Só embutidos. A soberania alimentar está desse jeito”, afirma Laíde.
Podcast Terra Arrasada
Enfrentar a pandemia em meio aos impactos causados por Belo Monte é precisamente o tema do último episódio do podcast Terra Arrasada, que acompanha os impactos da pandemia na Amazônia, investigando a pergunta: como a destruição histórica dos territórios amazônicos permitiu que o novo coronavírus tivesse uma dispersão tão letal na região?
O episódio Os atingidos por Belo Monte aborda como populações ribeirinhas expulsas há cerca de seis anos de suas casas enfrentam a pandemia enquanto ainda tentam reorganizar suas vidas: sem acesso ao local onde trabalham e de onde tiravam o alimento básico para comer e fonte de renda, os peixes.
Escute abaixo o episódio completo do podcast sobre como os impactados por Belo Monte enfrentam a pandemia:
Falta de água persiste em 2021
Em novembro do ano passado, cerca de 150 pessoas de cinco municípios afetados por Belo Monte fecharam a rodovia Transamazônica (BR-230), na altura do km 27, em protesto de 5 dias contra a Norte Energia, empresa responsável pela hidrelétrica de Belo Monte. Elas exigiam a liberação, até março de 2021, da vazão de água suficiente para possibilitar a piracema.
Segundo Ana Laíde, Belo Monte liberou água, mas não o suficiente: “Eles soltaram água. Mas você sabe que essa situação é muito morosa. Em novembro era para ter água na Volta Grande. Era para os frutos estarem caindo das árvores e alimentando os peixes. Muito triste que esse ano não vai ter piracema. Vai ter alguns peixes desovando, mas já vamos para o quarto ano consecutivo sem piracema no rio.”
O que diz o Ministério Público Federal
O Ministério Público Federal (MPF) do Estado do Pará enviou um ofício em 16 de dezembro do último ano ao Ibama. O documento solicita que o Ibama, na condição de polícia ambiental, em face aos descumprimentos de decisões administrativas pela Norte Energia, garantisse um nível de água suficiente para a piracema na Volta Grande do Xingu, mediante maior liberação de água por Belo Monte.
Por meio de sua assessoria de imprensa, o MPF-PA afirmou que o Ibama respondeu ao ofício, mas que “o conteúdo das informações fornecidas pelo Ibama [ainda] está em análise” pelo MPF.
Ainda em dezembro, o MPF publicou em nota no seu site, que após um impasse com a empresa sobre o hidrograma a ser mantido para a Volta Grande do Xingu, foi aplicado “um hidrograma provisório, com vazão máxima de 14 mil e 200 metros cúbicos para alimentar os ecossistemas do rio. A empresa não cumpriu esse hidrograma, tentou derrubá-lo na Justiça, mas perdeu. Agora, faz pressão para que possa desviar mais água em 2021”.
O Movimento Xingu Vivo, por sua vez, solicita uma vazão ainda maior para manter as condições de vida na Volta Grande do Xingu: 16 mil metros cúbicos.
Procurada, a Norte Energia não respondeu às perguntas enviadas até a publicação desta matéria.
A disputa ao redor do hidrograma a ser mantido no curso natural do rio parece uma situação ainda longe de ter fim.
Sobre Terra Arrasada
Terra Arrasada é um podcast sobre como o novo coronavírus impactou a vida de populações da Amazônia. É uma série com cinco episódios, contados por indígenas, quilombolas e ribeirinhos de diferentes partes da Amazônia. Eles explicam como a história de destruição da região onde vivem se relaciona com o impacto cruel do coronavírus em 2020. Esse é um projeto do Le Monde Diplomatique Brasil, com apoio do Rainforest Journalism Fund em parceria com o Pulitzer Center. Uma produção de Fábio Zuker e Trovão Mídia.
Veja a série completa: https://diplomatique.org.br/terra-arrasada/