Certificação e agroextrativismo se firmam como estratégias para geração de valor. A segunda reportagem da série Gargalos da Bioeconomia mostra que cadeia produtiva busca melhor forma de manejar a espécie.
O fruto do açaizeiro é uma das principais fontes de renda de muitas das comunidades tradicionais amazônicas. Até o início dos anos 1990 era consumido apenas regionalmente, mas depois ganhou o Brasil e o mundo. A demanda global crescente tem forçado a troca do agroextrativismo por um manejo mais intenso da floresta, o que tende a causar mais desmatamento. Em outros locais, uma opção desenfreada pela monocultura da cobiçada palmeira pode até aumentar a produção em um primeiro momento. No médio prazo, entretanto tende a levar a queda na quantidade de frutos por safra por causa da perda de biodiversidade.
Muito antes desse embate produtivo das últimas duas décadas, o açaí serviu por séculos de fonte calórica para os indígenas e para boa parte da população do norte do Brasil. Entre todas as 2600 espécies da família Arecaceae, apenas três são considerada de interesse econômico. A Amazônia oriental, onde está Belém, é um dos centros de origem dos açaizeiros tropicais.
De acordo com o rico folclore do norte brasileiro, os duros frutos da palmeira que pode passar de 20 metros de altura foram descobertos pelos indígenas de uma tribo Tupi que vivia na atual região da capital paraense. Como a população estava crescendo mais do que a oferta de alimentos, Itaki, chefe do grupo, definiu que todas as crianças que nascessem seriam sacrificadas. Ninguém escapou da regra. Até mesmo a neta do chefe Tupi perdeu a vida logo após nascer.
A filha de Itaki, Iaça, depois de perder a filha, chorou muito e pediu para os deuses Tupã lhe indicarem o caminho que pudesse fazer com que o sofrimento das jovens mães acabasse. Uma noite, ela ouviu o choro de uma criança na floresta, ao seguir o som, viu um bebê perto de uma palmeira. Pensando ser sua filha, ela correu até a árvore, mas a criança desapareceu. Na manhã seguinte, Itaki foi encontrada morta, mas com olhos abertos, olhando para o alto da planta. A palmeira estava cheia de frutinhos e os indígenas começaram a se alimentar do suco roxo extraído deles.
O açaí (fruto que chora em Tupi) sempre foi muito consumido no norte com farinha de mandioca, de forma totalmente diferente do que se vê hoje no sul do Brasil, quando o fruto é acompanhado de banana, granola e outros ingredientes. Essa transformação ocorreu a partir dos praticantes de MMA. A família Gracie tradicional praticante de lutas, é de Belém, e começou a popularizar o alimento ao associá-lo ao esporte e a uma vida saudável. Nos anos 1990, o açaí começou a fazer parte do dia a dia dos surfistas e dos frequentadores de academia no Rio de Janeiro. De surfista para surfista, os frutos da palmeira amazônica chegaram à Califórnia e, depois, ao resto do mundo.
O sucesso do fruto que chora, sua cor vinho e seu aroma considerado agradável, fez o Brasil se transformar no maior produtor de açaí do mundo. De acordo com os dados da Conab, a região Norte do país concentra a maior parte da produção de açaí, com Pará e Amazonas respondendo por 87,5% do total. O estado do Pará é o maior produtor mundial de açaí, tendo dobrado sua produção nos últimos 10 anos e o maior exportador brasileiro, seguido do Amazonas. Pesquisa feita pelo IBGE indica que em 2019 o Brasil produziu 222,7 mil toneladas, 0,5% acima do registrado em 2018. Essa produção do ano passado movimentou R$ 588,6 milhões, 0,6% menos do que no ano anterior.
As ilhas do açaí
Em outros estados amazônicos, como no Amapá, o açaí também vem gerando renda. No arquipélago do Bailique, localizado a 200 km de Macapá, onde o deslocamento fluvial até a capital pode demorar mais de 12 horas por causa da agitação sempre presente no rio-mar, a comunidade local vem se organizando desde 2013 para fugir dos conflitos que o aumento da produção do açaí pode gerar.
Mapa do Índice de Progresso Social – em verde o Arquipélago do Bailique
As conquistas, segundo Geová Alves, 35, diretor tesoureiro da Amazonbai (nome fantasia da Cooperativa dos Produtores Agroextrativistas do Bailique) estão chegando, ano após ano, com organização local, certificação e uma visão sustentável sobre a floresta. Das oito ilhas que formam o Bailique (as três últimas letras do nome comercial da cooperativa se referem as três primeiras letras do nome do lugar), sete são habitadas atualmente. Nelas, vivem 51 comunidades ribeirinhas que buscam a sobrevivência na pesca e na floresta.
“Sem valor agregado e boas práticas de produção voltadas para um agroextrativismo que mantém a floresta em pé a melhora da qualidade de vida das famílias não acontece”, afirma Alves.
Além do Bailique, a cooperativa também agrega representantes do Beira Amazonas, uma região vizinha. “O aumento da produção é feito via manejo, mas dentro do conceito de preservação da biodiversidade”, diz o diretor tesoureiro da associação local. A comunidade amapaense, quase perto da linha do Equador (o estádio de Macapá tem cada metade do campo em um hemisfério), conta com a ajuda tanto de órgão públicos, como a Embrapa, quanto de ONGs para se fortalecer ainda mais.
Certificação de qualidade e sustentabilidade
Uma das estratégias que têm gerado bons resultados no interior do Amapá, segundo Alves, envolve a obtenção de certificações de primeira linha, o que agrega valor ao açaí do Bailique. Em 2019, a Amazonbai tornou-se a primeira instituição do país a receber a Certificação FSC para Serviços Ecossistêmicos. Processo que veio se somar aos das obtenções dos certificados FSC para Manejo Florestal em 2016 e FSC Cadeia de Custódia em 2018.
A Amazonbai, segundo Alves, é dona do primeiro manejo certificado de açaí do mundo. A soma das três certificações custaram por volta de R$ 150 mil, processos que foram financiados pelo fundo social da ONG Imaflora e por um fundo de uma organização internacional filantrópica.
Selos de qualidade como os obtidos pela Amazonbai têm vários significados para o mercado, ainda mais em um momento em que a exigência do consumidor em ter acesso a produtos que não destruam o meio ambiente e nem sejam fruto de trabalho infantil aumenta.
Estimativas mostram que o preço médio do cesto de açaí de 14 quilos aproximadamente, que antes da certificação custava R$ 25, chegou a dobrar após a obtenção da certificação pela comunidade do Amapá. “Nosso próximo passo, agora, que deveria ter sido dado este ano mas por causa da pandemia ficou para o ano que vem, é a inauguração da nossa própria agroindústria em Macapá”, afirma Alves.
Com este objetivo, a simples venda do caroço, como os extrativistas também se referem ao açaí, vai ser substituída por produtos com valor agregado. “Temos uma fórmula única para a produção de um sorvete, além de outros produtos”, explica o representante da Amazonbai. A instituição, que tem uma estrutura organizacional horizontal robusta, o que permite uma maior representatividade dos associados, também investe em capacitação.
Parte dos recursos das vendas do fruto amazônico são aplicados na Escola Família Agroextrativista, no próprio Bailique. “Os jovens têm uma opção. A nossa proposta é formar mão de obra local”, diz Alves.
Problemas de infraestrutura
A realidade do agroextrativismo do Bailique, onde os atravessadores estavam bastante presentes há menos de uma década, não é padrão em outras áreas da Amazônia, muito pelo contrário. A falta de organização comunitária se soma a várias outras carências, muito presentes na maioria das comunidades que vivem do açaí.
“Em muitos lugares, o primeiro gargalo está na infraestrutura mesmo. Não existe nem energia de forma confiável durante as 24 horas do dia e muitas vezes também não tem água tratada”, afirma Joaquim Belo, secretário de Relações Internacionais do Conselho Nacional dos Extrativistas.
Outra lacuna importante, segundo o extrativista também do Amapá, é a falta de organização técnica das comunidades para dominar todas as etapas da cadeia de produção. “Não podemos ser apenas um fornecedor de matéria prima para os atravessadores e compradores em geral.
“Saber negociar e entender o mercado também são itens importantes para não ficarmos dependentes apenas dos leilões no porto durante a safra”, diz Belo fazendo referência a forma mais comum de venda do açaí que, durante o pico da safra, costuma ter seu preço rebaixado bastante pelos compradores. A falta de crédito e de capital de giro, muitas vezes, são outros grandes gargalos enfrentados pelos agroextrativistas do açaí.
A realidade na comunidade da Ilha do Capim, tradicional comunidade ribeirinha agroextrativista da Amazônia, localizada no município de Abaetetuba, no Pará, a 50 km de Belém, está mais em sintonia com o que se observa na cadeia do açaí de uma forma mais geral.
Os produtores, por exemplo, sofrem todos os anos com os intermediários, ou marreteiros, como eles são chamados na região. Esse elo da cadeia produtiva, normalmente formado por pessoas vindas de outros municípios, costuma rebaixar o preço da rasa do açaí (recipiente de fibra vegetal para armazenar o fruto com capacidade para 14 quilos) em mais de 20%, o que tem gerado uma grande distorção nas contas anuais dos agroextrativistas.
“A forma como o mercado está estruturado pressiona os produtores a intensificar o manejo sobre a vegetação. Precisamos nos organizar para criarmos um mercado mais justo. E discutir com os moradores os caminhos para aumentar a renda a partir da organização do mercado e da não especialização da vegetação”, afirma Dadiberto Pereira Azevedo, filho da terra, assessor da associação agroextrativista da Ilha do Capim e autor da dissertação “A construção social do mercado de Açaí para fortalecer a gestão territorial na Ilha do Capim, no Município de Abaetetuba no Estado Pará”, aprovada no mestrado profissional em sustentabilidade junto a povos e terras tradicionais da Universidade de Brasília (UnB).
O dilema dos extrativistas do interior do Pará serve para ilustrar um cenário mais global presente na cadeia do açaí. Com a demanda em alta, os produtores precisam aumentar o manejo dos açaizeiros. Processo que muitas vezes será incompatível com a estratégia de se manter a floresta em pé. No manejo intensivo, como as demais plantas são quase todas eliminadas, a monocultura do açaí vai imperar. A biodiversidade reduzida, no médio e longo prazo, tende a reduzir a produção local.
Para mudar essa tendência, explica Azevedo, que inclusive já está causando impactos ambientais em algumas comunidades na Ilha do Capim, como o assoreamento de igarapés, a saída é o fortalecimento cada vez maior das comunidades.
“Temos que trabalhar várias coisas. Diminuir a relação com os atravessadores aumentando o diálogo direto com os processadores, que muitas vezes nem sabemos quem são, agregar valor ao produto por meio de agroindústrias, aumentar os canais de venda para as escolas por exemplo e discutir as questões ambientais que começam a se fazer presente”, afirma Azevedo que pretende continuar com sua pós-graduação, cursando o doutorado, na Universidade Federal do Pará, em Belém.
Manejo x Monocultura
O caminho a ser escolhido pelos produtores do interior do Pará nos próximos anos vai ser emblemático tanto para a cadeia do açaí quanto para o impacto que a cultura vai gerar sobre a biodiversidade amazônica, segundo o pesquisador Henrique Pereira, da Universidade Federal do Amazonas.
“Se formos atacar a problemática da ideia de “manter a floresta em pé” em termos gerais, teremos que diferenciar claramente os dois modelos básicos de agronegócio que estão associados com a cadeia de valor global do açaí: o tradicional baseado no manejo de florestas extrativas e o moderno, centrado na domesticação das espécies e na monocultura.”
O modelo modernizante e agroquímico da monocultura do açaí no estilo “plantation” e que segue o pacote tecnológico desenvolvido por empresas como a Embrapa – CPATU tem como principal referência as propriedades da cidade de Humaitá no Amazonas, explica o pesquisador amazonense.
Enquanto o modelo baseado no manejo dos açaizais (florestas nativas ricas em açaí) será mais possível de ser desenvolvido em áreas protegidas, particularmente em unidades de conservação de uso sustentável e eventualmente em assentamentos diferenciados onde sejam mantidas áreas extensas e contíguas de floresta nativa.
Segundo Pereira, é importante destacar que há duas espécies principais de açaí na Amazônia. A nativa do Pará (Euterpe oleracea) de solos inundáveis, como também é o caso do Amapá, e a do Amazonas (Euterpe precatoria), encontrada em solos de terra-firme. A Embrapa, entretanto, busca desenvolver o híbrido das duas espécies.
“No Amazonas, os agricultores familiares, por conta própria, estão desenvolvendo com base em erros e acertos plantios simples ou consorciados da espécie de açaí de terra firme, uma versão com baixos insumos do modelo desenvolvido pela Embrapa”, diz o especialista.
De acordo com o professor da Universidade Federal do Amazonas é consenso que se a preocupação for gerar renda e preservar a floresta, o modelo extrativista, feito com o manejo adequado, é o que deve prevalecer. “Tecnologia para isso existe e são conhecidas”, diz.
O que não significa, como mostra o trabalho de pesquisa do morador da Ilha do Capim, que esse também seja um caminho totalmente livre de impactos negativos. Até porque, na experiência relatada por Azevedo, mesmo o manejo de áreas nativas, por ser cada vez mais intenso, vem apresentando consequências ecológicas não sustentáveis. Apesar de os índices de produção do açaí ter crescido nos últimos anos.
“Esses tipos de manejos são consequências de um conjunto de situações históricas, relatadas anteriormente como a ausência de organização interna da comunidade em relação aos mercados, o que contribuiu para o bloqueio da diversidade e a dependência de marreteiros. Além disso, a organização desses mercados em cadeias longas, que pressionam um único produto, fortalece as mesmas práticas de manejo. A comunidade tem que enfrentar os desafios internos mas também os externos, que são bem maiores. No entanto, a organização interna tem grande importância principalmente na gestão do território”, diz o pesquisador da UnB e morador da Ilha do Capim na dissertação.
Em se tratando da floresta amazônica e em comunidade locais, a pesquisa revela que depender apenas de um único produto, em uma região onde a natureza é exuberante tanto em terra quanto na água, passa a ser insustentável para a geração de renda e para a preservação ambiental.
Leia também a primeira parte do especial Gargalos da Bioeconomia