Sem modelo de desenvolvimento sustentável, florestas do Amazonas cedem à especulação fundiária e trilham caminhos que abateram a biodiversidade em MT e RO. Em 2020, o estado é o terceiro mais queimado no Brasil.
Por Izabel Santos, de Manaus (AM)
“No Sul do Amazonas, os crimes ambientais caminham lado a lado com a violência contra populações tradicionais”. A declaração é da agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Darlene Braga, que atua na Amazônia em defesa de homens e mulheres da floresta e causas socioambientais há mais de 30 anos. O que ela fala está de acordo com o que pesquisas e satélites têm mostrado ao longo dos anos. Desmatamentos, queimadas e conflitos fundiários acontecem, praticamente, nos mesmos locais, no Amazonas.
Darlene não está sozinha na sua percepção. O secretário geral do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) no Amazonas, Dione Torquato, tem 33 anos. É um homem jovem, mas já vivenciou diversos tipos de conflitos contra populações tradicionais da Amazônia. “Essas situações são históricas no sul da região”, avalia. Na opinião dele, a maior motivação para essas situações é a grilagem de terras.
“Mas hoje a gente vê que esse cenário está avançando para a região central do Amazonas”, diz Torquato.
“Temos visto o desmatamento e as queimadas avançarem em municípios que antes não registravam índices altos. A insegurança fundiária também contribui muito para essa situação, que caminha cada vez mais para o centro do estado e também leva às queimadas e ao aumento dos conflitos por terras”, relata o secretário. “O que tem contribuído muito com o desmatamento é a orientação política do governo Bolsonaro, que favorece o desmatamento, com o enfraquecimento dos órgãos ambientais e da fiscalização, com a diminuição de investimentos”, acrescenta.
Em 2019, o Amazonas perdeu 1.556,18 km² de florestas para o desmatamento, segundo dados do Prodes/Inpe. Sete municípios localizados no Sul do estado concentraram 81% dessa área desmatada: Lábrea, Apuí, Novo Aripuanã, Boca do Acre, Humaitá, Manicoré e Canutama.
De acordo com o Imazon, números preliminares indicam que a maioria do desmatamento é especulativa, para fins de grilagem, e impulsionada pelas obras da BR-319, rodovia que liga Porto Velho (RO) a Manaus, que também favorece a expansão da pecuária no arco do desmatamento.
“As áreas desmatadas são destinadas a atividades de pastagem, agricultura e mineração. Considerando dados do MapBiomas, a área de pastagem no Amazonas, até 2019, é de 23.237,72 km², responsável por 97,6% da área desmatada no estado”, explica o pesquisador do Imazon, Carlos Souza Júnior, que estuda a dinâmica de uso do solo desde 1992.
Modelo de desenvolvimento predatório
O Amazonas é economicamente pouco diverso. Não tem estradas que liguem o estado a grandes centros econômicos, possui uma hidrelétrica e a economia depende da indústria da Zona Franca de Manaus (ZFM), que tem suas atividades concentradas na capital, Manaus. Além disso, não é autossuficiente na produção de alimentos.
Maior do país, o estado tem reafirmado o discurso de desenvolvimento sustentável e uso dos ativos naturais, como no recente lançamento do programa ‘Amazonas mais Verde’. Na prática, no entanto, os municípios do sul, mais conectados a Rondônia, Acre e Mato Grosso que à própria capital, já operam na mesma lógica predatória vista nesses estados.
O pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Raoni Rajão avalia que produzir no estado é caro, pela distância de centros consumidores e falta de infraestrutura de transporte. Mas, adquirir um pedaço de terra no Amazonas é muito barato porque, muitas vezes, são áreas públicas invadidas com expectativa de regularização fundiária. A maior parte dessas áreas agora queima e coloca o estado como o terceiro em número de focos de calor do Brasil.
“Hoje, a região que mais queima e é desmatada no Amazonas é o sul do estado, na fronteira com Rondônia e Acre. Mas é preocupante também ver o desmatamento se intensificando na direção da transamazônica e ‘subindo’ a BR-319, entre Porto Velho e Manaus, já na expectativa de pavimentação da área”, avalia Rajão, que é coordenador do Laboratório de Gestão e Serviços Ambientais da UFMG.
Essa área ocupada é a porta de entrada para crimes ambientais. “O coração da floresta não está queimando, o problema é exatamente nessa ‘borda’, onde as áreas, ainda com floresta, encontram a fronteira de expansão agropecuária e grilagem de terra no arco do desmatamento”, explica o pesquisador.
“A questão é que áreas que eram floresta quase inteiramente conservadas há uma década, como a terra do meio e a BR-163 [ambas no Pará], hoje se transformaram em fronteiras de desmatamento”, diz Rajão.
Para o especialista, a expectativa de que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) irá titular centenas de milhares de imóveis, junto com obras de pavimentação, é uma combinação explosiva que gera expectativa de valorização das terras e incentiva o desmatamento pensando no lucro futuro com a revenda, em vez da produção propriamente dita.
Fiscalização sem foco
Hoje, 57,3% dos 1.559.167,889 km² do território do Amazonas estão em áreas protegidas – 30,23 % correspondem a unidades de conservação e 27,07% a terras indígenas, de acordo com a Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema) do Amazonas.
Dione Torquato diz que, entre as atividades prioritárias das equipes da Operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que vigora na região, está a fiscalização de áreas protegidas com efetivo das Forças Armadas. “No entanto, a gente acha que essa atuação não traz resultados, porque a maior parte dos conflitos acontecem justamente na borda [das áreas protegidas], onde o governo não fiscaliza. O que deixa as populações que estão nessa área vulneráveis, porque estão na linha de frente desse confronto. Dentro das unidades de conservação, mesmo com todas as suas fragilidades, nós temos uma certa governança”, avalia Torquato.
“Isso coloca em risco as populações tradicionais, pois as queimadas acontecem com mais frequência nas áreas de entorno e nas áreas de influência desses territórios. Ou seja, o evento acaba ameaçando de uma maneira ou de outra esses territórios protegidos como unidades de conservação e terras indígenas, que têm ameaçados recursos naturais e seus modos de vida”, diz Dione.
Quem percorre a Amazônia e convive com as comunidades tradicionais afirma que falta empenho dos governos estaduais pela regularização fundiária. “É muito difícil avançar em tratativas com os governos estaduais”, diz Darlene Braga, que é agente da CPT no Acre, mas que também atua no sul do Amazonas. “A gente vê isso no Acre, no Amazonas, em Rondônia… é muito difícil. Até mesmo no governo federal, mas nessa esfera podemos contar com o Ministério Público [Federal]. O que eu acho é que no MPF existem pessoas mais dispostas a fazer alguma coisa pelas pessoas mais vulneráveis”, acrescenta.
Polos de ilegalidades
O procurador do Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas, Rafael Rocha, atua no combate a crimes ambientais na Força Tarefa Amazônia (FT Amazônia), um grupo de trabalho criado no órgão para investigar crimes relacionados a desmatamentos, violência agrária, grilagem e mineração. “São temas interligados e é comum encontrar um viabilizando o outro”, explica. No sul do Amazonas, esses crimes se misturam, assim como as fronteiras com outros estados, de onde vem a pressão sobre os recursos naturais.
“As áreas protegidas são locais um pouco menos suscetíveis à grilagem, porque, quem invade, já tem uma expectativa muito baixa de que vai conseguir se apropriar dessas áreas. Não vou dizer que não aconteça, existem tentativas. Mas essas áreas têm uma segurança jurídica relativamente imune à grilagem, diferente do que acontece com terras públicas não destinadas”, diz.
Para o procurador, as terras públicas não destinadas, que são aquelas que pertencem à União, mas que ainda não tiveram uma função definida, como áreas de proteção ambiental ou territórios de populações tradicionais, remanescentes e indígenas, funcionam como polos de atração para ilegalidades, por isso, “é importante não deixar essas áreas sem destinação”. Além disso, a condição dessas terras pode gerar atritos de várias naturezas. “Existem conflitos entre fazendeiros e indígenas, mas também existem entre fazendeiros e fazendeiros”, explica.
“As terras públicas não destinadas não têm uma finalidade específica e, enquanto o Estado brasileiro não decide o que fazer, são áreas que praticamente convidam os invasores a ocuparem, desmatarem, a se estabelecerem nessas áreas e buscarem uma regularização, seja pela lei vigente, seja buscando algum tipo de fraude ou aguardando uma mudança da realidade, que se dá através de mudanças na legislação”, explica Rocha.
Nos últimos anos, a grilagem de florestas ainda não alocadas em nenhuma categoria de uso aumentou. Em 2019, foi a categoria fundiária onde o desmatamento mais avançou. Um estudo publicado este ano pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), aponta que, na Amazônia, 23% dos 49,8 milhões dessas áreas de florestas públicas não-destinadas foram declarados irregularmente como imóveis rurais, de uso particular, no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (CAR).
Além das mudanças constantes na lei, o procurador também chama a atenção para o déficit estrutural do Estado no que diz respeito à fiscalização na região. “Se o Estado, como um todo, não oferecer um conjunto de desincentivos para desestimular essa prática [de grilagem], esses crimes vão continuar acontecendo ou os envolvidos vão ficar aguardando a lei mudar”, conclui.
Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.
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