Herdeiros da luta pelo uso sustentável da Amazônia relatam como a falta de estrutura e o desmonte de uma das primeiras reservas extrativistas do Brasil permitem o avanço do desmatamento, fogo e pecuária. Queimadas na área mais que dobraram, em oito anos
por Leandro Chaves, de Rio Branco (AC)
O extrativista Rian Azevedo de Barros, de 19 anos, percorre diariamente cerca de quatro horas de estrada de seringa nas matas de Xapuri, no interior do Acre, levando consigo a missão de manter vivo o legado do ambientalista Chico Mendes.
Ele vive e trabalha com a extração do látex na reserva extrativista (resex) que leva o nome do líder seringueiro assassinado há mais de três décadas na região.
Barros é o filho mais novo de um dos sobreviventes dos sangrentos conflitos por terra que culminaram na morte de Chico, o Raimundão. Sua família é hoje uma das maiores incentivadoras do extrativismo como atividade econômica viável no território. A borracha extraída das seringueiras e a castanha coletada são suas principais fontes de renda. Além disso, pequenas plantações de arroz, feijão e mandioca e a criação de animais garantem sua subsistência.
“No início, eu tinha uma visão diferente, queria trabalhar na cidade. Mas, depois percebi que aqui na floresta também tem riqueza”, diz Rian Barros, extrativista.
“Levamos uma vida simples, sem luxo, mas, temos o necessário para vivermos. Mas, algumas famílias, infelizmente, não pensaram dessa forma e preferiram investir apenas na pecuária como forma de obter lucro fácil, só que isso tem um custo para a natureza, como as queimadas e o desmatamento”, avalia.
O jovem afirma possuir em sua colocação (área de coleta de látex) cerca de dez cabeças de gado para situações de emergência e esclarece que há diferença entre criar bovinos em quantidade moderada para uso familiar, o que é permitido segundo o plano de manejo da resex, e utilizar as terras de uma reserva extrativista somente para a pecuária.
A criação desses animais em larga escala é incompatível com a floresta, dada a necessidade de desmatar grandes áreas para implantação de pastagem.
Pressão permanente
A pecuária é hoje a atividade que mais impacta a Resex Chico Mendes, tendo o fogo como aliado na veloz substituição da mata por pastos.
Segundo monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o território é, de longe, o que mais queima, entre as dez unidades de conservação federais no Acre, concentrando, há pelo menos oito anos, mais da metade dos focos entre essas áreas.
De 1º de julho a 23 de setembro deste ano, foram registrados 2053 focos de calor na reserva, o que representa 60% das queimadas entre as unidades de conservação (UCs) federais acrianas e mais de 8% do total no estado, no período. A segunda reserva extrativista que mais queimou neste ano, a do Alto Juruá, foi responsável por 13% do total do identificado nas federais no estado.
Em relação a 2012, início da série histórica do satélite analisado pelo InfoAmazonia, a quantidade de queimadas em 2020 mais que dobrou no território – foi de 904 focos (51% do total em 2012) para os atuais 2053. O total de 2020 é o segundo maior recorde, atrás apenas de 2019, que teve 2641 focos (67% do total de UCs naquele ano).
Mapa da Resex Chico Mendes com todos os focos de calor em 2020. Clique sobre a área da reserva para quantidade de focos de calor nas últimas 24h, última semana e no ano todo, e também para data e intensidade (frp) de cada ocorrência. Dê zoom out para ver outros lugares queimados na região.
Silvana Lessa, ex-chefe local do órgão federal que homenageia o ambientalista, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), trabalhou na resex entre 2012 e 2016 e ressalta que nem todos os focos de queimadas na área são para abertura de pasto. Ela cita que muitos moradores ateiam fogo de forma controlada, para a criação de roçados para a subsistência.
De acordo com Lessa, os incêndios florestais, de maiores proporções, são concentrados, em sua grande parte, nos limites da reserva com a rodovia BR-317, que liga o Acre à Bolívia e ao Peru.
“Essas áreas da reserva próximas à rodovia ficam nos municípios de Xapuri e Brasiléia e são de fácil acesso para muitos de fora do território. O índice de entrada irregular e as consequentes práticas ilegais vêm aumentando porque não há controle, falta gestão. O ICMBio não tem recursos pessoais e financeiros suficientes para lidar com o problema”, relata Silvana Lessa, ex-chefe da resex.
O órgão, que gerencia a resex, dispõe de apenas três analistas e dois técnicos, além do chefe, para cuidar dos quase um milhão de hectares da Chico Mendes. O território perpassa os municípios de Rio Branco, Brasileia, Xapuri, Assis Brasil, Capixaba, Sena Madureira e Epitaciolândia, no sudeste do Acre. Nos últimos dez anos, o número de famílias dentro da reserva dobrou de 2 mil para 4 mil, diferença que inclui tanto o crescimento populacional natural, quanto a chegada de arrendatários que prolongam a permanência na área.
Lessa explica que não é raro o arrendamento de terra por parte de moradores para a criação de gado por grupos de fora da reserva. A prática teria favorecido o crescimento populacional na área.
Fiscalização “capenga”
Julio Barbosa, secretário-geral da Associação dos Moradores e Produtores da Reserva Extrativista Chico Mendes em Xapuri (Amoprex), ex-prefeito da cidade, reitera que a capacidade de fiscalização do ICMBio é “capenga” e isso contribui para o aumento do desmatamento e dos incêndios florestais.
“Sempre foi assim, mas, nos últimos anos, é possível observar um verdadeiro desmonte no órgão. Para se ter ideia, os fiscais só podem se deslocar para apurar denúncia com autorização de Brasília. Se fizerem por conta própria, serão chamados a atenção”.
Para ele, o aumento das queimadas na área está diretamente relacionado ao avanço da atividade agropecuária na reserva, ao passo que o fogo tradicional para pequena agricultura não causa impacto na floresta.
“O incêndio que destrói a mata vem da queima de pasto aberto que perde o controle ou do próprio desmatamento”, explica Julio Barbosa, presidente da Amoprex.
Golpe no extrativismo
Um projeto de lei apresentado em novembro do ano passado na Câmara dos Deputados, em Brasília, quer retirar cerca de 8 mil hectares da Chico Mendes para possibilitar a agricultura e a pecuária sem conflitos com a legislação nessas áreas. Além disso, propõe a mudança de classificação do Parque Nacional da Serra do Divisor, localizado em uma das áreas de maior biodiversidade da Amazônia, para Área de Proteção Ambiental (APA) da Serra do Divisor, o que permitiria a exploração praticamente descontrolada da área.
De autoria da deputada federal Mara Rocha (PSDB-AC), irmã do atual vice-governador do Acre, Wherles Rocha (PSL), o PL 6.026/2019 argumenta que, anos antes da criação da resex, pequenos produtores rurais já cultivavam plantações e criavam rebanhos nas áreas a serem desmembradas da unidade. “A realidade é que essas famílias não conseguem encontrar sustento nos produtos extrativistas da região e encontram barreiras para permanecer nas atividades em que sempre laboraram”, diz o texto.
A coordenadora do Comitê Chico Mendes, Angela Mendes, filha do líder seringueiro, afirma que pessoas entraram na resex para desvirtuar o objetivo da área. “São pequenos grupos localizados, ligados ao agronegócio e sem o perfil extrativista. Quem participou da criação da reserva e entende a importância do território se manifesta a favor da manutenção da resex como ela está”, diz.
No ano passado, seis parlamentares federais do Acre intermediaram reunião entre o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (sem partido), e alguns dos infratores ambientais que ocupam as áreas que o PL pode retirar da resex. Entre eles, haveria um grileiro preso em flagrante por desmatamento e acusado de ameaçar de morte um servidor do ICMBio, um condenado pela Justiça Federal, por desmatamento e um denunciado por abertura de estrada ilegal na área, entre outros infratores.
O projeto de lei tramita na Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia (Cindra), desde dezembro, e terá de passar por outras três comissões até ir ao plenário da Casa para votação.
Em março, um grupo de extrativistas e indígenas foi até Brasília para convencer o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a barrar o avanço da matéria. Angela também participou do encontro. Ela considera o PL um “retrocesso ambiental e social”.
“É uma estratégia para acabar com as reservas extrativistas. Se diminui o território da Chico Mendes, abre-se precedentes para fazer o mesmo com outras unidades de conservação. Esse projeto já nasce equivocado, pois atende unicamente os interesses de uma minoria que, na verdade, não mora e nem se relaciona com a área”, esclarece a liderança.
Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.
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