A única reserva extrativista de responsabilidade de Mato Grosso luta contra as queimadas, a pecuária e garimpos ilegais.  “Ninguém nos tira daqui. É nossa casa. A floresta cuida de nós, e nós cuidamos dela”, diz moradora. Imagem de abertura: extração artesanal do látex é tradicional na área da Resex Guariba-Roosevelt há cerca de 150 anos.

por Juliana Arini, de Cuaibá (MT)

O fogo chegou por todos os lados da Reserva Extrativista (Resex) Guariba-Roosevelt, unidade de conservação no noroeste de Mato Grosso, a 1.200 km da capital, Cuiabá, e que possui um formato peculiar e um extenso perímetro. Seja por fazendas que contestam os seus limites, legalmente reconhecidos desde 2015, seja por invasores ilegais, como garimpeiros e madeireiros, as cerca de 80 famílias extrativistas enfrentam pressões crescentes. 

“Às vezes, o fazendeiro vizinho, mesmo sem muita intenção de prejudicar, também limpa o pasto e sobra pra quem vive do outro lado do rio”, conta Raimunda Rodrigues da Silva, 53 anos, uma das moradoras da resex.

“O fogo escapa e vem parar aqui, no nosso quintal.”

Segundo análise com dados do Prodes/Inpe, 17.565 hectares da Resex Guariba-Roosevelt (11% da área total) foram desmatados até 2019. Desse total, apenas 17% (2.915 hectares) já estavam assim na data de sua criação, em 1996. O restante (14.650 hectares) foi desmatado desde então, principalmente por invasores em busca de madeira. Ano passado, a resex foi a terceira sob gestão estadual com mais focos de calor, em todo o território nacional.

O que torna a unidade alvo de tanta degradação são, além de suas grandes reservas de madeira, possíveis jazidas de diamante e ouro.

Mas, para os moradores da região, a verdadeira riqueza das margens dos rios Roosevelt e Guariba são as seringueiras e castanheiras.

Juliana Arini
Cotidiano das comunidades à beira do rio Roosevelt depende da qualidade ambiental para manutenção do modo de vida tradicional
Juliana Arini
Cotidiano das comunidades à beira do rio Roosevelt depende da qualidade ambiental para manutenção do modo de vida tradicional

O modo de vida das famílias extrativistas na resex remonta a uma cultura de, pelo menos, 150 anos. Para os moradores da reserva, a floresta em pé tem mais valor do que as matas degradadas. A lógica ali praticada é perseguida por conceitos de sustentabilidade que poucos conseguem pôr em prática com a mesma destreza dos homens e mulheres que percorrem os caminhos da seringueira nativa, abertos na floresta amazônica por seus avós.

“Fumaça, queimadas, invasores, madeireiros, violência, garimpo ilegal, falta de incentivo, e, agora, o tal do coronavírus. É difícil! Mas, a gente é danado de insistente!”, afirma Raimunda, dando uma gargalhada capaz de provocar os mais céticos. A extrativista, magra, baixa e de menos de cinquenta quilos, exprime no olhar a força e a experiência da líder da reserva. 

Juliana Arini
Moradora da Resex Guariba-Roosevelt, Raimunda Rodrigues da Silva acompanha a rotina de queimadas que fogem de fazendas vizinhas e colocam a propriedade de comunidades extrativistas entre as que mais queimam no estado.

Ela explica por que as queimadas são novamente uma ameaça a um dos últimos remanescentes de floresta de Mato Grosso.

“A gente fica ali, do outro lado do rio sufocado e fitando a linha de fogo que se espalha por todos os lados. Dá aquela agonia, só de pensar nas chamas chegando. A colocação de seringa (os caminhos da floresta que levam às árvores de onde se extrai o látex) do meu marido fica perto de áreas de fazenda (na verdade invasões à resex). Se pegar fogo, acabou tudo. Mas, não vamos sair. Ninguém nos tira da  resex. É nossa casa. A floresta cuida de nós, e nós cuidamos dela. Somos como as árvores, enquanto estivermos de pé, vamos ficar”, diz.

Juliana Arini
Criação de gado sucede queimadas e desmatamento, podendo servir à ocupação indevida de áreas protegidas

Semana de fogo

A ameaça do fogo aumenta a cada dia. O monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostra Mato Grosso como o segundo estado com mais queimadas na Amazônia, acumulando 36% do total de focos (29.843 focos) entre 8 e 14 de setembro, segundo dados do satélite S-NPP da Nasa.

NASA Worldview/Terra Sensor MODIS
Queimadas registradas dentro da área da Resex e entorno, em 09 de setembro de 2020

Só no município de Colniza, onde está a maior parte da resex, foram 1.917 focos (3.85% do total de toda Amazônia). Em Aripuanã, município vizinho que também abriga parte da reserva, foram 1895 focos (3.81% do total), o que coloca os dois municípios entre os 10 com mais alertas de queimadas na Amazônia toda.

A Resex vem queimando desde julho. E tem fogo há 24 dias seguidos (desde 29 de agosto). Só na última semana, foram 103 focos (23% do total) captados pelo satélite S-NPP/VIIRS.

Leira prepara o terreno

Dentro da reserva extrativista, inúmeros são os registros de áreas de floresta derrubadas por invasores na forma de leira. O termo é usado para definir o primeiro estágio de uma das técnicas de queimada para conversão de áreas florestais em pastagens. Depois que a floresta é derrubada, galhos e tocos são amontoados, em um sinal claro de que tudo vai arder em breve.

Montagem de leira em área de desmatamento recente dentro da Resex Guariba-Roosevelt.

Antes do início da temporada de queimadas, os extrativistas já estavam com problemas. A falta de apoio do governo estadual, que até hoje não implementou a unidade de conservação sob sua responsabilidade, gera uma situação de total inanição de recursos. Falta tudo: barcos, combustível e infraestrutura para tornar viável a produção das famílias, entre outras questões. 

Em protesto, os moradores da resex fizeram um manifesto de resistência nas redes sociais. Intitulado “Desabafo dos seringueiros”, o vídeo foi gravado às margens do rio Roosevelt, durante uma venda de borracha.

Ailton Pereira dos Santos, presidente da Associação dos Moradores Agroextrativistas da Resex Guariba-Roosevelt, rio Guariba (Amorrar), mandou a mensagem para a Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA-MT), relembrando que nenhum representante da entidade estava presente na primeira venda do fabril de sangria do látex, no início de setembro. “Estamos resistindo, apesar da falta de apoio”, disse.

E eles resistem. Mesmo com todos os obstáculos, produziram na safra de 2020 (janeiro a agosto) 7,5 toneladas de látex, mesmo durante a pandemia da Covid-19. A safra da castanha de 2019/20 foi de 55 toneladas, e a de farinha de mandioca, 12 toneladas. Se conseguirem vencer as queimadas, a expectativa é que fechem o ano com mais de 15 toneladas de borracha extraída de manejo florestal, mostrando que, sim, a floresta tem um grande valor em pé.

Ahmad Jarrah/A Lente
Ailton Pereira dos Santos, presidente da Associação dos Moradores Agroextrativistas da Resex Guariba-Roosevelt, segura o ouriço da castanha

Mas, a ausência do estado é o grande obstáculo aos extrativistas no Brasil. Para mudar essa realidade, é imprescindível rever os paradigmas nacionais que impulsionam a desvalorização dessas comunidades. A afirmação é de Ângela Mendes, presidente do Comitê Chico Mendes, que leva o nome de seu pai, criador do movimento extrativista no país. 

“Não podemos exigir da comunidade internacional o que não fazemos aqui. Precisamos desconstruir tudo, nossa forma de pensar. Agora mesmo, ano passado, muitos brasileiros elegeram um governo que está ao lado de um discurso de não valorização das populações tradicionais”, disse, em um dos últimos grandes encontros presenciais dos povos da floresta, que reuniu mais de 450 lideranças na aldeia Piaraçu, na terra indígena do cacique Raoni Cayapó, em Mato Grosso.

“Ou mudamos, ou vamos perder os extrativistas”, alertou Ângela Mendes.

As perdas podem incluir tesouros incalculáveis. Um dos participantes do “Desabafo dos Seringueiros” foi Francisco Chaga Brito de Nascimento, seo Chico Preto, de 52 anos, um dos maiores produtores de látex do rio Roosevelt. Sua colocação é uma das mais distantes e tradicionais da reserva extrativista, já na divisa entre o Mato Grosso e o Amazonas.

Ahmad Jarrah/A Lente
Seo Chico Preto, dentro de uma tradicional casa ribeirinha, numa colocação às margens do Rio Roosevelt, na fronteira entre Mato Grosso, Amazonas e Rondônia

Ali, às margens de um rio que por pouco não matou o presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt, em uma insólita aventura com o Marechal Cândido Rondon, em 1914, e que, por ironia do destino, acabou recebendo o nome desse mesmo homem que criou as primeiras unidades de conservação do mundo, os extrativistas lutam para guardar a floresta para si e também para o resto do planeta.

Apesar dos esforços sobre humanos, eles ainda não ganham nada por isso das comunidades internacionais. O que lhes sobra para viver ainda vem da floresta que tanto protegem. O retorno vem através do látex e de outros tesouros, como o sangue-do-dragão, produto quase desconhecido nas cidades, mas, famoso entre os verdadeiros nativos da Amazônia. O remédio vem da seiva da dragoeira, uma árvore única, que sangra vermelho quando talhada e pode render litros em mãos hábeis, como as de Chico Preto. 

Ahmad Jarrah/ALente
Sangue-do-dragão e uma dragoeira

Apesar dos esforços sobre humanos, eles ainda não ganham nada por isso das comunidades internacionais. O que lhes sobra para viver ainda vem da floresta que tanto protegem. O retorno vem através do látex e de outros tesouros, como o sangue-do-dragão, produto quase desconhecido nas cidades, mas, famoso entre os verdadeiros nativos da Amazônia. O remédio vem da seiva da dragoeira, uma árvore única, que sangra vermelho quando talhada e pode render litros em mãos hábeis, como as de Chico Preto. 

“É pra virose, dor de estômago, câncer, um monte de coisa”, explicou Chico, durante uma amostra da extração em sua estrada de seringa.

Juliana Arini
Seringueira

Um lugar quase mágico, cercado de seringueiras centenárias. Algumas riscadas tão alto que só podiam ser acessadas por escada. “Assim é para não magoar a árvore, já estão muito judiadas”, explicou enquanto caminhava tão rápido pela trilha que chegava ser impossível alcançá-lo sem tropeçar no emaranhado de raízes.

Para muitos, como dona Antônia, essa seria uma perda incalculável, pois as dragoeiras podem ser a cura até para males que atualmente incomodam grande parte da população mundial.

“É, aqui nós tomamos remédios da farmácia da floresta e ninguém pegou o coronavírus. Mas, lá na Colniza já têm muitos casos. Até fiquei sabendo que o povo do invasor não acredita que existe o coronavírus. E ainda dizem que nós é que não sabemos de nada”, diz uma reflexiva dona Raimunda, que faz uso constante do sangue-do-dragão e da valorização da floresta em pé.

Autoridades responsáveis

Segundo a SEMA-MT, foram feitos trabalhos de fiscalização na Resex Guariba-Roosevelt para coibir as queimadas. Equipes do Batalhão de Emergências Ambientais (BEA), do Corpo de Bombeiros, estão na região e realizam trabalhos preventivos para combate aos incêndios.

Segundo o Comando do Batalhão do Corpo de Bombeiros Militar de Mato Grosso, a corporação conta com dois Instrumentos de Resposta Temporários (IRT) para atender a reserva extrativista: em Aripuanã, a Brigada Municipal Mista 7 é composta por dois bombeiros militares, ao passo que, em Colniza, a Base Descentralizada Bombeiro Militar 11 é formada por quatro bombeiros militares, sem a atuação de aeronaves. 

Juntas, as principais bases de combate a incêndios dessa região de Mato Grosso reúnem seis oficiais e são relevantes para uma área quase três vezes maior que o estado do Rio de Janeiro, ou o equivalente ao território da Inglaterra.

Ainda sem confirmação oficial, circulam na região rumores de que um grupo da Força Nacional estaria chegando para apoiar no combate às queimadas. Alguns moradores da resex afirmam que viram integrantes do Exército e dois helicópteros próximos a Vila Guariba, um dos locais mais violentos da Amazônia e palco de dezenas de chacinas noticiadas pela imprensa nacional e local por disputa de madeira e terras. O distrito é vizinho à Resex Guariba-Roosevelt e concentra grande parte dos focos de calor de Colniza.
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Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.

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