Mato Grosso é o epicentro da pandemia na Amazônia brasileira, ao mesmo tempo que as queimadas atingem territórios indígenas do estado. Povo Zoró afirma que 70% da população da terra indígena testou positivo para o novo coronavírus.

Mato Grosso é o epicentro da pandemia na Amazônia brasileira, ao mesmo tempo que as queimadas atingem territórios indígenas do estado. Povo Zoró afirma que 70% da população da terra indígena testou positivo para o novo coronavírus. Foto de abertura: combate a incêndio florestal em Sorriso. Foto: Secom/MT

por Juliana Arini, de Cuiabá (MT)

Em julho, o povo Zoró lançou um alerta de que mais de 100 indígenas estavam contaminados com o novo coronavírus. Eles pediam apoio para que a testagem em massa fosse realizada nas 32 aldeias da Terra Indígena (TI) Zoró, em Rondolândia, a 1.600 quilômetros da capital mato-grossense. Em agosto, depois de uma campanha virtual que possibilitou a testagem, foi constatado que quase 500 indivíduos estavam contaminados com a Covid-19 na TI, onde vivem 741 pessoas.

“Quando conseguimos o diagnóstico, mais de 70% do nosso povo estava com o coronavírus”, explica Alexandre Zoró, um dos diretores da Associação do Povo Indígena Zoró Pangyeje (Apiz). 

“Foi muito difícil conseguirmos isolar os primeiros casos diagnosticados, não havia espaço na Casa de Saúde Indígena de Ji-Paraná para nós. Muitos doentes voltaram para a aldeia, a 300 quilômetros da cidade mais próxima, e contaminaram seus parentes”, diz a liderança.

Alexandre Zoró, um dos diretores da Associação do Povo Indígena Zoró Pangyeje (Apiz).

Os Zoró foram os últimos Tupi-Mondé a serem contatados na Amazônia. Até 1976, eram considerados isolados e ocupavam um grande maciço florestal entre o noroeste de Mato Grosso e sul de Rondônia. A primeira consequência do contato, coordenado pelos sertanistas Apoena Meirelles e José do Carmo Santana, foi um grande surto de gripe que (quase) dizimou a população de aproximadamente mil indígenas. Os sobreviventes batizaram o evento de ‘febre do branco’.

A pandemia do novo coronavírus fez o povo Zoró reviver o temor de um novo genocídio por uma moléstia desconhecida de sua cultura. “A aldeia toda ficou abatida, não sabíamos o que era. Já tínhamos ouvido falar da pandemia na imprensa, mas poucos acreditavam que poderia chegar aqui. Começamos um movimento e uns vereadores ajudaram a comprar os testes”, conta.

“Até então, muitos não acreditavam na pandemia. Por sorte, conseguimos nos tratar com nossos medicamentos naturais e poucos ficaram em estado grave, mas uma das anciãs, dona Joana, faleceu da Covid”, afirmou Alexandre Zoró, presidente da Apiz.

Ontem (24), a morte de outra liderança local, Milton Gopam Zoró, também foi resultante da pandemia.

Milton Zoró e Joana Zoró, vítimas fatais da pandemia. Fotos: Arquivo Apiz.

A etnia integra o tronco linguístico Tupi-Mondé, assim como os Cinta Larga, Arara e Suruí. Além de laços culturais, esses grupos possuem territórios contínuos e formam um mosaico de áreas protegidas, também conectados a unidades de conservação estaduais, como a Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt, e a duas terras indígenas de grupos isolados, as TI Piripkura e Kawahiva do Rio Pardo.

Últimos remanescentes de floresta no estado


A região habitada pelos Zoró guarda os últimos remanescentes da floresta que um dia chegou a ocupar cerca de 50% do território de Mato Grosso. Composta por sete municípios (Juína, Juara, Brasnorte, Cotriguaçu, Rondolândia, Aripuanã e Colniza), que mantêm 80% de sua cobertura florestal, 31% dessas matas estão protegidas pelas terras indígenas e 4% resguardadas nas nove unidades de conservação. Segundo dados da Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema-MT), existem
86 mil quilômetros quadrados de floresta no Noroeste do estado.

A disputa pelas riquezas naturais tornou os municípios do Noroeste mato-grossense recorrentes campeões de desmatamento e queimadas. Colniza e Aripuanã estão na lista dos que mais desmatam a Amazônia, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). As duas cidades seguem sendo líder e vice-líder, em número de focos de calor, entre as cidades mato-grossenses no bioma na Amazônia.

Mato Grosso também ocupa a segunda posição no ranking de desmatamento acumulado no bioma, atrás do Pará. Segundo o Inpe, desde 1988, foram devastados 15.244 km2 de floresta nativa, correspondente a 18,94% das perdas de toda a Amazônia brasileira. A conversão de matas em pastagens é uma das grandes responsáveis por esse processo. 

O desmatamento na região começou com a abertura de estradas na década de 1960. Foi a construção da BR-364, entre Cuiabá (MT) e Porto Velho (RO), o marco da transformação no mundo dos povos Tupi-Mondé. As estradas trouxeram o garimpo, os madeireiros e a violência. Os povos Cinta Larga, Suruí, Gavião e os Zoró, que relutaram anos em ter contato com as cidades, acabaram encurralados.

Restou a pacificação semi-voluntária aos sobreviventes de inúmeras  chacinas, como a do Paralelo Onze, promovida por seringalistas e denunciada na Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1962. Após os conflitos, os Cinta Larga decidiram buscar a cidade de Aripuanã e começar um contato espontâneo com o mundo civilizado antes que toda a sua população fosse dizimada. A chegada dos indígenas na cidade tomou as manchetes dos jornais, à época. Parte da população de Aripuanã fugiu da cidade com medo de ser morta pelos indígenas. Um temor mútuo.

Caminhos da devastação

“Essa estrada que corta nossa terra é o problema. Muito difícil controlar os invasores. Vem madeireiro, vem doença, vem tudo. Depois da BR-364, abriram essa estrada estadual e tudo piorou”, explica Alexandre Zoró, em referência a uma estrada interestadual que não aparece nas imagens de satélite, mas é um conhecido caminho de madeireiros ilegais, interligada, inclusive, por uma balsa fixa no rio Roosevelt. A estrada é objeto de dois processos no Ministério Público Federal, desde 2011.

Incêndio florestal consome a região do Pantanal do Mato Grosso. Foto: Mayke Toscano/Secom-MT

Um problema similar atraiu Covid-19 e queimadas para outras terras indígenas, como a do povo Boe Bororo, no Pantanal. Em agosto, as reservas de Tadarimana e Tereza Cristina foram assoladas por grandes queimadas. Os indígenas chegaram a ser hostilizados na cidade de Rondonópolis, acusados de terem provocado o incêndio.

“O fogo chegou a destruir 60% da reserva florestal da TI Tadarimana, mas alguns ficaram atribuindo o começo das queimadas aos indígenas. Porém, estamos cercados de fazendas e estradas. O que acontece é o contrário, o fogo vem de fora para a nossa reserva. Nós somos vítimas, perdemos nossas roças e podemos perder nossas vidas também”, explica a liderança Estevão Bororo. 

A etnia foi uma das que mais tiveram territórios espoliados em Mato Grosso. Mais da metade do estado era terra ancestral Boe Bororo, inclusive boa parte do Pantanal. A tomada das terras indígenas por fazendeiros e a fragmentação cultural desse povo é relatada no Relatório Figueiredo (1967), que denuncia os crimes cometidos contra os povos indígenas durante a Ditadura Militar pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI).

A proximidade de estradas também trouxe casos de coronavírus para os Bororo. “Tivemos muitos casos, alguns precisavam ficar de quarentena e também perdemos um ancião, o seu José Agua. Mas o que a Covid nos mostrou é que estamos muito dependentes, do ponto de vista alimentar, das cidades. Não podemos mais viver nosso modo tradicional, pois não nos sobrou espaço para isso, agora vamos ter que nos reinventar”, explica Estevão Bororo.

Mato Grosso acumulava 83.490 casos de Covid-19 e  2.614 óbitos, até 24 de agosto. A capital é a campeã de casos e Rondonópolis, onde está a terra indígena Boe Bororo, está em terceiro lugar em incidência da doença, com 4.001 casos. 

Segundo monitoramento da Comissão das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), foram registrados 1.649 casos confirmados de coronavírus e 107 óbitos, entre e os povos indígenas de Mato Grosso, até 21 de agosto.

Múltiplos impactos

Estevão Bororo. Foto: Arquivo Pessoal.

Outro temor dos indígenas são os impactos sinérgicos que as queimadas e a pandemia podem surtir.

“Já temos a Covid e agora as queimadas. Como vamos fazer quando for necessário ir para a cidade levar crianças por causa de problemas respiratórios? Já tivemos problemas de atendimento com a pandemia”, questiona Estevão.

“O nosso temor é que, com a seca e as queimadas, o organismo das pessoas fique mais debilitado”, diz o líder Bororo.

Segundo o Climatempo/Inpe, a previsão é de que a seca, quando se intensificam as queimadas, perdure até outubro. “O mês de agosto já iniciou catastrófico no bioma Pantanal (Mato Grosso e Mato Grosso do Sul), com 2.170 focos de calor identificados pelos satélites, em apenas 10 dias. Esse número já é 29% maior do que o verificado em todo o mês de julho deste ano, e representa um aumento de 28%, em relação ao período de 2019”, explica Vinícius Silgueiro, pesquisador do Instituto Centro de Vida (ICV), entidade que monitora o desmatamento e as queimadas em Mato Grosso, desde 2004.

Segundo o pesquisador, apesar das atenções estarem voltadas para o Pantanal, já há fogo crescente nas regiões de floresta do estado. “A maior parte dos focos em Mato Grosso foi no Pantanal, com 1.809 focos (44,53% do total), porém, até 17 de agosto, a Amazônia já registra 1.392 focos (34,27%) e o Cerrado, 861 focos (21,20%)”, conclui.

Capacidade de combate

O combate às queimadas em Mato Grosso vem acontecendo através de uma ação conjunta entre os governos estadual e federal. O aporte de recursos é feito por meio da Operação Verde Brasil 2, coordenada pelo Ministério da Defesa. 

Segundo a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema/MT), está previsto que o estado tenha um efetivo direto de 400 militares do Corpo de Bombeiros Militar e 100 brigadistas civis, 40 viaturas, dois helicópteros, dois aviões de combate a incêndio e um avião de monitoramento. 

Além disso, estarão em condições de sobreaviso, caso as queimadas se intensifiquem, cerca de 800 bombeiros militares e 1.000 militares do Exército, para apoio em grandes operações, segundo o governo estadual.

Combate a incêndio florestal em Mato Grosso, agosto de 2020. Foto: Mayke Toscano/Secom-MT

As cidades de Aripuanã e Colniza são atendidas por uma Brigada Municipal Mista, em Aripuanã, e uma Base Descentralizada do Bombeiro Militar (BDBM), em Colniza. Também há uma BDBM em Cotriguaçu. Cada BDBM é composta por quatro militares, enquanto a Brigada Municipal Mista é formada por dois militares e dois brigadistas. 

As unidades de conservação do Noroeste de Mato Grosso ainda estão preservadas dos incêndios florestais, este ano. O monitoramento feito pelo Centro Integrado Multiagências de Mato Grosso (Ciman) aponta que, dos 11.770 focos de calor somados no estado, até 10 de agosto, apenas 3,4% (699 focos) foram registrados em unidades de conservação.

O fogo ainda não chegou ao território dos Tupi Mondé, mas os indígenas afirmam que se sentem desprotegidos.

“Sempre queima. Ano passado perdemos muito mais da metade de nossa área. E nesse ano não temos nem brigadas e nenhum apoio”, diz Alexandre Zoró. 

O município é um desmembramento de Aripuanã, que já está em terceiro lugar em queimadas, no Mato Grosso. Apesar de estar em território mato-grossense, Rondolândia depende do apoio de Ji-Paraná, em Rondônia, pois é o município mais próximo, por via terrestre.

“Foi assim durante a Covid e nos tratamentos de saúde. Usamos a Casai de Ji-Paraná. O problema é que o local estava lotado, pois os Cinta Larga, Suruí e Arara também estavam buscando por ajuda. Estamos sozinhos aqui”, diz Alexandre Zoró.

Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.

Ainda não há comentários. Deixe um comentário!

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.