
“A gente vive como se fosse numa pequena panela de pressão. É como se a água estivesse o tempo inteiro evaporando, esse calor constante, esse clima quente e úmido”. Esse relato é da professora Janaína Fernandes, que leciona há oito anos na educação infantil da Escola Municipal Milton Monte, na Ilha do Combu. Ela resume a experiência cotidiana de estudantes e educadores em Belém, no Pará, em unidades de ensino que ainda não contam com climatização adequada.
Nos últimos anos, a capital paraense tem registrado aumento das temperaturas máximas, conforme dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet): em 2024, a média das máximas chegou a 34,2 °C, a das mínimas a 24,4 °C e a amplitude térmica foi a maior da década. A “quentura”, termo recorrente no vocabulário local, pressiona o planejamento da educação pública a acelerar a climatização das escolas.
Segundo análise realizada pela InfoAmazonia, metade (51%) das salas de aula de Belém tem ar-condicionado (incluindo rede privada, municipal, estadual e federal), impactando o dia a dia de mais de 147 mil alunos que estudam em ambientes sem refrigeração. Na rede estadual, 44,7% das salas são climatizadas; na municipal, 53%. O levantamento tomou como base o Censo Escolar de 2024 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Élison Ferreira, diretor da Escola Municipal Milton Monte, explica que atualmente as salas de aula têm apenas ventiladores. “Nós acompanhamos, e sentimos na pele, que a cada mês fica mais quente que o outro. Isso é mundial. Mas aqui temos um problema estrutural de variação de tensão elétrica”, explica. De acordo com ele, já foi solicitado à Secretaria Municipal de Belém (Semec) um estudo para climatização da escola. No entanto, ele acredita que é preciso que a concessionária (Equatorial Energia) regularize o fornecimento energético na ilha, já que ainda há muitas quedas no abastecimento que provocam a queima dos aparelhos elétricos.

Nós acompanhamos, e sentimos na pele, que a cada mês fica mais quente que o outro. Isso é mundial. Mas aqui temos um problema estrutural de variação de tensão elétrica.
Élison Ferreira, diretor da Escola Municipal Milton Monte.
Os desafios de infraestrutura além do ar-condicionado
A implementação de ar-condicionado nas escolas de Belém envolve entraves estruturais, legais e financeiros. Muitas unidades não têm rede elétrica compatível com os equipamentos, especialmente escolas antigas, ribeirinhas ou instaladas em prédios alugados, onde as intervenções são limitadas. Além disso, a climatização amplia gastos com energia, manutenção e reposição, disputando orçamento com outras prioridades da educação.

Entretanto, apesar das dificuldades, a Semec afirma que a climatização é prioridade da gestão. “Das 203 escolas no total, 39 não são climatizadas. Pela característica do nosso clima quente e úmido, se não tiver essa intervenção da climatização artificial, não conseguimos garantir o conforto térmico nas salas de aula”, afirma o secretário adjunto Alex Dopazo. Segundo ele, o plano é climatizar todas as unidades próprias até 2028. “O desafio maior, hoje, é reforçar as redes elétricas. Sem isso, a instalação de máquinas não é sustentável”. A secretaria informa que 12 escolas passam por obras no momento, com investimento de R$30 milhões em 2025.
Dopazo ressalta que a instalação de aparelhos só ocorre em prédios que pertencem à prefeitura (algumas unidades funcionam em imóveis alugados) e que tenham capacidade elétrica adequada. “Quando não dá para viabilizar a climatização, garantimos a instalação de ventiladores e fazemos a manutenção recorrente deles. Também tentamos aumentar os espaços verdes dentro da escola para melhorar esse conforto térmico”.
Os impactos no desempenho escolar
Desde o início de 2025, a Semec passou a alocar Técnicos de Acompanhamento Pedagógico (TAP) diretamente nas escolas, com a função de mapear demandas e atuar como ponte com a gestão municipal. De acordo com Élison, a necessidade de ter ar-condicionado aparece de forma recorrente como uma reivindicação. A professora Janaína Fernandes confirma os impactos pedagógicos: “a quentura impacta diretamente na concentração dos estudantes”.
Quando lembra de 2024, Janaína diz que a situação foi bem pior do que costumava ser. “Foi realmente um ano atípico. Os alunos até diziam que não estavam conseguindo ficar na sala. Teve dias em que eles se sentiram mal, eu me senti mal”, relata. “Quando falta energia, então, o que é muito comum ainda na ilha, é insuportável. A gente não consegue ficar em sala. Então, ou vem para cá para fora ou sai mais cedo”, complementa a professora. Em 2024, mais da metade dos municípios da Amazônia passou o ano inteiro em seca — Belém, por exemplo, ficou 19 dias ininterruptos sem chuva em julho, um volume 80% abaixo do esperado.
Quando falta energia, então, o que é muito comum ainda na ilha, é insuportável. A gente não consegue ficar em sala. Então, ou vem para cá para fora ou sai mais cedo.
Janaína Fernandes, professora da rede municipal de Belém.

Élison Ferreira atua há 13 anos na Milton Monte, desde que a escola ainda era chamada Unidade Pedagógica São Benedito. À época, funcionava em um prédio de madeira, com telhas de brasilit e lona azul. “Os professores tinham que dar aula fora do prédio, embaixo das árvores, porque o calor era muito grande”, lembra.
Em 2012, a escola registrou nota 2,6 no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). “Foi crescendo para 3.2, 3.9, e chegou a 5, mas depois teve a pandemia e a reforma do espaço, que acabou há 1 ano e meio. Então, agora estamos tentando retomar a pontuação”. O dado mais recente disponível, de 2023, aponta IDEB 4,4. “Na rede municipal, a média é em torno de 6. Nossa meta é chegar a 5”.
Os dados do IDEB em Belém mostram que entre as dez escolas da cidade com as melhores notas em 2023, a média de salas climatizadas era 43%; entre as dez piores, 28%. Em ambos os grupos, há casos extremos — escolas com 0% e com 100% de salas climatizadas — o que aponta para um conjunto mais amplo de fatores, mas com o conforto térmico aparecendo de forma frequente entre as unidades com melhor resultado.




Arborização, desigualdade urbana e conforto térmico
A distribuição desigual das áreas verdes de Belém é outro fator que pode influenciar no conforto térmico dos estudantes. Com base no Censo do IBGE, a InfoAmazonia calculou um índice de arborização que considera quantas casas há em cada bairro e quantas árvores existem em seus arredores. Primeiro, calculou-se a proporção de domicílios segundo a quantidade de árvores no entorno. Em seguida, cada grupo recebe um valor médio representativo (1, 3 ou 5 árvores). Por fim, esses valores são ponderados pela proporção de domicílios e somados, resultando em um indicador único de arborização para cada bairro.
Bairros altamente arborizados, como Nazaré (índice 3,30), têm cerca de 81,5% das salas climatizadas; já o bairro de Brasília, em Outeiro (índice 0,30), conta com apenas uma sala climatizada entre 40 (2,5%).
Clique no mapa para ver as informações de arborização de cada bairro. Passe o mouse sobre os pontos para acessar dados de climatização.
A menor arborização tende a elevar a temperatura externa e o calor absorvido pelas edificações escolares. “Quando planejamos espaços verdes na educação, [esse planejamento] envolve o interior das escolas, mas também o externo. Aí demanda uma articulação com outras secretarias, para a plantação de áreas e gramados que aumentem as áreas verdes para a cidade. É o que estamos fazendo, como solução a médio e longo prazo”, reconhece Alex Dopazo, secretário adjunto da Semec de Belém.
Ainda que o terreno tenha 120 mil m² de floresta tropical, a Escola Municipal Bosque, na ilha de Outeiro, esbarra nos limites de depender apenas da ventilação natural. A diretora Aline Rodrigues explica que já havia ar-condicionado nas salas da educação infantil e no ensino médio, mas faltava no ensino fundamental. O projeto arquitetônico inclui estrutura octogonal, paredes parcialmente abertas e portas ripadas, inspiradas em estratégias tradicionais. Ainda assim, “o calor atrapalha, não há ventilação suficiente hoje em dia”, reconhece.




Ricarth Vieira, professor da escola, relata que passou a medir temperatura e umidade em sala como parte das aulas sobre mudanças climáticas, tratando o ambiente como um “agente ativo”. Apesar da arborização manter as salas entre 26°C e 30°C, ele afirma já ter lecionado com até 34°C, em outra ilha da cidade, Cotijuba. “Se as crianças se agitam, a temperatura sobe ainda mais”.
A secretária executiva pedagógica, Beatriz Morrone, conta que a Escola Bosque é referência em Educação Ambiental desde os anos 1990, porém a proposta pedagógica precisa ser acompanhada por adequações na infraestrutura. “A climatização hoje é fundamental, sobretudo aqui em Belém, que é uma cidade muito quente. Sabemos que a aprendizagem fica prejudicada quando se tem ambientes muito quentes”, avalia.
De acordo com Morrone, foram comprados mais de 230 aparelhos de ar-condicionado para escolas da rede municipal, com o objetivo de garantir ambientes mais adequados ao aprendizado, inclusive em unidades com projetos pedagógicos diferenciados, como a Bosque.
Jamily Sales tem 18 anos, está no 3º ano do ensino médio e é estudante da Escola Bosque desde o 6º ano. Ela lembra que parte da vegetação baixa morreu em um período recente de estiagem, aumentando a sensação de calor. Já João Miguel, estudante de 13 anos do 7º ano do ensino fundamental, diz que, apesar da sombra e da ventilação natural, o ar-condicionado pode melhorar a concentração. “Quando eu comecei a estudar na escola, no início do ano, só tinham quatro ventiladores. Aí aconteceu um imprevisto e ficaram só dois ventiladores. Acho que vai ser bom ter ar-condicionado, porque a gente precisa ter mais concentração”, observa o jovem.


Na Amazônia Legal, Manaus tornou-se um município de referência: 97% das salas de aula são climatizadas. O subsecretário de Infraestrutura da Secretaria Municipal de Educação (Semed), Radyr Júnior, explica que a política nasceu de uma demanda antiga de diferentes atores da rede de ensino da cidade. A climatização apareceu de forma recorrente entre os problemas críticos, ao lado, por exemplo, de telhados com goteiras, e passou a ser tratada como prioridade.
Nas escolas ribeirinhas de Manaus, foram feitas subestações elétricas, ou instalados geradores quando não há acesso à rede regular, segundo Radyr. Ele reconhece, porém, que há novos desafios: custos elevados de energia, manutenção frequente e adequações elétricas contínuas. “A gente estuda construir uma fazenda fotovoltaica para a educação e também vários formatos de contratação para essa rede de ar-condicionado, a exemplo de como acontece com a locação de impressoras, que vimos que é mais viável que comprar a máquina e ficar gastando com manutenção. Estamos vendo se não fica melhor fazer a locação de ar-condicionado, estamos estudando alternativas”, diz Radyr. Nesse caso, paga-se uma taxa por mês e por aparelho para usufruir do ar-condicionado, incluindo os custos de manutenção e reparos.
O Ministério da Educação, via Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), liberou, este ano, atas federais para aquisição de aparelhos de ar-condicionado, criadas para facilitar e padronizar esse tipo de compra em regiões de altas temperaturas. No entanto, por meio da Lei de Acesso à Informação, o FNDE informou que nem o Governo do Pará nem a Prefeitura de Belém aderiram às atas federais de registro de preços para aquisição de ar-condicionado, criadas para facilitar compras em regiões de altas temperaturas.
No Brasil, foram 91 adesões; nenhuma partiu da capital paraense. No Pará, apenas as secretarias de educação de Castanhal, Marabá e de Xinguara, além do Instituto Federal do Pará (IFPA, presente em diversos municípios do estado) utilizaram a ata. Segundo Alex Dopazo, a adesão ainda está em análise. “Estamos avaliando o melhor momento para a adesão, considerando custo, logística e capacidade elétrica das unidades”.

Para a professora Carminda Carvalho, coordenadora do Laboratório de Tecnologias Avançadas em Iluminação e Instalações Elétricas da Universidade Federal do Pará (UFPA), o poder público deveria focar em editais de projetos antes da compra de equipamentos. Além disso, para a professora, a climatização deve vir acompanhada de soluções verdes.
“Faz sentido integrar soluções verdes quando se faz a instalação de ar-condicionado, tendo os cuidados dessa cobertura vegetativa. Se as escolas fizessem isso, poderiam se tornar modelos para os órgãos públicos. O telhado verde ajuda a reduzir a temperatura interna dos ambientes e, assim, reduz a necessidade de refrigeração”, diz
“Até mesmo a questão da pintura pode influenciar. Então, não se deve pintar as paredes externas com cores muito escuras, pois absorvem mais a radiação solar. Isso tudo pode ajudar a reduzir o consumo [do aparelho] de ar-condicionado, mas, realmente, o conforto térmico em Belém sem essa climatização artificial é inviável em boa parte do dia”, completa Carvalho.
Faz sentido integrar soluções verdes quando se faz a instalação de ar-condicionado, tendo os cuidados dessa cobertura vegetativa. Se as escolas fizessem isso, poderiam se tornar modelos para os órgãos públicos.
Carminda Carvalho, coordenadora do Laboratório de Tecnologias Avançadas em Iluminação e Instalações Elétricas da UFPA
De acordo com a professora, outra preocupação que se deve ter é a de adquirir aparelho de ar-condicionado com maior eficiência energética, considerando alguns parâmetros dos modelos, como o índice de resfriamento sazonal de no mínimo 7 e a inclusão de gás refrigerante do tipo R32 — critérios que conseguem fazer uma troca de calor com menor consumo de energia e, no caso do gás refrigerante R32, não destrói a camada de ozônio. “Às vezes, [o valor] sai um pouquinho acima de outra marca ou modelo, mas o custo benefício é muito maior”, observa.
Segundo Alex Dopazo, a Semec prioriza aparelhos do tipo inverter, que mantém a temperatura estável do ambiente e consome menos energia. Além disso, o subsecretário diz que o órgão promove o uso consciente e a instalação de painéis fotovoltaicos onde seja possível.
Procurada pela reportagem, a Seduc do Pará não respondeu aos pedidos de visita à escola estadual Mateus do Carmo, para que se pudesse conhecer o projeto de horta (exemplo de implementação de solução verde destacada pela secretaria)..
A pasta também não respondeu à solicitação de entrevista. O objetivo da conversa era esclarecer se a climatização por ar-condicionado é a principal estratégia adotada pela secretaria e se há alternativas estruturais em andamento; se existe um plano de eficiência energética e de manutenção dos equipamentos; e quais são os critérios de priorização das unidades atendidas. Até o fechamento desta reportagem, não houve retorno a essas questões.
Em nota para a InfoAmazonia, a Seduc do Pará informou, apenas, que 609 das 962 escolas estaduais têm salas climatizadas. A pasta também diz que o Programa Dinheiro na Escola Paraense (Prodep) repassou R$187 milhões desde 2023 e previa R$100 milhões adicionais em 2025 para pequenas reformas, manutenção e aquisição de materiais.
Esta pauta foi selecionada pelo 7 º Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e da Fundação Itaú.
Texto: Alice Martins Morais
Análise de dados: Renata Hirota
Mapa: Carolina Passos
Imagens (fotos e vídeo): Matheus Melo
Edição: Carolina Dantas
Direção editorial: Juliana Mori