As reportagens ambientais estão no centro da crise climática e precisam conectar o desafio planetário aos territórios.
Dezembro de 2009, Copenhague, três da manhã. Cansados de esperar por qualquer anúncio oficial da presidência da COP15, eu e um amigo jornalista resolvemos dormir ali mesmo no centro de convenções. Eu na cadeira, ele em cima da mesa! Como nós, outros cochilavam pelos cantos da sala de imprensa.
Era o último dos 11 dias de uma das mais esperadas cúpulas da ONU para as Mudanças Climáticas. Estávamos exaustos depois de tantas coletivas, relatórios bombásticos, vazamentos de documentos e promessas embaladas com lindas palavras do jet set climático. Ali se prometia a solução de todos os problemas. Mas não saiu nada.
Mal havíamos pegado no sono, anunciou-se a plenária de encerramento. Com os olhos vermelhos, assistimos incrédulos à derrocada das negociações. Que retumbante fracasso! Não houve acordo. Os países não se entenderam e a solução para o fim do mundo foi novamente adiada. Semanas de trabalho árduo terminavam com diplomatas engomadinhos dando de ombros e prometendo, quem sabe, algo para o ano seguinte.
Me senti um tonto com aquilo tudo. Para nossos leitores, nós estávamos ali virando noites e tuitando como loucos (sim, o Twitter era a plataforma do momento), pois aquilo tudo era urgente e determinante. Aquele fracasso plantou uma dúvida sobre a relevância do que eu estava fazendo como jornalista. Me pareceu que ao invés de estar perseguindo autoridades num centro de convenções qualquer, eu deveria estar no mato, na Amazônia, nos lugares onde a mudança climática e a degradação ambiental estavam ocorrendo em tempo real.
Não voltei a cobrir mais nenhuma COP depois de Copenhague e passei a fazer mais reportagens de campo sobre o desmatamento, as queimadas, as cheias e as secas.
Mas eu fiz a coisa certa? Será que como eu, outros jornalistas deveriam dar menos peso às discussões da ONU? Não seria maior a contribuição do jornalismo à sociedade focar nas questões locais? Apontar problemas e soluções ligadas ao dia-a-dia das pessoas e não dar ouvidos aos governos?
Enquanto escrevia este texto em meu escritório em São Paulo, dezenas de meus colegas jornalistas estavam apinhados em alguma sala de Baku, a capital do Azerbaijão. Fizeram diligentemente a cobertura da COP29 e as notícias que enviaram pareciam seguir um roteiro muito similar ao de 2009. As negociações avançaram muito pouco, enquanto os impactos do aumento da temperatura se aceleram rapidamente.
Por mais que eu tenha soado um tanto cético até aqui, acho que os colegas que foram a Baku, assim como os que fomos a Copenhague ou Paris, fizeram a coisa certa. Precisavam estar lá! As dificuldades que estamos enfrentando no combate às mudanças climáticas são tantas e tão urgentes que não nos resta alternativa: devemos misturar todas as perspectivas. Temos que cobrir as negociações governamentais, as pressões da sociedade civil, o lobby das empresas, as investigações de campo sobre os crimes ambientais, as vozes das populações mais afetadas pela crise climática.
Bruno Latour, sociólogo francês que estudou a fundo o movimento ambientalista, publicou em 2018 uma reflexão que serve como um guia para o desafio da comunicação da crise planetária. O livro “Down to Earth, Politics in the New Climatic Regime” explora a desconexão que foi criada entre a política global e os territórios. Ele identifica a emergência de discursos negacionistas e de extrema direita como resultado do medo e do abandono de comunidades e trabalhadores frente às mudanças climáticas .
Seu exemplo mais contundente é o dos operários das siderúrgicas e da indústria de carvão nos Estados Unidos. A redução dos investimentos, as restrições às emissões e a própria globalização levaram a um colapso econômico que ceifou milhares de empregos. Não houve alternativa. Por isso, a promessa do retorno à glória do passado, incorporada na figura de Trump, foi abraçada por estes desempregados.
A proposta de Latour é voltar-se a um entendimento cada vez maior dos territórios. Por isso, o título “Down to Earth”, traduzido no Brasil como “Onde aterrar”. Quando li o livro, senti que minha cabeça se abria. Me pareceu que o caminho não é outro senão sair de uma bolha e aprofundar-se na diversidade do que é o bem-estar e a forma que as comunidades, sejam elas urbanas, rurais, indígenas, enxergam o seu meio ambiente. Para um garimpeiro, o rio não passa de uma fonte de renda. Para o indígena, um sítio sagrado. Como conciliar essas visões?
Para mim, voltamos a um ponto sempre central sobre o que é fazer o jornalismo que cobre o meio ambiente: devemos perguntar com total independência quais são os caminhos justos para o desenvolvimento econômico.
A ressaca de Copenhague foi a descrença no multilateralismo, a conversa de que a ONU já não era efetiva. Essa desilusão serviu como uma luva às soluções liberais, as de mercado. Essa bravata de que temos que tomar o problema com as nossas próprias mãos e deixar os governos de lado não nos está levando a uma boa solução. Hoje estamos imersos num mundo de puro greenwashing, onde ações individuais, tecnocêntricas e voluntárias se tornaram a norma. Fazer a sua parte é uma necessidade. Mas ela não será suficiente!
O Acordo de Paris, firmado seis anos depois de Copenhague, foi uma sinalização importante de que a coletividade ainda é possível. Uma solução em grande escala e a longo prazo é o único caminho. Desde 2015, alguns avanços foram possíveis, como os fundos para perdas e danos e as metas para a redução do desmatamento das florestas tropicais. Mas exatamente porque a solução é coletiva, ela é mais difícil e lenta.
Penso se uma nova Copenhague está se armando para o ano que vem em Belém, onde ocorrerá a COP30. Um campo minado de expectativas, onde detonar uma sensação de fracasso será quase inevitável. Toda articulação empresarial, o frenesi da sociedade civil, os preços inflacionados, as reservas esgotadas e, claro, as promessas… as promessas dão sinais claros de que há muita mobilização, mas provavelmente pouca ação.
Será que nós jornalistas que cobrimos a agenda ambiental devemos abraçar esta loucura? Fazer parte deste afã de que esta é nossa última chance? Valerá a pena?
De novo, acho que sim!
O que vejo é que existe um momento único para o jornalismo. Em que o conhecimento sobre a mudança climática se junta à capacidade de investigação de meios e profissionais, extremamente talentosos. Nosso papel não será outro senão manter o rigor e o ceticismo sobre as soluções mágicas que a cada dia se propõe. Investigar as minúcias de cada plano é o nosso norte.
Um dos grandes desafios que se colocam à nossa frente é manter a sociedade informada sobre o investimento público — ou a falta dele — na adaptação às mudanças climáticas. A disputa sobre o dinheiro necessário aos países em desenvolvimento revela uma cisão, como acabamos de ver em Baku. Da mesma forma, o foco na transição energética e como ela está afetando a vida das pessoas deverá ser um tema central.
O jornalismo é a expressão prática da conexão entre o local e o global. Nosso trabalho, em sua essência, é contextualizar as mudanças no cotidiano de dona Maria e do seu João influenciadas pelo aumento dos preços internacionais do petróleo ou pela chegada de uma devastadora pandemia. Os eventos extremos climáticos levam forçosamente a essa conexão. O que vimos no Rio Grande do Sul ou na Amazônia em 2024 foi a comprovação de que, como nunca antes, toda uma geração de jornalistas agora fala da mudança climática e seus impactos sem precedentes.
Mas a cobertura do desastre será apenas uma parte. O desafio será informar o clima em transformação com qualidade e acurácia ao longo de muito tempo. Cinquenta anos, 100 anos, quem sabe?
PS: O colega que me acompanhava no cochilo da sala de imprensa era o amigo Eric Camara, que hoje coordena as redes sociais da BBC Brasil. Com ele, eu também compartilhei um momento memorável em Copenhague quando encontramos perdido nos corredores da conferência o vocalista do Radiohead, Tom Yorke. Quem se juntou a nós nesta hora foi também o meu amigo e companheiro de jornadas musicais, Cláudio Ângelo, na época editor de ciência da Folha de S.Paulo, que fez perguntas provocadoras ao astro pop. Aqui, recuperei o vídeo da entrevista com Thom Yorke.