Eram 287 aterros irregulares na região, 110 só no Pará, segundo dados de 2022 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS); eliminação deveria ter ocorrido até agosto.

Chorume, água contaminada e até resíduos hospitalares espalhados pelo terreno de um lixão ao ar livre. Essa paisagem, que se mistura ao cotidiano dos moradores e os coloca vulneráveis a contaminação, fica em Envira, no sudoeste do Amazonas. Essa realidade não pertence somente ao município amazonense, mas reflete um desafio comum em muitas cidades do Norte do Brasil: a luta para erradicar os lixões e dar fim a essa grave ameaça ambiental e de saúde pública. 

Treze anos após a criação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e três anos depois da aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento, pouco foi feito para adequar o manejo dos resíduos sólidos no Brasil. O prazo final para o fechamento dos lixões em todo o país expirou em agosto de 2024, conforme estabelece a lei nº 14.026/2020. No entanto, a destinação inadequada de resíduos sólidos ainda persiste. 

Levantamento da InfoAmazonia, com base nos dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), indica que 1.572 lixões estavam em operação no país, em 2022, sendo 299 deles (19%) localizados na região Norte, a segunda com o maior número destes locais em atividade no Brasil, distribuídos por 287 municípios. 

O sistema é vinculado à Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades (SNSA/MCidades) e reúne informações de órgãos gestores dos serviços públicos de 5.060 municípios (90,8%) dos 5.570 do país, incluindo as capitais e o Distrito Federal. Para a região Norte, a amostra englobou 400 (89%) cidades das 450 que a integram.  O SNIS é considerado a principal ferramenta de monitoramento e planejamento do setor, sendo fundamental para a formulação de políticas públicas e para o acompanhamento da evolução dos serviços de saneamento no país. 

Estes são os dados mais recentes disponíveis sobre o manejo de resíduos sólidos no Brasil. O Ministério das Cidades informou à reportagem que está coletando dados para o novo Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico (SINISA), que começou a funcionar em 2024. O SINISA substituirá o atual Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). Enquanto isso, a coleta de dados do SNIS para 2023 continua, com resultados previstos para janeiro de 2025.

Conforme a PNRS, o descarte considerado adequado é feito em aterro sanitário, para onde os resíduos sólidos que não podem ser reutilizados ou reciclados devem ir. No país, existem 626 unidades destes equipamentos, para onde são destinados, aproximadamente, 46 milhões (73,7%) de toneladas de resíduos sólidos. O restante é despejado em lixões ou aterros controlados (uma solução intermediária entre o lixão e o aterro sanitário). 

O Pará lidera o ranking de locais inadequados para o despejo de resíduos sólidos no Norte, com 110 áreas identificadas. Logo em seguida, o Tocantins aparece na lista, destacando-se também pela quantidade significativa de pontos de descarte irregular, 101 no total. Esses números revelam a persistente dificuldade de gestão de resíduos na região, acendendo um alerta para os impactos ambientais e de saúde pública gerados pelo manejo inadequado do lixo.

O geógrafo e pesquisador do Laboratório de Geografia Física e Ensino do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Danielson Souza, explica que os lixões causam sérios impactos ambientais e sociais, pois contaminam o lençol freático, poluem rios e solos e afetam a saúde de quem vive próximo a essas áreas, expondo moradores a doenças. 

“Além disso, é muito comum a queima dos resíduos sólidos nestes locais. Isso pode levar a uma grande explosão, já que esses materiais liberam gases que podem ser inflamáveis. Essas explosões podem causar ferimentos graves e levar ao óbito”, explica Souza. A ausência de coleta regular de lixo também é citada pelo pesquisador como um dos principais desafios para a eliminação destes locais. Em áreas rurais e regiões urbanas mais vulneráveis, a falta de coleta leva os moradores a descartar resíduos em terrenos baldios, transformando-os em focos de despejo irregular.

“Nem toda população tem acesso à coleta de lixo em suas ruas, então, acabam por depositá-los em terrenos baldios, tornando esse espaço uma lixeira viciada, e posteriormente, com excesso de lixo, um lixão”, disse Danielson.

No Brasil, o manejo de resíduos sólidos gera despesas de R$ 30,16 milhões anuais, segundo o SNIS. Na região Norte, apenas 178 (44,5%) municípios apresentaram planos municipais de gestão integrada de resíduos sólidos. A falta de infraestrutura e recursos compromete a implementação de aterros sanitários e o problema se agrava com o não cumprimento das determinações legais.

Município ignora justiça e segue com lixão a céu aberto

Em Envira, a 1.208 quilômetros de Manaus, o lixão, criado em 2014 e gerenciado pela prefeitura, permanece sem solução. O Ministério Público do Amazonas (MPAM) cobra uma destinação adequada para os resíduos sólidos desde então, sem sucesso. O local continua a se expandir e, em maio de 2024, imagens que circularam pelas redes sociais mostraram o lixo invadindo a rua Vereador Chagas Mattos, que dá acesso à Terra Indígena (TI) Cacau do Tarauacá, onde vivem 320 indígenas do povo Kulina.

Lixão a céu aberto em Envira Foto: Reprodução/X @luluka_25

Moradores da cidade que não quiseram se identificar com medo de represálias relataram que cerca de 400 metros da via estão cobertos de lixo. Ao ser questionada sobre a destinação do lixo da cidade, a prefeitura informou realizar os serviços de limpeza, mas não divulgou o destino dos resíduos. Em fotos nas redes sociais da prefeitura de Envira, é possível encontrar a empresa Elfa Construções LTDA, que possui sede em Eirunepé e filial na cidade, realizando alguns trabalhos de limpeza pública no entorno do município.

A Justiça do Amazonas, por meio da comarca de Envira, havia determinado, em 2019, o fechamento do lixão da cidade e a construção de um aterro sanitário em 45 dias, atendendo a um pedido do Ministério Público. Foi determinado ainda que a prefeitura abrisse valas sépticas em 90 dias para a disposição de resíduos em local adequado e apresentasse, em 120 dias, um plano de licenciamento ambiental para um novo aterro sanitário. No entanto, em agosto de 2024, o município não havia cumprido nenhum desses itens, segundo o MPAM.

Embora o MPAM já tenha solicitado a aplicação de multa devido à falta de ação do município, o juiz ainda não se pronunciou. Segundo o Ministério Público, o processo deve seguir seu curso, pois as justificativas da prefeitura não comprovam o cumprimento das determinações judiciais, limitando-se a alegar “melhoras” sem apresentar relatórios técnicos que confirmem essas mudanças.

Funcionários da empresa Elfa Construções realizam a coleta de lixo doméstico em Envira. Foto: Reprodução/ Instagram @elfa_envira

A reportagem entrou em contato com o secretário da Defesa Civil do município, Ismael Dutra, que afirmou haver um planejamento para o lixão em Envira, mas não quis detalhar quais medidas estão sendo feitas. A Prefeitura, questionada sobre quais ações estão sendo realizadas para desativação do lixão, não deu retorno até o fechamento desta reportagem.  

O Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos de Envira, elaborado em 2012, indicava que a coleta na cidade era feita de segunda a sexta-feira. Em áreas sem pavimentação, a coleta era realizada por carroças com tração animal. O plano também apontava problemas no lixão, como a falta de cercamento, drenagem de chorume e controle de entrada de pessoas e animais.

Consequências e tramitações

A Política Nacional de Resíduos Sólidos estabelece que os resíduos devem ser descartados de maneira ambientalmente adequada, mas prazos para a adaptação dos municípios foram prorrogados repetidamente. Lixões são fontes de metano, um gás que intensifica o efeito estufa e contribui para a emergência climática. 

“Esse gás causa a intensificação do efeito estufa, então, pode levar ao agravamento ou a aceleração do aquecimento global. Nesses tempos estamos falando bastante sobre emergência climática e, sem dúvidas, os lixões precisam estar em pauta nesse assunto, visto que podem contribuir bastante com as mudanças climáticas vigentes, e causar prejuízos significativos aos seres humanos e ao meio ambiente”, apontou Danielson.

Em agosto de 2024, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) propôs um pacto no qual as prefeituras se comprometeriam a fechar os lixões em troca de apoio técnico e financeiro, com um novo prazo a ser definido. O Projeto de Lei 1323/2024 , apresentado em abril pelo deputado Adriano do Baldy (PP-GO), tramita na Câmara dos Deputados e propõe prorrogar por mais cinco anos o prazo do Novo Marco do Saneamento para que municípios com menos de 50 mil habitantes encerrem os lixões e adotem a destinação correta dos resíduos.

O projeto determina que os municípios que serão favorecidos pela prorrogação adotarão programas de coleta seletiva, incentivando a separação dos resíduos recicláveis e orgânicos e contribuindo para a redução do volume destinado aos lixões; inclusão de catadores de materiais recicláveis no processo de transição, com oferta de capacitação e alternativas de trabalho, promovendo a inclusão social; e estruturação de aterros controlados quando a implantação de aterros sanitários não for viável devido a restrições financeiras.


Esta reportagem foi realizada pela Rede Cidadã InfoAmazonia, e contou com o apoio do Programa Vozes pela Ação Climática Justa (VAC), que atua para amplificar ações climáticas locais e busca desempenhar um papel central no debate climático global. A InfoAmazonia faz parte da coalizão “Fortalecimento do ecossistema de dados e inovação cívica na Amazônia Brasileira” com a Associação de Afro Envolvimento Casa Preta, o Coletivo Puraqué, PyLadies Manaus, PyData Manaus e a Open Knowledge Brasil.

Sobre o autor
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Karina Stephanie Alves Pinheiro

Jornalista freelancer sediada em Manaus, Amazonas, onde atua como repórter e fotógrafa em temas socioambientais sobre a Amazônia. Bacharel em jornalismo pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM),...

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