A seca extrema atinge a Amazônia e amplifica as queimadas, que se espalham pelo fogo ou pela fumaça, por todo o país. Ninguém deve sair ileso.
Alberto Setzer, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e idealizador do Programa Queimadas, faz muita falta. Se ainda estivesse entre nós, estaria trazendo exemplos de imagens de satélite da fumaça se espalhando pelo Brasil e conversando de forma solícita e clara com todos.
Lá em 2019, quando a fumaça transformou o dia em noite em São Paulo, ele me explicou:
“Elas [queimadas] são todas de origem humana, umas propositais e outras acidentais, mas sempre pela ação humana. Para você ter queimada natural, você precisa da existência de raios. Só que toda essa região do Brasil central, sul da Amazônia, está uma seca muito prolongada, tem lugares com quase três meses sem uma gota d’água”, disse.
Essa fala de cinco anos atrás se encaixa perfeitamente neste ano. Parece aqueles trechos de música atemporais. Poderia entrar em qualquer reportagem sobre a Amazônia e o fogo. Fica claro que o causador do problema somos nós, cada vez mais especialistas em destruir o próprio planeta. Nós somos o “isqueiro”.
Apesar de ele ter falado sobre a seca em 2019, ano também afetado pelo El Niño, em 2024 ela chega claramente mais intensa. Em julho, mês que marca o início da estação seca na Amazônia, 9 em cada 10 terras indígenas já estavam em algum grau de seca. A contribuição desse cenário para o fogo é cruel: até mesmo os indígenas, acostumados a usar o fogo de forma controlada para o roçado, podem perder o controle das chamas. Uma faísca em uma seca extrema já representa um risco. A seca é o “pavio”.
Assim, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, menciona a possibilidade de um segundo “Dia do Fogo”, referindo-se ao episódio em que fazendeiros decidiram, de forma criminosa e organizada, queimar áreas no Pará, em 10 de agosto de 2019. A ministra acredita que existe a possibilidade de uma reedição dessa ação neste ano, o que poderia justificar o aumento exacerbado das queimadas, principalmente as ocorridas em São Paulo. Como Setzer explicou, trata-se de ação humana. Agora, resta entender se é orquestrada. Resolvi comparar os dados da Amazônia e de São Paulo em agosto para encontrar novas pistas.
De acordo com o Programa Queimadas, no bioma Amazônia, a média diária de focos de calor em agosto de 2024 já é maior do que a de agosto de 2019 — neste ano, até agora, a média é de 1.045 focos, enquanto em 2019 foi de 989 — uma alta de quase 6%. Especificamente, em 10 de agosto de 2019, data oficial do “Dia do Fogo”, foram registrados 1.173 focos, mas o pico daquele mês ocorreu no dia 11, com 2.366 focos, número diário que a Amazônia não chegou a atingir até agora em 2024.
Analisando apenas os dados da Amazônia, eu apostaria que atualmente a seca é o fator que agrava o problema antigo que já conhecemos. E, em conversa com especialistas, é exatamente isso que eles afirmam: “Ficou muito claro que as queimadas, o aumento da área queimada, estavam muito relacionadas à questão climática, à gravidade da seca, à extensão do período seco, e isso gerou uma grande área de queimadas, principalmente em incêndios florestais”, disse Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Ou seja, na floresta, o agravamento do problema este ano parece estar mais conectado ao problema climático do que ao crime organizado.
Fiz o mesmo exercício apenas para o estado de São Paulo para verificar se os dados revelariam alguma pista sobre a fala da ministra Marina Silva. E, de fato, revelam. Entre os dias 22 e 24 deste mês, há um aumento que foge da curva. Esse aumento precisa ser investigado, mas, se seguir o mesmo padrão do que vemos no gráfico de 2019 x 2024 para a Amazônia, essa curva exacerbada pode evidenciar uma ação humana conjunta no estado, assim como ocorreu na Amazônia no “Dia do Fogo” e segue ocorrendo de forma pulverizada.
Independentemente disso, os suspeitos de cometer os crimes em São Paulo estão sendo presos. No caso do “Dia do Fogo”, já noticiamos aqui na InfoAmazonia que as áreas afetadas se tornaram, majoritariamente, pastagens — é para isso que o fogo é usado no bioma, para auxiliar o agronegócio na abertura de novas áreas para o gado ou para a agricultura. Por enquanto, nesse sentido, nada de novo. O que me preocupa é o dia em que esses dois fatores se unirem com mais força ainda e na Amazônia — a seca e o crime orquestrado. Todo mundo vai engolir fumaça.