Postado emReportagem Especial / Mudança climática

Rio em fluxo: o impacto das mudanças do clima na Amazônia

Enquanto a média da temperatura do planeta aumenta, as cidades da Amazônia brasileira sentem as estações chuvosas e secas cada vez mais intensas, com ameaça à segurança alimentar e à própria sobrevivência de muitas comunidades ribeirinhas, além do aumento da mortalidade de peixes e botos.

Jochen Schöngart move-se rapidamente entre as formações rochosas e encostas do rio Amazonas, não muito longe do centro de Manaus, em uma curta viagem de barco. Ainda é cedo em uma manhã de outubro de 2023, mas o calor persistente cobre seu rosto de suor.

“Olha, um pedaço de cerâmica!”, exclama, apontando para um caco desgastado preso entre as pedras, provavelmente uma relíquia de uma civilização anterior. Não é a única. Agachando-se, Schöngart, cientista florestal do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), observa o leito do rio e as rochas a seus pés.

Bem abaixo do nível normal do rio para a época do ano, a pedra exibe rostos desenhados em tamanho natural, uma espécie de galeria arqueológica talhada durante uma grande seca há 1000 anos. Agora, eles estão expostos novamente por uma nova seca, a pior na história moderna da região.

Golfinhos sofrem com a seca

Tentando ganhar do ronco do motor de popa, Ayan Fleischmann grita ordens ao barqueiro de um bote que navega pelas águas do lago Tefé, em outubro de 2023. Fleischmann é hidrologista no Instituto Mamirauá, em Tefé, no Amazonas. A cidade de 70.000 habitantes fica à beira do lago e o pesquisador está monitorando as condições extremas na Amazônia central, 600 quilômetros rio acima de Manaus, em uma das regiões mais afetadas pela seca.

Navegamos até o que parece ser o resquício de uma cerca — um poste de madeira torto e esbranquiçado, sobressaindo acima da superfície do lago. Poucos suspeitavam que ele guardava uma estação de monitoramento de temperatura. É intencional, diz Fleischmann. “Colocamos nesse tipo de poste para que ninguém ache que é importante”, diz ele, sorrindo.

Uma equipe de pesquisadores e veterinários do Instituto Mamirauá atende ao corpo de um Tucuxi morto, uma espécie de golfinho de rio, em Tefé, no estado do Amazonas. Foto: Dado Galdieri/Hilaea Media
Duas meninas brincam nos pequenos lagos deixados pelas águas recuadas, enquanto seu pai, Jair Oliveira se dedica à pesca nas proximidades, perto de Porto Praia, no Amazonas, em outubro de 2023. Foto: Dado Galdieri/Hilaea Media

Um problema que não é isolado

Gráfico: Um futuro de Extremos, por D. AN-PHAM/SCIENCE*1

Outro fator que influenciou a seca do ano passado foi o aquecimento atípico no Atlântico, logo ao norte da Linha do Equador, que, assim como o El Niño, desvia o ar úmido de sua rota e tem sido associado a secas anteriores na Amazônia. O Relatório de Avaliação da Amazônia 2021, uma avaliação enciclopédica da população, ecologia e clima da Amazônia, aponta que, das 15 megassecas registradas entre 1906 e 2021, seis coincidiram com o El Niño e três com as águas quentes do Atlântico Tropical Norte. Adicionando a seca de 2023, todas as quatro secas deste século ocorreram quando ambas as regiões oceânicas estavam aquecidas.

A mudança climática é a principal suspeita pelas alterações observadas nas condições oceânicas que propiciam as secas, embora os mecanismos subjacentes ao seu papel não sejam claros. Algumas pesquisas sugerem que o aquecimento global pode estar aumentando a intensidade e a frequência dos El Niños. Além disso, o aumento mais amplo nas temperaturas oceânicas causado pelo aquecimento global também pode estar contribuindo, criando um contexto para áreas anômalas de água mais quente no Atlântico e no Pacífico. As temperaturas médias da superfície do mar global têm aumentado constantemente por mais de um século, mas, em 2023, a média global quebrou recordes anteriores em todos os meses a partir de abril, uma tendência que continuou neste ano.

Um experimento de modelagem divulgado em janeiro pela World Weather Attribution, uma colaboração internacional de cientistas climáticos, descobriu que as mudanças climáticas aumentaram em 10 vezes a probabilidade de precipitação observada na Bacia Amazônica em 2023. Seu impacto foi ainda maior na probabilidade de uma seca agrícola, na qual a baixa precipitação e as altas temperaturas combinam-se para ressecar o solo, estressando as plantações e as florestas ao mesmo tempo. A modelagem concluiu que as mudanças climáticas aumentaram em 30 vezes a probabilidade de uma seca agrícola tão profunda quanto a de 2023. 

De maneira mais simples, a seca teria sido improvável se as mudanças climáticas não tivessem aquecido o planeta. Marengo ainda não está pronto para dizer que a seca foi causada pelas mudanças climáticas, mas ele a vê como uma “amostra” do que está por vir. “Parece que agora estamos olhando para algumas dessas coisas que poderiam acontecer nas próximas décadas.”, diz.

Quezia, uma menina indígena, mostra sinais de suor intenso devido ao calor forte, consequência de seu tempo de brincadeira no leito seco do Rio Solimões perto de sua casa em Boarazinho, uma aldeia ribeirinha no estado do Amazonas, Brasil. Foto: Dado Galdieri/Hilaea Media
Gráfico: Uma área duramente atingida, por D. AN-PHAM/SCIENCE*

No futuro, níveis muito altos de água também podem ameaçar algumas espécies da fauna amazônica, diz Rafael Rabelo, coordenador de pesquisa no Instituto Mamirauá. Ele está particularmente preocupado com o macaco-de-cheiro-preto (Saimiri vanzolinii), que vive apenas perto de Tefé em 800 quilômetros quadrados de floresta sazonalmente inundada, chamada igapó. Um estudo de modelagem está explorando se as águas de enchente mais altas esperadas no futuro prejudicarão o igapó, o que poderia colocar os próprios primatas em risco.

Insegurança alimentar

Vanuza exibe uma rede rasgada por golfinhos cor-de-rosa que conseguiram capturar a pesca em Boarazinho, no Amazonas. A a engenhosidade desses mamíferos aquáticos é um dos desafios enfrentados pelos pescadores locais enquanto precisam lidar com as severas secas que impactam a Amazônia. Foto: Dado Galdieri/Hilaea Media

Até que as chuvas retornem e o rio suba novamente, os moradores de Porto Praia — que não têm acesso rodoviário a Tefé, a área comercial mais próxima — terão que caminhar 1 hora para chegar a um barco, dobrando seu tempo de viagem.

A única escola de Porto Praia fechou porque a maioria de seus professores viaja de Tefé. Os moradores também passaram a pescar à noite, pois transportar equipamentos e cestas de peixe pelas dunas até o lago preferido durante o calor do dia é insuportável. “É difícil pescar durante o dia hoje em dia por causa do calor”, diz Anilton Bras da Silva, chefe de Porto Praia. “Em secas passadas, nós conseguimos nos virar.”

Jair Oliveira Xavier, pescador de 37 anos e residente indígena de Porto Praia, retorna à aldeia após procurar peixes em um lago formado pelas águas recuadas de um braço do Rio Solimões. Foto: Dado Galdieri/Hilaea Media

Previsões nada otimistas

Bruce Forsberg, um ecologista que estuda a Amazônia há mais de quatro décadas, diz que Porto Praia e Betel provavelmente passarão por condições climáticas piores. Ele dirige o Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera, uma colaboração internacional de longa duração focada nas ligações entre a floresta amazônica e o clima global. Forsberg e uma equipe de cientistas brasileiros e americanos modelaram como o aquecimento devido ao contínuo aumento das emissões de combustíveis fósseis afetaria os fluxos dos rios.

Antes de deixar o Brasil, Santos, o tuxaua de Betel, me convidou para uma refeição. Ele acendeu uma fogueira e espetou um jaraqui, um peixe do tamanho de um prato de jantar e fino como a minha palma, em um galho verde fino. Enquanto ele assava o alimento sobre a brasa, minha intérprete, Diana Mayra Köhler, disse: “Comeu jaraqui, não sai mais daqui”, um ditado local. 

Antes, Santos podia contar com a Amazônia para fornecer bastante jaraqui e outras iguarias. Agora, ele teme que as mudanças que estão assolando a região possam desencadear uma competição desastrosa pelos recursos. Ele está disposto a evitar a pesca no rio para ajudar os golfinhos a sobreviverem.

“Não os perturbamos para que eles não tenham que sofrer mais”. Mas ele está preocupado que a intensificação da pesca no fino lago Catuano possa colocar Betel em conflito com outros vilarejos, que também às vezes dependem dele. “Esta é uma situação delicada para nós”. 

O mesmo pode ser dito do grande rio que passa pela aldeia e da floresta ao redor.

Fotos: Dado Galdieri/Hilaea Media
Vídeos: Dado Galdieri e Patrick Vanier/Hilaea Media


Esta reportagem é uma versão da história publicada originalmente em inglês na revista Science, produzida com apoio de uma bolsa do Pulitzer Center.

  1. * Gráficos traduzidos e reproduzidos com a permissão da AAAS. Esta tradução não é uma tradução oficial da equipe da AAAS. Para questões cruciais, consulte a versão oficial em inglês publicada originalmente pela AAAS.

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