Em entrevista à InfoAmazonia, a professora conta que está há dois anos impedida de lecionar na escola estadual de sua comunidade, às margens do rio Madeira, pelo governo de Rondônia. Ela diz sofrer uma forma moderna da mesma perseguição que marcou o povo Mura que, durante a colonização, nunca ‘quis negociar com o Estado’ e sempre foi tido ‘como incivilizado’.
Márcia Mura, professora da rede pública há duas décadas, está há mais de dois anos impedida de lecionar em escolas ribeirinhas. Essa proibição inclui a Escola Estadual Professor Francisco Desmorest Passos, às margens do rio Madeira em sua própria comunidade no distrito de Nazaré, na capital Porto Velho (RO). Formada em História, com mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e doutorado pela Universidade de São Paulo (USP), ela trava uma batalha judicial com a Secretaria de Educação do estado, que a removeu da sala de aula em agosto de 2021.
O caso veio à tona em outubro de 2021, após reportagem da Agência Pública revelar o relatório que sustenta o processo administrativo que levou à remoção da professora. No documento, a direção da escola argumenta que ela “insistia na temática indígena” e também diz que não utilizava o livro didático nas atividades dos alunos, além de não respeitar a hierarquia da escola – afirmações que a professora contesta. A história ganhou repercussão, mas não tocou o governo de Rondônia, que seguiu com o processo administrativo.
Assim, com o impedimento de lecionar em escolas ribeirinhas, Márcia foi encaminhada para uma escola na parte urbana de Porto Velho, capital do estado, mas não aceitou a decisão e defendeu que sua versão fosse ouvida pela Secretaria Estadual de Educação. Após nove meses longe das salas de aula, ela teve o salário suspenso pelo governo do estado por abandono de emprego. Em agosto de 2022, conseguiu reverter a decisão por abandono de emprego, foi reintegrada no serviço público e pôde apresentar sua defesa no processo administrativo. No entanto, segundo a docente, a Secretaria de Educação manteve a decisão de que ela só poderia dar aula em contexto urbano, ficando assim impedida de trabalhar na sua comunidade, no distrito de Nazaré, onde cresceu e onde vivem seus familiares. A decisão final no processo administrativo mantendo Márcia afastada da escola foi confirmada em julho de 2023, mas a professora só teve ciência da decisão no início de 2024, quando saiu de um afastamento médico para retornar ao serviço público.
“Estou sendo punida por mentiras que querem tornar verdades: falta de urbanidade, não seguir o livro didático e não respeitar hierarquias”, diz sobre a decisão.
A InfoAmazonia tentou contato com a Secretaria de Educação de Rondônia para entender os detalhes da decisão que mantém a professora afastada do ensino em regiões ribeirinhas, mas não recebemos retorno até a publicação desta reportagem.
Agora, ela aguarda o julgamento na Justiça de uma ação em que pede a nulidade dos atos administrativos, além de uma indenização por danos morais. Márcia argumenta que foi injustamente transferida de seu local de trabalho para outra unidade escolar contra sua vontade e que essa ação constitui assédio moral. Ela também alega ter ficado sem receber o salário injustamente durante todo o período de afastamento, entre agosto de 2021 e agosto de 2022.
Em entrevista à InfoAmazonia, em 15 de janeiro, a professora relatou como foi o seu processo de afastamento. Sobre a perseguição, ela diz ser política, etnocida e “de negação ao direito da autoafirmação indígena”.
Mesmo longe das salas de aula, a professora seguiu promovendo atividades educacionais nas comunidades ribeirinhas do Madeira e até mesmo palestrando em outros estados sobre a Lei de Diretrizes (LDB), que determina a obrigatoriedade “do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena” em todos os estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados.
“Eu tenho recebido apoio de muitas mulheres indígenas de todo o território Pindorama: Pindorama (do tupi: “pindó-rama”: “região das palmeiras”) é uma designação para o local dos povos tupis-guaranis, nome que indígenas dão ao território onde hoje é o Brasil. e fora do território também. Essa situação já chegou duas vezes na ONU Mulheres, mas não tem efeito local”, afirma. A indígena diz que está buscando justiça para enfrentar o que descreve como etnocídio e epistemicídio do Estado brasileiro.
Leia a seguir a entrevista completa.
InfoAmazonia – Quando começou essa situação na escola em Nazaré?
Márcia Mura – Quando eu cheguei na escola ainda não tinham o projeto político pedagógico e a direção pediu para eu colaborar com a construção desse projeto. Foi onde eu fiz um histórico deste rio [o Madeira], desta comunidade [de Nazaré], para apresentar este contexto do território, onde se encontra a escola. Quando avaliaram o projeto, a direção da escola mandou tirar, disse que não precisava. Já foi uma ação, que ao meu ver, foi etnocida.
A história do rio Madeira tem que estar presente, sim, nos projetos pedagógicos de todas as escolas que se encontram no baixo Madeira, porque é o contexto histórico e a memória deste território. A equipe pedagógica começou a questionar os meus procedimentos, de estar trazendo sempre presente esta pedagogia da afirmação indígena, desta recuperação de memória do território Mura e de outros povos também que sempre circularam nesse rio. Começaram a dizer que eu sempre falava o mesmo assunto, que era repetitivo, que eu já tinha tratado disso em outra atividade.
Na pandemia, eu não tinha mais contato com os pais e os alunos. Quem ia entregar as atividades nas comunidades era a equipe gestora. Então, eles aproveitaram isso para colocar os pais e os alunos contra mim. Foi a forma que encontraram para cercear, impedir que a minha atividade, que tratava sobre a memória, a memória dos mais velhos, a memória indígena do rio, que não fosse repassada para os alunos com argumento de que alguns pais estavam reclamando.
O seu afastamento era para escolas ribeirinhas, mas você ficou dois anos sem dar aulas e vai voltar agora em 2024 em meio a uma disputa judicial. Como tem sido essa disputa contra o Estado?
Esse processo tem sido lento e doloroso. Eu enfrentei dois processos internos, um que era sobre abandono de emprego, porque eu fiquei nove meses lutando para ser ouvida e para mostrar que eu estava sendo perseguida. Fiquei com nove meses de falta. Consegui reverter o processo de abandono de emprego e tive que aceitar ser lotada em uma escola na cidade. Mas não tive condições emocionais para entrar em sala de aula e passei a ser acompanhada por uma médica. Comecei a ter afastamento médico, do meio do ano passado até agora. Essas licença médicas vão se encerrar agora no final de janeiro e eu estou me preparando emocionalmente para voltar para sala de aula na cidade, porque no relatório de devolução eles são bem incisivos dizendo que eu não sirvo para dar aula em nenhuma escola ribeirinha. Ou seja, eu estou sendo impedida de educar crianças, jovens e adultos que estudam dentro do meu território.
Eu espero que o juiz possa ser de fato justo e consiga perceber o que está acontecendo. Eu desejo muito que se tenha um parecer favorável, não a mim, mas a toda essa luta que a gente trava coletivamente.
Como você se sente tendo que bancar essa disputa com o estado, que também é uma briga com o Estado Brasileiro, para reconhecer a sua liberdade de cátedra e toda essa bagagem que você traz do movimento indígena?
Na historiografia, meu povo está como os piores dos piores porque não quis negociar com o Estado. Sempre foram tidos como incivilizados. No meu processo, que acabou de sair e é favorável à diretora, uma das questões que eu estou sendo punida é por falta de urbanidade, que é uma forma moderna de falar que eu sou incivilizável, como meu povo sempre foi visto. Eu vejo que essa perseguição, esse olhar sobre os Muras, permanece. É pelo que estou sendo punida quando falam em falta de urbanidade, o que eu acho absurdo. Estou sendo punida por mentiras que querem tornar verdades: falta de urbanidade, não seguir o livro didático e não respeitar hierarquias.
Quais exemplos das suas atividades em sala de aula você destaca para motivar essa perseguição?
Quando a gente trabalhava a questão do tempo na história, da linha de tempo, eu sempre pedia para eles falarem sobre algo que tinha afetado a vida deles e que marcava o antes e o depois na linha do tempo. Eles sempre traziam essa questão das hidrelétricas como uma questão que tinha marcado o antes e o depois deles. Com isso, eu trabalhava a questão local desses impactos que eles mesmo traziam para sala de aula, trabalhava a questão dos projetos desenvolvimentistas, trabalhava sobre o projeto político-econômico para a Amazônia. Aí, com isso, eu conseguia fazer esse diálogo do local com o global.
Eu comecei a apresentar para os alunos um mapa do histórico dos territórios indígenas de toda Pindorama, de todo território que hoje é denominado como Brasil. Ali tinha um recorte do rio Madeira mostrando que em 1700, bem onde é Porto Velho, é território dos Mura, e que houve esse deslocamento por conta das pressões também colonizadoras até as proximidades do rio Negro. Então, eu trazia materiais que mostravam essa ocupação. Mas não foi aceita pela Secretaria de Educação.
Desde que eu fui retirada da escola, tenho sido convidada por secretarias estaduais e municipais de educação para dar formação sobre a lei 11645, para falar sobre o que é pedagogia da afirmação indígena, para fazer atividades com as crianças nas escolas. Tudo aquilo que eu fazia na escola em que eu trabalhava, e que não foi aceito, eu fui convidada para mostrar em outros lugares.
Nesse período, você buscou aproximação com a escola e com a comunidade de Nazaré?
Muita gente que vive em Nazaré é da minha família, tanto por parte do meu avô como da minha avó, os meus tios avós estão lá. Também tem muita gente que chegou de fora, mas boa parte são meus familiares, eu tenho minha casinha lá e mesmo depois de ser afastada tenho tentado manter as atividades. Por conta de vários problemas de saúde que foram gerados por todo esse processo de perseguição, e também por eu ter que estar lidando com as questões burocráticas em relação à minha ausência da sala de aula e responder processos e tudo mais, eu não consegui permanecer mais em Nazaré como antes, mas, ainda assim, junto com o coletivo Mura e junto com a articulação das indígenas mulheres Mura de Rondônia e Amazonas, e outras organizações, a gente tem tentado fazer atividades.
Junto com o Movimento Wayrakuna, que é um movimento plurinacional das mulheres da ventania, nós fizemos uma incidência de mulheres indígenas em Nazaré. Seria a primeira vez que eu voltaria à escola desde o meu afastamento. A diretora tinha concordado em fazermos uma atividade do Dia da Amazônia e das Mulheres Indígenas, mas acabamos sendo impedidas.
A princípio, a diretora concordou com as parentas de que elas fossem e que eu iria junto, mas, no último momento, ela mandou um documento sem timbre da escola, sem assinatura, informando que os professores não poderiam nos receber porque estariam em outra atividade.
Depois, quando a gente foi fazer a nossa roda lá, contar a história daquele lugar, a gente fez nossos cantos e saiu balançando o maracá pela escola. Fomos na quadra onde várias alunas me abraçaram. Eu chorei muito, fiquei muito emocionada, porque essas meninas eram cunhatãs [meninas jovens] e agora já estão mocinhas. Eu fui cerceada de acompanhar esse processo delas, isso me deixou muito emocionada.
No outro dia, a gente viu dois policiais entrando na escola, porque a diretora tinha acionado a polícia para informar que nós tínhamos invadido a escola. Ela também foi na igreja católica da comunidade pedir ajuda dizendo que estava desesperada, não sabia mais o que fazer, e que nós tínhamos invadido a escola.
Mas eu tenho uma base de apoio também na comunidade. Então, por mais que ela tente colocar a comunidade contra mim, eu tenho essas pessoas do meu lado. Então, ela não consegue, porque a tentativa é fazer com que eu seja impedida de estar na comunidade também.
Pobre professora ,
Eu entendo perfeitamente o que ela está passando neste momento. Já fui devolvida de uma escola porque via a corrupção da direção em relação ao dinheiro da merenda e ela me perseguiu tanto que quase perdia meu emprego. Fiquei abalada emocionalmente e quase não me recupero. Creio que Deus vai ajudar essa professora como me ajudou também . Deus abençoe!